terça-feira, 26 de maio de 2020

Lasquinha do Bernardo - Abrir o Coração é Um Saco

Pessoal, estamos com um novo quadro! Nele, o nosso parceiro Bernardo Siqueira - da Sonar Podcasts, que é a responsável por colocar o nosso podcast do Picanha Cultural no ar -, dá o seu pitaco. Ou, melhor dizendo, pra linguagem ficar de acordo com o Picanha: a sua Lasquinha! No espaço do Bernardo ele vai ter a liberdade de falar do que quiser e como quiser - e certamente falará com a propriedade de quem curte filmes, séries e música, assim como nós, com o diferencial de ser formado em Letras e atuar como professor. Seja bem-vindo Bernardo! A "lasquinha" será toda tua, para a hora que quiser descer no nosso prato! E, vocês, queridos leitores, espero que vocês gostem!
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Abrir o Coração é Um Saco
(Por: Bernardo Siqueira)

O texto encara um título amargo, mal humorado e até rebelde. Não é difícil nos encontrarmos nessa situação durante um período também ácido e doloroso. Mas, o que para muitos é uma tortura, para outros pode ser uma janela para novas descobertas: ficar em casa. E foi assim que aconteceu, entre um filme revisto e uma série repetida, descobri, literalmente, uma janela para um novo mundo. Em abril desse ano, a Netflix, famoso serviço de streaming audiovisual, lançou a animação The Midnight Gospel, criada pelo mesmo produtor de outra série animada e celebrada, A Hora da Aventura. O enredo é muito simples: Clancy, um produtor de podcast (aqui a explicação pelo meu interesse instantâneo), navega através de um simulador de realidades pelo universo, encontrando diversas personagens peculiares em situações igualmente peculiares e até mesmo desesperadoras como, por exemplo, um apocalipse zumbi ou um mundo submerso habitado por gatos marinheiros. O interesse de Clancy é singelo, entrevistar esses seres estranhos e discutir o que os move no seu percurso diário de sobrevivência.

Em cada episódio há uma conversa profunda que serve como base para vários questionamentos ao espectador, cada entrevistado tem uma crença, um ensinamento ou um conselho para ser dado ao protagonista, sobre amor, sobre morte, sobre perdão. Porém, há um episódio em especial, que vou guardar em segredo para não desanimar os mais ansiosos, no qual Clancy diz exatamente o título desse texto. Uma intensa e melancólica conversa entre o podcaster e sua mãe, que enfrenta uma situação de vulnerabilidade. O protagonista se vê de mãos atadas, pois existe a garantia do sofrimento e, ao mesmo tempo, a vontade inerente do ser humano de fugir da sua realidade. É quando sua mãe lhe diz que “as pessoas tentam evitar pensar no fato de que vão morrer e de que as pessoas que elas amam vão morrer e isso abre seu coração, ele se parte para abrir. Nossos corações ficam fechados porque nós os fechamos, nós tentamos nos proteger da dor. Lidar com a morte abre o coração.


O impacto desse diálogo em mim foi imediato e até bastante óbvio. Quantas pessoas desrespeitando o distanciamento social você já viu? Quantos amigos e parentes preferem colher desculpas na árvore da sua arrogância e ignorar a pandemia, bradando que tudo não passa de uma invenção midiática? É isso, senhoras e senhores, o medo da realidade mais cruel e certeira, a morte. Quando nos encontramos em situações-limite, somos um simulacro de Clancy, preferimos fugir ou entrar em um mundo alternativo, buscar culpados, criar um avatar, uma sombra do que somos, no lugar de uma solução simples, porém dolorosa: abrir nosso coração. C.S. Lewis, filósofo britânico, no livro A Abolição do Homem escreve que “um coração duro não é uma proteção infalível contra um miolo mole.” Posições negacionistas não vão nos proteger ou nos salvar.

A realidade, apesar de dura, é... real. É aqui que encontramos a satisfação e a dor. É o único lugar capaz de transformarmos um coração endurecido, partido pela perda, pelo isolamento, pela mentira, em algo bom, em amor, ou em solidariedade, que é um tipo de amor. Quem prefere ficar distante do óbvio em tempos difíceis presta um desserviço a si mesmo, envolvendo seus sentimentos em um sepulcro. Abrir o coração é um saco? É terrível, é um exercício contra nosso próprio ego e, cá entre nós, ninguém gosta de enfrentar o seu verdadeiro eu. Mas está ali, na palavra, mais uma vez, uma cura contra a nossa alienação pessoal. Sempre dói? Pergunta de Clancy a sua mãe e aqui dirigida a você, leitor. Respondo: não sei. Em mim, sempre dói.

9 comentários:

  1. Massa pacas! E com CS Lewis, melhor ainda!

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    1. Valeu, Titi! Cara, em toda possibilidade de citar esse homem, tu pode ter certeza que será feito.

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  2. MIDNIGHT GOSPEL É MUITOOO BOMMMMMM, é absurda a quantidade de reflexões que da para fazer assistindo a série, desde meditação, indo para drogas e passando pela morte. Só to pela segunda temporada agora

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