segunda-feira, 29 de maio de 2023

Novidades em Streaming - Unclenching the Fists

De: Kira Kovalenko. Com Milana Aguzarova, Alik Karaev, Soslan Khugaev, Arsen Khetagurov e Khetag Bibilov. Drama, Rússia q França, 2021, 97 minutos.

Em uma das primeiras cenas de Unclenching th Fists, que pode ser conferido na Mubi, Zaur (Alik Karaev), o severo pai da jovem Ada (Milana Aguzarova), pergunta a esta se ela está usando perfume. Ela mal havia retornado para casa após um dia de trabalho e responde timidamente que ganhou um frasco de uma colega de trabalho. "Pois coloque fora", solicita o homem, que é obedecido sem muita resistência por Ada (que despeja o líquido fazendo com que seus dedos toquem de leve nele). Nesse sentido não são necessários nem quinze minutos do filme dirigido por Kira Kovalenko - e que venceu a mostra Um Certo Olhar do Festival de Cannes de 2021 -, para que saibamos que a protagonista precisa lidar com um pai dominador, que mantém a própria filha em uma espécie de prisão doméstica. Sim, literalmente uma prisão, já que Zaur não apenas mantém a casa fechada, como esconde a chave dos filhos. Fugir poderia ser uma alternativa. Mas para onde ir, estando em uma região isolada no norte da Rússia?

A solução talvez possa vir a partir de uma inesperada visita do irmão mais velho Akim (Soslan Khugaev), que parece ter inaugurado na família o ideal de viver de forma independente (ele fugiu de casa e hoje trabalha em uma cidade vizinha). É claro que para as mulheres sempre será mais difícil e Zaur fará jogo duro diante da presença do primogênito, que dá indicativos de querer levar Ada dali, Figura complexa, Akim é aquele jovem de feições rudes, movimentos sutis e poucas palavras que nos deixam com um sentimento de incerteza: em uma sociedade tão patriarcal como aquela da erma Ossetia do Norte é possível confiar em um homem? Mesmo que seja um irmão? Ainda mais que Akim e Ada possuem ainda um outro irmão, o infantilizado Dakko (Khetag Bibilov), um sujeito que se divide entre a carência opressiva e a hipersexualidade - especialmente quando o assunto é a irmã (quase como um Roman Roy de Succession, mas sem o terno, o dinheiro e a influência).



Ada, é preciso que se diga, foi vítima de um atentado a bomba no passado - o que parece lhe comprometer o funcionamento dos rins (e talvez de outros órgãos). E esse é um componente histórico interessante da trama, já que esse episódio ocorreu realmente em 2004, na Chechênia. E isso amplia inadvertidamente o senso de superproteção do pai, que não lhe permite nenhum tipo e privacidade. Namorar? Ficar na rua até mais tarde? Sair para festas? Nada disso. Não é à toa que quando a protagonista flerta, tudo acontece de forma meio desajeitada com o seu colega de trabalho, o insistente Tamik (Arsen Khetagurov), aquele sujeitinho meio ordinário que concede algumas migalhas de afeto a Ada que, com a autoestima em frangalhos, acredita que aquele jovem imaturo vai poder ser mais responsável afetivamente (só porque fez com ela um sexo meia bomba típico de dois principiantes). Engano total. Nessa região tão afastada, tão distante, parece haver também um tipo de isolamento da alma. Ada não tem a quem recorrer. 

E seus traumas físicos e mentais também são ampliados pelo fato de que o pai, como não poderia deixar de ser, lhe impede de ir ao hospital (e talvez uma cirurgia lhe fizesse se libertar das fraldas que ela precisa usar por causa da incontinência urinária decorrente do atentado). É tudo muito dolorido mas, inacreditavelmente, nada maniqueísta. Sim, é um ambiente constrangedoramente machista e não dá pra negar isso. Mas, em alguma medida, o filme também nos faz lembrar que as pessoas são complexas, ainda que quase que o tempo todo Ada tenha que estar se desviando de algum comportamento mais abjeto dos homens a seu redor. Do irmão, do pai, do colega que flerta, dos outros idosos ou familiares. Ao cabo trata-se de uma experiência que nos faz refletir sobre temas como o papel da mulher na sociedade, as consequências da guerra e o valor da liberdade. A paleta de cores externa pode até ser sóbria, mas contrasta com os ambientes interiores escurecidos e opressivos. A trilha sonora tem tintas melancólicas. A ambientação é árida, envolta em concreto decadente. É um combo que contribui para um senso de claustrofobia quase onipresente. Que faz com que Ada se sinta, literalmente, presa pelos braços do pai. Como atesta uma das melhores cenas.

Nota: 8,0


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