segunda-feira, 8 de maio de 2023

Tesouros Cinéfilos - Dogville

De: Lars Von Trier. Com Nicole Kidman, Paul Bettany, Lauren Bacall, Chloë Sevigny, Patricia Clarkson e Stelan Skarsgard. Drama, Dinamarca / Reino Unido / Suécia / França / Alemanha, 2003, 178 minutos.

All the way from Washington
Her bread-winner begs off the bathroom floor
We live for just these twenty years
Do we have to die for the fifty more?

All night
He wants the young American
Young American, young American, he wants the young american

(Young Americans - David Bowie)

"Uma explosão ideologicamente apocalíptica contra os valores americanos". Foi dessa forma que a revista Variety resumiu a experiência com Dogville, do dinamarquês Lars Von Trier, na época de seu lançamento, em 2003. Divisivo quando exibido no Festival de Cannes, excêntrico em sua forma, mas potente na análise da natureza humana eventualmente violenta, que muitas vezes emerge de uma sociedade hipócrita, mesquinha e intolerante, o filme romperia com qualquer lógica, sendo amado e odiado em igual medida. Filmada em um único cenário - totalmente teatral, com direito à chão preto, pinturas e letreiros com giz no chão e paredes e portas de mentirinha - a obra acompanha a rotina modesta dos provincianos moradores de Dogville, uma cidadezinha do interior do Colorado, que fica na encosta de uma montanha.

Esse cotidiano ordinário entre plantações de maçãs, sino da igreja que toca, mineração e produção de artesanato é quebrado com a inesperada chegada de Grace (Nicole Kidman) uma jovem que está fugindo da máfia, que estava em seu encalço. No local Grace é recebida por Tom (Paul Bettany), um aspirante a escritor que nunca concretiza a sua obra e que, aparentemente, funciona como uma espécie de líder espiritual do povoado. É ele o responsável por reunir os moradores em encontros para tomadas de decisão coletivas. E uma delas envolve um grande dilema: dar abrigo a Grace ou não? Protegê-la daqueles que lhe perseguem? Grace até sugere seguir pelas montanhas mas é impedida, sob alegação de o caminho ser espinhoso demais. Sem muita alternativa ela fica no local. É acolhida pelo "amável" povo de Dogville - apesar de seu ceticismo. A ideia é promover uma experiência de duas semanas com a jovem para, então, uma decisão final: ela vai ou fica. Enquanto isso, ela aproveitará o tempo ocioso para uma espécie de contrapartida: oferecer serviços aos cidadãos.




Ok, tudo começa mais ou menos bem nesse ideal imaginado. Grace trabalha para os moradores, recebendo abrigo e comida. Só que quanto mais a polícia se aproxima do povoado interessado em saber do paradeiro da jovem, mais incomodados os habitantes de Dogville - tão corretos, tão honestos, tão íntegros, tão decentes - ficarão. E, consequentemente, maior será o preço para que ela permaneça. O que envolverá uma série de violências que passarão a ser perpetradas - de abusos psicológicos e sexuais, até escravagismo e tortura. Não haverá chance de escapatória para Grace e quanto mais ela tentar fugir daquele ambiente inóspito, pior será. E mais agressivos se tornarão os "honrados" moradores de Dogville. O que, ao cabo, levará todos ali a uma espécie de degradação moral e coletiva, que coloca o dedo na ferida do imperialismo, funcionando justamente como uma metáfora que quebra o ideal do sonho americano, ao passo que faz a crítica das relações dos Estados Unidos com países estrangeiros.

Sim, a xenofobia pode ser o aspecto mais gritante em tempos de ex-presidente que pretendia construir um muro para que mexicanos não alcançassem a Terra do Tio Sam. Mas das questionáveis políticas de guerra, passando pelo patriotismo e pela religiosidade difusos, até chegar ao comportamento conservador e patriarcal do cidadão de bem norte americano, nada parece fugir do radar de Von Trier - por mais controverso que ele seja. Ou, vá lá, talvez justamente por ser tão controverso. Vinte anos depois, com reestreia no Mubi, a obra segue sendo uma experiência rica, curiosa, iconoclasta e provocativa, que bebe na fonte do teatro de Bertolt Brecht e que leva ao limite os ideais do Movimento Dogma 95 - que buscava um cinema puro, orgânico, sem usos de truques de imagens, luzes artificiais e outras supostas superficialidades. Vale resgatar.


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