terça-feira, 9 de maio de 2023

Tesouros Cinéfilos - O Piano (The Piano)

De: Jane Campion. Com Holly Hunter, Anna Paquin, Sam Neill e Harvey Keitel. Drama / Romance, Nova Zelândia / Austrália / França, 1993, 121 minutos.

Filme que romantiza um aparente caso de abuso sexual? Ou obra sobre uma jovem em busca de emancipação - o que ela fará por meio de sua paixão pela música? Produção machista que apenas perpetua o ideal do patriarcado? Ou longa feminista sobre uma mulher que não aceita a condição que lhe foi imposta? Confesso a vocês que é meio difícil ser definitivo, quando o assunto é o clássico moderno O Piano (The Piano), lançado em 1993. Dirigida por Jane Campion - do recente (e ótimo) Ataque dos Cães (2021) - a obra costuma dividir opiniões na hora de uma análise mais atualizada de suas temáticas. Trata-se ao cabo de um filme dos anos 90, com o DNA daquela década e que, de quebra, ainda tem a sua trama ambientada no começo do Século 19. Era um período certamente difícil para as mulheres. E, de uma forma meio inevitável, essa condição é evidenciada em sua narrativa. Para o twitter, talvez seja passível de cancelamento. Um tipo de incômodo que talvez se estenda para parte da audiência.

De qualquer maneira não se pode negar que se trata de uma grande produção. Que é, do ponto de vista técnico, praticamente impecável. Cenários, fotografia, figurino, trilha sonora. Tudo funciona para essa espécie de imersão em uma Nova Zelândia absolutamente rural bucólica, úmida, lodosa (a terra pantanosa se espalha por toda a parte) - local para onde está migrando a viúva Ada McGrath (Holly Hunter). Acompanhada da filha Flora (Anna Paquin), a moça foi vendida pelo pai em um casamento arranjado com um certo Alisdair Stewart (Sam Neill), um negociante endinheirado com mais ou menos ZERO atrativos. Traumatizada por eventos ocorridos em sua infância, Ada se recusa, desde os seis anos de idade, a falar. Sua "língua oficial" é a música. A arte. Que é expressada por ela por meio de um antigo piano de madeira feito a mão. E que, na chegada ao País da Oceania será motivo de discórdia: afinal, como carregar um enorme piano mata adentro?



Como forma de conseguir levar o instrumento até a propriedade onde residirá, Ada faz uma oferta ao misterioso vizinho de Alisdair, George Baines (Harvey Keitel) - operando no modo sedutor de meia idade. Influenciado pela cultura maori da ilha, George é o sujeito de modos embrutecidos, mas de coração bondoso - com direito a tatuagens típicas das tribos da região no rosto. O homem se oferece para trazer o piano, mas com uma condição: a de que Ada seja sua professora de música. E é claro que não é necessário ser nenhum adivinho para saber que essa relação próxima, meio que aos trancos e barrancos, resultará não apenas em uma bela amizade. George ficará fascinado com a música tocada por Ada. Na realidade ele ficará fascinado por Ada como um todo. Como parte da negociação entre eles está a promessa de que ele lhe devolverá o piano. Mas desde que ela ceda aos seus encantos. Cada vez mais. Indo de um mero toque de peles descompromissado ao encontro fortuito na cama. Pelados. O ponto que, enfim, gera tanta polêmica. E que poderia deixar o militante do twitter de cabelos em pé.

Ao cabo, eu não estou aqui pra passar pano e confesso que também me incomodei com algumas sequências. Mas tentei não perder de vista que George estava realmente apaixonado por Ada. E que talvez fizesse tudo por ela. Duzentos anos atrás, na Nova Zelândia rural. E, como disse alguém em um fórum da internet, entre um casamento forçado com uma pessoa que não se ama e a paixão tórrida e controversa com um homem que parece estar comprometido emocionalmente - e não apenas sexualmente - fica-se com o segundo. Entre o péssimo e o ruim, enfim, vocês sabem. Talvez hoje em dia, O Piano fosse um filme que não funcionasse tão bem, carecendo de alguns ajustes na narrativa - especialmente para contemplar o povo disposto a achar misoginia e machismo em tudo quanto é canto (não dá pra relaxar). Mas como obra de época, o filme de Jane Campion segue como uma experiência classuda, sensual e poderosa sobre uma mulher hesitante, enigmática e habilidosa que procura o melhor não apenas para si, mas para sua filha (que aliás, tem papel fundamental na trama). Holly Hunter e Anna Paquin receberiam, com justiça, o Oscar por suas caracterizações. Tornando uma série de momentos - especialmente os do impactante terço final - inesquecíveis. Vale demais recordar.


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