A guerra definitivamente não acaba quando termina. Ficam os traumas, as dores não apenas físicas, mas psicológicas. E como se reerguer da pior das devastações, que é a emocional? Uma Mulher Alta (Dylda) - o enviado da Rússia para a categoria Filme em Língua Estrangeira no Oscar desse ano -, trata desse tema, com um tipo de sutileza quase peculiar. A guerra já passou em Leningrado, mas os hospitais estão ocupados por soldados dilacerados, com corpos e mentes destruídos e distantes de qualquer tipo de recuperação. É um contexto cheio de dor e de devastação, que tenta encontrar motivação nas pequenas coisas - como uma visita inesperada ou uma brincadeira envolvendo uma criança. A "mulher alta" do filme trabalha nesse hospital. Seu nome é Iya (Viktoria Miroshnichenko) e ter mais de 1,80 de altura é a menor de suas preocupações, enquanto transita em meio a pacientes feridos, médicos esforçados e doentes de todos os tipos.
A melhor amiga de Iya é Masha (Vasilisa Perelygina), jovem que retornou do front após uma gravidez e será acompanhando a rotina de ambas nos dias que se sucedem ao término do cerco a Leningrado (a história diz que a cidade ficou quase três anos ocupada por nazistas, com mais de dois milhões de pessoas morrendo não apenas de guerra, mas de fome, em uma das mais devastadoras ofensivas da Segunda Guerra Mundial), que compreenderemos como as dores de ambas - aliás, as dores de TODOS -, estão na alma. Começa pela própria Iya, que sofre de uma espécie de paralisia inesperada no corpo, certamente resultado de algum tipo de trauma. Masha, nas aparências, se esforça por parecer mais forte, mas a destruição nas trincheiras lhe mutilou o corpo, que agora está impedido de gerar um filho. Um filho, que talvez represente algum tipo de volta da humanização, da normalidade, do choro misturado com o riso e talvez sem motivo. E que lhe faça fugir daquele universo que deveria ficar no passado, mas insiste em volta ao presente.
Aliás, o absurdo da guerra, suas mortes e violência a rodo, fazem com que Masha nem faça muito caso quando Iya anuncia que seu filho está morto em uma inesperada tragédia, ainda no primeiro terço do filme. O sofrimento, afinal, não parece ter mais medida, e ambas as atrizes entregam interpretações comoventes que nos fazem perceber que, mesmo quando sorriem, prefeririam chorar. Para as mulheres tudo sempre foi mais difícil no mundo e num pós-guerra tudo é ainda pior com a desumanização de tudo. A guerra acabou mas a comunidade ainda está embebida nela. Chafurda no ódio e na violência sem lógica, que atinge e forma inesperada, o que faz com que uma cena prosaica em que dois jovens flertam desajeitadamente com as protagonistas, seja apenas a desculpa para a evidência de feridas, de personalidades embrutecidas, de incapacidade de retomada de uma convivência.
A gente fica falando que vai sair diferente da crise instalada pelo coronavírus, mas será mesmo? Os filmes e séries nos mostram que, em casos de guerra, a batalha nunca chega ao fim na "volta pra casa". Há outras lutas, outros fantasmas a lidar e estaremos nós preparados para eles? Para o que vem pela frente? No filme do jovem diretor Kantemir Balagov - aliás, ele faturou o prêmio no Festival de Cannes -, a aspereza e a aridez saem da pele daqueles que assistimos. De seus olhos, gestos e bocas. Chegam ao desenho de produção magnífico, que nos faz acreditar que aquele de fato é um cenário de guerra, alcança a fotografia granulada e brinca com as cores verde (esperança) e vermelho (paixão) para metaforizar sobre o tipo de amizade agora emulada por Iya e Masha e chega até a trilha sonora econômica e claustrofóbica, com destaque para as notas perturbadoras que escutamos a cada instante em que o corpo de Iya se paralisa. Não é um filme fácil ou palatável. Talvez até não seja tão agradável de assisti-lo em tempos de Covid-19. Mas a realidade crua mostra que a guerra pode ser tão violenta e opressora quanto uma pandemia, que deixa um rastro de mortes mesmo depois que vai embora.
Nota: 9,0
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