Não sei como tem sido pra vocês mas os tempos brutos que vivemos, somados à pandemia, tem tido um efeito meio curioso nas minhas preferências artísticas, culturais. E no que diz respeito à música, a impressão que tenho é a de que, em 2020, eu não estou tão "disponível" para experiências novas, que demandem muito tempo para a completa absorção. E, menos ainda, para aqueles registros mais barulhentos, mais desafiadores e, portanto, menos aconchegantes ou acolhedores. Esses dias eu fiz uma pequena nota sobre o novo disco do Travis, brincando sobre o fato de não haver nada melhor do que encontrar o álbum de "sempre" num novo trabalho de um artista que gostamos. E esse contexto me fez perceber que eu vinha recorrendo a muitos discos do passado, que pudessem representar algum tipo de amparo, que pudessem vir acompanhados de algum conforto ou de uma sensação de paz para enfrentar a rudeza do entorno. E, a meu ver, é exatamente este o caso de Love's Crushing Diamond, o primeiro trabalho do Mutual Benefit.
Pensa num troço agradável. Gracioso. Leve. Melodioso. Se você se habituou a gostar de country moderno por causa da fúria incontida no banjo apresentado pelo Mumford & Sons, pare alguns minutos para apreciar um trabalho que alterna momentos oníricos com outros etéreos, ao mesmo tempo em que envolve o ouvinte com uma coesão de arranjos sublimes, que ficam no limite entre o introspectivo e o primaveril. Peça central do registro, a magistral Advanced Falconry, terceira canção, resume bem esse estado de espírito. Inicia com uma melodia invernal e bucólica, que nos joga para o meio de um amanhecer preguiçoso, que se estabelece não apenas nos efeitos econômicos, mas no piano e no violino sinuoso que se misturam, que se completam, enquanto a percussão vagarosa vai martelando. A letra, tão apaixonante quanto delicada, fala de um amor que se expressa de forma sutil, mas de um jeito transformador - E ela fala baixinho / Vê através de mim / Diz algo que não consigo ouvir / Mas não vou esquecer / O jeito que ela voa.
Outra canção tão linda quanto afetuosa é C. L. Rosarian, que tem comecinho que mais parece extraído de trilha sonora de comédia alternativa romântica para, depois da entrada das cordas, se transformar em um verdadeiro poema sobre uma paixão que era pra ser, mas talvez não foi. Um amor meio "descuidado", como brinca o C. L do título, que na verdade significa careless love - Você estava colhendo rosas na lagoa / E você encontrou um amor descuidado para chamar de seu / E parece que a beleza pode ser difícil de encontrar / Quando você tenta congelar um momento em sua mente. Quando escreveu a sua resenha para a Pitchfork, o crítico Ian Cohen classificou o registro do multi-instrumentista Jordan Lee como "amoroso, paciente e infalivelmente esperançoso". "Quase todas as qualidades que você deseja em um ser humano, não é mesmo?", completou ele. Estávamos em 2013. E de lá para cá, acho que não é impressão, a humanidade parece estar prestando a cada dia menos atenção nessas características e talvez seja por isso que um registro desse tipo traduza tão bem esse sentimento. Ao menos para esse jornalista que escreve essas poucas palavras.
Sim, eu sei muito bem que a arte é feita para provocar, para instigar, para nos tirar da zona de conforto. Mas isso eu encontro nos livros que leio, nos filmes que assisto. Ultimamente, quando amanhece o dia, parece que cada vez mais desejo uma canção que soe meio familiar, nostálgica, quase intuitiva. Que tenha cordas e percussão pacientosos e efeitos econômicos. Se fosse possível fazer "música gentil", talvez o Mutual Benefit tenha atingido o auge disso, nesse processo. A pena toda é que são apenas sete músicas e pouco mais do que 31 minutos. E quando você vê você está voltando para tudo aquilo e novo. Para o começo perfumado por sinos dos ventos - sim, acredite -, de Strong River e seu clima que equilibra o épico e o barroco em igual medida, passando pelo lo-fi (e pelo refrão grudento) de Golden Wake, até chegar até o final levemente apoteótico de Strong Swimmer - e sua ambientação que não faria feio como trilha sonora de filme de época. No site Consequence Of Sound a explicação para esse tipo de energia gerado por Lee pode ser explicado pelo fato de ele ser meio "nômade", um andarilho que absorve climas, culturas, geografias, ambientes - e os traduz de forma magnifica em discos incríveis. Love's Crushing Diamond é um diamante. Sem necessidade de lapidação.
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