sexta-feira, 3 de abril de 2020

Novidades no NOW/VOD - Caixa de Recordações (Retablo)

De: Alvaro Delgado Aparício. Com Junior Bejar, Amiel Cayo e Magaly Solier. Drama, Peru, 2017, 95 minutos.

De acordo com o dicionário, o verbete Retábulo pode ser definido como uma espécie de "construção manual de madeira ou de pedra, em forma de painel, que se coloca na parte posterior de altares, sendo geralmente decorada com temas sacros ou retratos de santos". É, portanto, uma peça de artesanato - um tipo de caixa de decoração que pode ser ainda mais bonita, se mais colorida -, que é desvendada aos poucos, conforme avançamos pelo seu interior. Assim como as pessoas, numa metáfora óbvia, nem sempre percebemos de saída o que aquelas formas, figuras ou cores querem nos dizer. E essa, em muitos casos, pode ser a beleza da arte que nos instiga a juntar seus fragmentos, na tentativa de evidenciar o todo. Nem tudo está claro. Nem tudo estava claro para o jovem Segundo Paucar (Junior Bejar) - protagonista do filme peruano Caixa de Recordações (Retablo) - até que algumas verdades muito bem escondidas começaram a se revelar. As pessoas, afinal, também funcionam como verdadeiros retábulos.

Com apenas 14 anos, Paucar mora em algum lugar dos Andes, onde aprende de seu pai (Amiel Cayo), o ofício de retablista. Em meio à rotina silenciosa de atendimentos de pedidos de vizinhos ou de amigos, uma ou outra ida para a cidade para colher matéria-prima para o trabalho, movimentam o dia. Ou mesmo uma visita a vizinhos, criadores de suínos ou ovelhas. Tudo é eventualmente bucólico, num local de belíssimas paisagens que só são alteradas pelo barulho de caminhonetes escandalosas que vão e vem da cidade. Na relação de pai e filho, um tipo de cumplicidade que começa aos poucos a se quebrar, conforme o menino vai fazendo a transição que lhe levará a vida adulta. A cada festa, a cada bebedeira, a cada celebrado pedido ao artesão, Segundo volta seu olhar aos detalhes - uma palavra dita, um gesto, um olhar cordialmente dirigido -, que faz com que ele perceba que a rotina estabelecida, provavelmente será rompida ali adiante. Quebrada. Ressignificada.


É complicado falar de um filme tão sutil sem resvalar para o spoiler. Inclusive acho recomendável que as pessoas assistam sem saber muito. Com muita habilidade na condução de seus atores - o naturalismo impressiona -, o diretor estreante Alvaro Delgado Aparício, elabora seu filme a partir de uma série de pequenos instantes que, juntos, formarão uma colcha de retalhos. Nela, temas como conservadorismo das pequenas comunidades, machismo, preconceitos diversos, aceitação do outro e fanatismo religioso aparecem aqui e ali para nos mostrar que, independentemente do lugar, o ódio e a intolerância podem surgir com força, sem aviso prévio. Instigado pelo mundo que lhe rodeia a se comportar como um macho - inclusive ao ouvir seus pais transando -, Segundo terá dificuldade em lidar com a aspereza de tudo, enquanto centra sua força na beleza da arte que realiza em parceria com seu genitor, um tipo de atividade delicada, sacra, quase elegíaca.

Tecnicamente, Aparício não se furta de utilizar longos planos sequência que evidenciam a urgência em meio aos momentos de instabilidade, ou que mesmo nos forçam a um olhar mais detalhado para aquele contexto que presenciamos. Novamente, as belas paisagens podem ser apenas isso: o belo que está no exterior, mas o mundo, as pessoas, são mais complexas do que morros e campinas verdes, pedras e outros objetos. Há uma aridez pronta a sair dos cantos, das bordas. E Segundo aprenderá tudo isso num curto período de tempo, enquanto ele mesmo junta os cacos de uma vida que aos poucos se devasta, para tentar reconstruir, com as peças que tem, o seu próprio retábulo. Enviado do Peru à edição do Oscar desse ano, a obra se junta a Contracorrente (2009), para provar que o País andino ainda tem muito a oferecer com seu cinema. Nós, espectadores, agradecemos.

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