sexta-feira, 16 de outubro de 2020

Pérolas da Netflix - Permanência

De: Leonardo Lacca. Com Irandhir Santos, Rita Carelli e Sílvio Restife. Drama, Brasil, 2014, 91 minutos.

Em uma das cenas que mais gosto do ótimo nacional Permanência, o casal Mauro (Sílvio Restife) e Rita (Rita Carelli) está ocupando o banheiro ao mesmo tempo. Após uma noite de sexo burocrático, pra cumprir tabela, ele toma banho, enquanto ela escova os dentes. O efeito da condensação da água do chuveiro, convertida em vapor, simplesmente vai apagando a imagem de Rita no espelho. É uma sequência simbólica, que dá conta do quão desconectados eles estão. E do quanto as suas vidas tiveram, muito provavelmente, rumos inesperados. Quando essa cena acontece, o filme do diretor Leonardo Lacca já avançou bastante. E nós já entendemos que Rita vive um casamento de aparências, em que há uma insatisfação latente que vem à tona quando ela recebe em sua casa um antigo "amigo", o fotógrafo recifense Ivo (Irandhir Santos), que está em São Paulo para a sua primeira exposição individual de fotografia.

O tema da película, é preciso que se diga, não chega a ser uma novidade: obras sobre casais frustrados que vivem vidas de conveniência, enquanto seus desejos reais insistem em bater à porta, existem a rodo. Neste, há toda uma sutileza que se sobressai não apenas em momentos episódicos como o instante citado no parágrafo acima, mas no próprio comportamento daqueles que acompanhamos. O filme abre, por exemplo, com Rita abrindo as portas da sua casa para Ivo, em certa manhã em que Mauro já foi trabalhar. Há uma tensão no ar, que é percebida nos silêncios, nos modos meio desajeitados de ambos. Não demora para que percebamos o fato de eles já terem sido um casal no passado. E um daqueles casais que possuem muitas pendências, muitas coisas mal resolvidas que, agora, sutilmente, se evidenciarão. Talvez eles ainda se amem. Talvez eles tenham tido uma bela história juntos. Talvez era pra ter sido e não foi. E, hoje, por sabe-se lá quais circunstâncias, estão com outras pessoas.

Quando um relacionamento acaba a gente tende a lutar contra os pensamentos que nos levam a recordar àquilo que gostávamos na pessoa que não está mais conosco. Mas, bom, a nossa vida não é o filme Brilho Eterno de Uma Mente Sem Lembranças (2004) e tudo aquilo que nos agrada na (ou no) ex continuará existindo. E é preciso lidar com isso. Mas e quando a interrupção de algo ocorre por outros fatores que parecem deixar tudo pela metade? Nesse sentido, Rita e Ivo arranjarão uma série de desculpas para realizar programas juntos pela cidade - de idas a café a sessões de cinema às escondidas -, mas sem nunca isso representar uma oportunidade de retorno aos tempos anteriores. Rita parece ser apaixonada pelas artes, pelo desenho, pela gravura, e admira genuinamente os esforços de Ivo. Mas casou com um  pragmático arquiteto que, sim, a sua maneira lhe dá amor e segurança, mas que é incapaz de sequer compreender o que representa a fotografia como exercício artístico - o que fica comprovado por alguns dos constrangedores diálogos entre os dois homens.

Não é difícil imaginar que talvez - e muita coisa fica no campo da suposição -, Rita tenha abandonado um "futuro" com Ivo por imaginar a quantidade de percalços que um relacionamento cheio de inseguranças com um artista representaria. Sei lá. Tudo especulação. O caso é que a película nos dá a entender o tempo todo que ela ainda gosta dele. E ele dela - por mais que, na cidade grande, ele se esforce em tentar esquecê-la, inclusive tendo um casinho com uma assistente de produção (mesmo sendo ele também casado). E aqui não está em julgamento as decisões de cada uma das personagens, muitas delas eticamente bastante questionáveis e, sim, a quebra de expectativa provocada pela esquematização das relações, pelo cartesianismo das convenções ou pela pura adequação ao status quo. Em outra simbólica e bela sequência do filme nos deparamos com a pintura Habitación de Hotel de Edward Hopper, um clássico do realismo que trabalha a solidão dos grandes centros a partir da figura de uma mulher isolada em um quarto melancólico e opressivo de hotel. Em partes é possível afirmar que todas as pessoas que acompanhamos permanecem nesse estado: meio paralisadas, em meio a um mundo estaticamente desequilibrado. Se há solução em meio a tudo isso? Difícil definir.

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