De: Sarah Polley. Com Claire Foy, Jessie Buckley, Rooney Mara, Ben Whishaw e Frances McDormand. Drama, EUA, 2022, 104 minutos.
Existe uma sequência ao mesmo tempo sutil e consistente na hora de evidenciar o tipo de violência que sofrem as mulheres que protagonizam Entre Mulheres (Women Talking) - obra que está em cartaz nas salas do País e é uma das indicadas à categoria Melhor Filme no Oscar que ocorre no próximo domingo. Nela, Greta (Sheila McCarthy), uma das anciãs do grupo, retira a sua prótese dentária da boca, afirmando que tem dificuldade em se adaptar à ela, por esta ser "muito grande". Seria uma sequência despretensiosa, talvez, não fosse um flashback que a mostra aos prantos, com a boca ensanguentada. Aliás, um dos méritos de Sarah Polley (do ótimo Longe Dela, 2006) na construção da narrativa é o de não apostar necessariamente na violência gráfica exibida o tempo todo, para fazer valer o seu argumento. Nessa comunidade o histórico de agressões está em um segundo plano, mas ele é motivo central. Ele existe. E é preciso fugir. Ou ficar e lutar.
Confesso que não tinha lido muito sobre a obra até assisti-la e admito que fui pego de surpresa quando, lá pelo meio do filme aparece um carro de som alertando os moradores da localidade para que saiam de casa para responder ao censo. Detalhe: censo de 2010. Sim, por que quando a história começa - sob o lembrete de ser "um exercício de imaginação feminina" - temos a impressão de que iremos acompanhar algum tipo de narrativa que remonta ao passado. Ao século 18 ou 19, ou a alguma período em que as mulheres estavam em plena luta por direitos iguais. Mas não é demais lembrar que em 2010 - ou mesmo em 2023, nesse tempo em que coachs redpillados com masculinidade frágil, ganham a vida sendo misóginos - o debate sobre feminismo e equidade de gênero segue em alta. A trama de Entre Mulheres, aliás, toma por base o texto original de Miriam Toews que se baseia em eventos reais que envolveram uma comunidade cristã da Bolívia.
Aliás, a religião aqui é peça chave na condução da narrativa. No começo do filme, após a denúncia de mais um episódio de abuso sexual contra as mulheres de uma comunidade fechada, sem praticamente nenhum contato com o mundo exterior, as moradoras do local se reúnem em um celeiro para uma espécie de votação em que determinarão o que farão dali pra frente, quando o homem que foi preso provisoriamente, retornar ao convívio delas. Conforme os diálogos avançarem, perceberemos que perdoar será um exercício mais do que necessário para que seja garantida a misericórdia divina. O medo move todas ali. Mas é preciso construir uma ideia de forma coletiva. Em vinte e quatro horas. Antes que tudo volte a ser como era. Com os episódios de estupro, torturas, incesto, pedofilia e outros tipo de violência, voltando à "rotina". Ao cabo, trata-se de uma obra sobre o poder do diálogo. E sobre a importância da representatividade. Como construir uma comunidade mais justa e igualitária onde às mulheres possam alcançar direitos básicos como poder ler? Escrever? Participar das decisões? Votar? Pensar de forma coletiva?
Com um elenco soberbo, o filme evolui em meio a diálogos ternos, impactantes e em alguns momentos até divertidos que evidenciam ainda a importância da sororidade e do respeito às diferenças como forma de alcançar um objetivo maior. Salomé (Claire Foy), por exemplo, é mais impetuosa e está de saco cheio das coisas como acontecem ali. Já Mariche (Jessie Buckley) tem dificuldade em estabelecer uma linha limite entre a submissão ao marido e a reparação desejada, tendo ainda duas filhas pra criar. Por outro lado Ona (Rooney Mara) sugere uma certa independência de quem se pretende mãe solo de um filho que sequer foi desejado. São muitas e diversificadas vozes que são completadas por exemplo com a traumatizada Mejal (Michelle McLeod) e pela não binária Melvin (August Winter). Todas colocando no papel os prós e contras de ficar e lutar ou simplesmente deixar o passado pra trás, subir nas carroças e buscar uma nova vida em outro local. "Sua história será diferente da nossa" relembra a narradora ainda no começo do filme. E reconfigurar papeis em tempos tão reacionários e conservadores como os nossos, deve ser um movimento permanente. E, assim esperamos, sem retrocessos.
Nota: 8,0
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