Em uma das mais clássicas sequências de Roma, Cidade Aberta (Roma, Città Aperta) - pungente retrato de Roberto Rosselini sobre a Itália ocupada pelos nazistas -, uma mulher grávida corre, em desespero, atrás de seu marido que está sendo levado pelos militares alemães. É uma cena dura, sem concessões: a mulher termina morta, alvejada por uma saraivada de balas, sem qualquer chance de defesa. O tipo de crueldade que integrava o combo destrutivo da guerra, que era incapaz de enxergar o componente humano de um suposto adversário político. Comunistas? Subversivos? Desertores? Contrários ao regime? Todos que se enquadrassem em qualquer uma dessas categorias corriam risco de vida e a obra-prima de Rosselini, que inaugura o Neorrealismo Italiano, é praticamente um documento duro, agudo, melancólico de seu tempo. Sua câmera flana entre os personagens, como alguém que observa à espreita, sendo incapaz de separar a ficção da realidade.
Nesse sentido, a cena da grávida, uma mulher de nome Pina (a ótima Anna Magnani), ou mesmo a sequência em que o padre católico Don Pietro (Aldo Fabrizi) é torturado e também morto mais adiante, resumem de forma magnífica o nada surpreendente horror daquele contexto. Em uma Itália ocupada, com nazistas a cada esquina, resistir é um ato perigoso, que poderá resultar em perda de vidas. E não é por acaso que quando Giorgio Manfredi (Marcelo Pagliero) é procurado - tem sua casa revistada, invadida -, ainda no começo do filme, seu único ímpeto é fugir a qualquer custo. Após escapar, ele se refugia no apartamento do tipógrafo Francesco (Francesco Grandjacquet), noivo de Pina. Os três e mais o já citado padre tem planos que envolvem uma entrega de dinheiro que pode auxiliar a resistência contra os nazistas. Tudo é feito por baixo dos panos, sem chamar a atenção, respeitando o toque de recolher e todas as outras exigências em um País sitiado. E é ÓBVIO que a gente sabe que, em algum momento, algo sairá errado.
Tomando por base o perigo dos regimes como totalitários como ponto de análise, não deixa de impressionar o fato de a obra se manter tão atual - especialmente em um cenário em que assistimos embasbacados a ascensão de uma extrema direita que parece se orgulhar de sua estupidez. Racismo, preconceito, xenofobia e sentimento de superioridade fazem com que a sociedade atual conviva, estruturalmente, com o mesmo tipo de horror. Ou alguém considera um ato agregador assistir a um presidente declarar a plenos pulmões que pretende fuzilar adversários políticos? Ou de que para "arrumar" um País seriam necessárias 30 mil mortes? Ou que uma pandemia é apenas uma gripezinha? Claro, estamos falando de algo com uma proporção menor, mas jamais devemos esquecer que foi com o mesmo tipo de discurso nacionalista, de temor religioso e de exaltação ao belicismo que Hitler chegou ao poder, retirando do armário a intolerância e legitimando-a.
Com o uso de atores não profissionais, e uma câmera severamente observadora, a película ainda se aproveita de sua bela fotografia em preto e branco para não conceder ao espectador praticamente nenhum momento de respiro. Talvez a exceção possa ser a divertida cena em que o padre muda a lógica de orientação de duas estátuas de santos. Ou do instante, no começo do filme, em que um morador pobre revela uma grande quantidade de pães roubados da padaria. Mas mesmo estas sequências servem para dar conta de uma desorientação meio generalizada que vigora naquele contexto. O mesmo contexto em que ruas aparecem destruídas, com entulhos amontoados e soldados do Reich por toda a parte, espreitando os italianos e prontos para cercearem a sua liberdade. Prestes a completar 75 anos de seu lançamento, a película de Rosselini segue sendo uma das mais assombrosas experiências fílmicas sobre o absurdo da guerra, pavimentando o caminho para outros tantos exemplares que marcariam o Neorrealismo Italiano - casos de Alemanha Ano Zero (1948), do mesmo Rosselini e de Ladrões de Bicicleta (1948), de Vitorio de Sica. Vencedora da Palma de Ouro no Festival de Cannes, a obra ainda costuma figurar em uma série de listas de melhores da história, além de aparecer em livros como o dos 1001 Filmes Para Ver Antes de Morrer. Fundamental.
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