sexta-feira, 17 de abril de 2020

Grandes Cenas do Cinema - A História Sem Fim (The Neverending Story)

Cena: O simpático cavalo Artax vai morrer. E nós precisamos lidar com isso.


Vamos combinar, pessoal: definitivamente NÃO É qualquer morte. Não é. É uma morte que, se não nos traumatizou para sempre na juventude, nos ensinou, da forma mais dura, que os seres que amamos também partem dessa para melhor. Eu devia ter, sei lá, uns sete ou oito anos quando assisti A História Sem Fim (The Neverending Story) pela primeira vez. E simplesmente em TODAS as vezes que penso no filme, lembro da dolorosamente melancólica sequência em que o simpático cavalinho branco Artax agoniza no Pântano da Tristeza, enquanto o jovem Atreyu (o ótimo Noah Hathaway) tenta retirá-lo, em vão, em meio a muitos gritos, do meio daquele ambiente inóspito. Trata-se de uma cena totalmente inesperada e que vem logo depois de uma longa sequência em que a natureza da amizade entre Atreyu e Artax é estabelecida - eles atravessam vários cenários em um clima bastante aventuresco, parando apenas para um cochilo e para comer.

Quando a gente vê o filme pela primeira vez a gente não acha que o Artax vai morrer. A narrativa ainda está no início, mal a primeira meia hora de película se desenrolou. Aliás, o próprio Atreyu, incrédulo, parece meio que não acreditar naquilo que assiste: ele chega a rir, quase em tom de deboche, da incapacidade do cavalo de sair daquele lugar. Algo tipo "vamos lá, sai daí de uma vez, e vambora". Só que só percebe que o negócio é sério MESMO quando a água já está quase tapando a cabeça do animal. E há ainda um componente ainda mais sádico nesse sequência ordinária: só sucumbem ao Pântano da Tristeza aqueles seres vivos que sentem algum tipo de melancolia enquanto tentam percorrer o lodaçal, o que significava, como cereja do bolo, que Artax estava TRISTE naquele momento. No momento em que se despedia do seu melhor amigo! Aliás, uma piada que corre na internet é que esta é uma das mais angustiantes sequências do cinema de um amigo perdendo o outro para a "depressão".


Bom, eu não sei como as crianças mais mimadas de hoje em dia lidam com a realidade sendo esfregada em vossas caras, mas nós tivemos de lidar com a morte do Mufasa em Rei Leão e do personagem do Macaulay Culkin em Meu Primeiro Amor - além da do Artax, o que vamos combinar, pode ter ajudado a nossa geração a lidar melhor com o luto e com a consciência sobre a morte. Ou vai ver nós crescemos mais impactados mesmo. E, só pra constar, eu não li o livro do escritor alemão Michael Ende, no qual é inspirada a obra de Wolfgang Petersen, mas quem leu diz que, no livro, a situação é ainda pior por que o cavalo, um animal fantástico, FALA com o Atreyu. Então, ele simplesmente diz ao seu amigo que ele deve seguir adiante, enquanto ele próprio aguarda o seu trágico e agoniante destino no pântano. E eu tô aqui me perguntando qual a classificação indicativa dessa obra, por que, vamos combinar, né?

Bom, brincadeiras a parte, A História Sem Fim é uma obra nostálgica, metalinguística e até existencialista a respeito da importância da literatura na nossa construção e na nossa formação. Tanto que quando o jovem Bastian (Barret Oliver) entra na história, ele descobre um local chamado Fantasia, que está "desaparecendo" por causa da chegada do Nada (e que é representado pela grotesca figura de um lobo). Esse Nada bem poderia ser a redução do número de leitores ou de pessoas interessadas em literatura pelo mundo (o livro foi lançado em 1979, período em que a TV ganhava cada vez mais espaço nos lares), ao passo que a Fantasia, é simbolizada pela nossa capacidade de estabelecer conexões com um universo imaginário - que nada mais é do que aquilo que fazemos, quando nos envolvemos com algum livro (nos deixar levar por um universo fantástico). Divertida e comovente, a obra envelheceu bem e segue se valendo de seu carismático "elenco", cheio de criaturas mágicas - caso do Comedor de Pedra e cachorro voador Falkor -, como um de seus trunfos. Ainda que a morte inacreditável de Artax seja aquilo que, definitivamente, ainda martele em nossas memórias. De chorar!

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