quarta-feira, 15 de abril de 2020

Pérolas da Netflix - Viver Duas Vezes (Vivir Dos Veces)

De: Maria Teresa Ripoll. Com Oscar Martinez, Mafalda Carbonell, Inma Cuesta e Antonio Valero. Comédia / Drama, Espanha, 2019, 101 minutos.

De Longe Dela (2006) a Para Sempre Alice (2014), não foram poucos os filmes que abordaram as angústias de pacientes e familiares que convivem com a Doença de Alzheimer. E se há um diferencial nessa verdadeira joia da Netflix chamada Viver Duas Vezes (Vivir Dos Veces) é a capacidade de tratar do tema com algum senso de humor. Não se trata de desrespeitar o sofrimento de quem se depara com um mal ainda sem cura, mas de tentar procurar o riso onde haveria apenas choro ou a esperança onde só existiria a angústia. Isso não quer dizer que não haverá lágrimas pelo caminho e, afinal de contas, não é assim a vida? Cheia de graça e de dor? Na trama, o sempre ótimo Oscar Martinez (visto no desvairadamente hilário Toc Toc) é o professor de matemática Emilio, um viúvo viciado em sudoku, música clássica e pão com tomate, que é diagnosticado com a já citada doença. O que fará com que ele, aos poucos, perca a memória - começando pelas mais recentes, até chegar nas lembranças antigas.

Só que lá nos confins da memória está a lembrança de seu primeiro amor da juventude: uma garota de voz doce, de nome Margarita, que trocava confidências com o rapaz em um tipo de paixão que nunca se resolveu e que agora está presa a um passado que esmaece a cada dia. Como se estivesse no universo do filme Brilho Eterno de Uma Mente Sem Lembranças, Emilio tem medo de que Margarita suma de suas lembranças e resolve ir atrás dela, o que fará com que o filme se transforme, em sua segunda parte, em um simpático e divertido road movie, que contará com a espirituosa presença de sua neta, Blanca (Mafalda Carbonell) - uma garotinha de cerca de doze anos, cheia de personalidade - e de seus pais Felipe (Nacho Lopez) e Julia (Inma Cuesta), que é filha de Emilio. Aos trancos e barrancos, com brigas, discussões, revelações, motivos para sorrir e para chorar, perceberão que a viagem servirá muito mais para um acerto de contas generalizado entre a família, do que para atender um exótico pedido de um idoso doente.


Com extrema habilidade, a diretora Maria Teresa Ripoll centra sua força nos diálogos cheios de tiradas engraçadas e inteligentes, que nos farão rir e chorar na mesma cena, sem muito respiro. Delicada, a obra utiliza suas belas locações e sua trilha sonora arejada para evocar o efeito nostálgico da volta ao passado, trazendo como efeito primeiro a percepção de uma vida que poderia ter sido e não foi. No contraste entre Mafalda, a neta curiosa e "tecnológica", com Emilio, um velho solitário e eventualmente ranzinza, também haverá a percepção de que são mais próximos do que na realidade transparecem: a menina convive com uma doença (real, por sinal) que lhe limita os movimentos das pernas, ao passo que o idoso enfrentará em seus dias finais um tipo semelhante de limitação. No fim das contas, a obra também nos leva a pensar sobre nossas vidas, como as vivemos, como poderíamos vive-las e como sempre estamos em busca da felicidade - que muitas vezes está nas pequenas coisas.

Com personagens que são pura imperfeição e complexidade, a obra ainda se utiliza uma série de metáforas como forma de mostrar a passagem do tempo - e como as memórias se despedaçam -  para uma pessoa que sofre com o Alzheimer. E, nesse sentido, não há sequência mais arrebatadora do que a do muro com grafite, que vai perdendo as cores (e a vida), conforme os dias avançam. São nesses instantes que a película ganha força. E nos emociona. Para no instante seguinte nos fazer gargalhar - como na sequência em que a família se empenha em convencer uma enfermeira a fornecer o endereço de Margarita. Ou mesmo no encontro inusitado com a atual moradora da casa em que Margarita morou. É tudo contradição e complexidade num filme como este que, nas aparências, busca a realização de um sonho quase impossível de um senhor apaixonado. Mas que, no fim das contas, será a desculpa perfeita para uma transformação generalizada de todos que lhe rodeiam. Vale preparar o lenço de papel: no final, ele será necessário.


Nenhum comentário:

Postar um comentário