sexta-feira, 26 de julho de 2019

Disco da Semana - Marcelo Jeneci (Guaia)

Ser artista também é ter responsabilidade. É ter consciência daquilo que se representa para os fãs ou para aqueles que acompanham o seu trabalho. E não estamos apenas falando de expectativas musicais, de sonoridade, de melodia, mas também de comportamento, de "voz", de ser alguém que esteja alinhado aquilo que ocorre em seu tempo. E esse contexto talvez explique a pequena mudança de rumo adotada por Marcelo Jeneci com o lançamento de Guaia, seu terceiro disco de estúdio e que interrompe um hiato de seis anos desde o espetacular De Graça (2013). Jeneci amadureceu - são mais de dez anos de carreira -, ainda canta sobre a beleza da vida, sobre a graciosidade das coisas simples, sobre busca pela felicidade em relacionamentos aconchegantes. Mas também parece mais consciente de seu papel como artista, em um contexto político/social de censura às artes, de caçada ás manifestações culturais e, consequentemente, de alienação.

Nesse sentido, talvez não seja por acaso que este trabalho soe um pouco menos acessível que os anteriores - como se nas entrelinhas de canções um pouco mais herméticas e eventualmente mais densas, também houvesse "embutido" um convite à reflexão um pouco mais aprofundada sobre o mundo, sobre dores e também sobre desilusões, quaisquer que sejam. Sim, ainda dá pra apreciar o dia ensolarado, o clima primaveril e cantar junto - como já fizemos em Felicidade, Pra Sonhar e De Graça. Mas o Brasil está ficando mais sério, mais "pesado", sendo inevitável que não fechemos os olhos para aquilo que nos define, para as nossas origens ou para aquilo que nos preservará em todos os sentidos. Talvez seja por isso que a ambígua Emergencial - que abre o disco coladinha com o canto inicial Ikashawhu da tribo indígena Yawanama -, conclame: É emergencial a gente se conectar com a terra. Emergencial. De forma repetida. Quase como se fosse um mantra.



Corroborando com essa tese, no pequeno material de divulgação que acompanhou o lançamento do registro, o artista explicou que Guaia tem a ver com o fato dele ter nascido no bairro de Guaianazes, na periferia de São Paulo, local que é "construído por trabalhadores do Brasil profundo que espalham afeto, resistência, dança, cores e cultura". É lá que Jeneci alega ter recebido a chama e o chamado para romper com música o escuro do futuro. "Trago na alquimia desse álbum a rua onde cresci, o agreste do Pernambuco e a grande metrópole que se fundiram em mim". E não é por acaso que, conforme se descortinam as canções, percebemos um equilíbrio quase perfeito entre tradição e modernidade, entre memória e contemporaneidade, entre o velho e o novo. O que pode ser constatado pelo contraste entre os ritmos regionalistas e eletrônicos, que se complementam, se fundem, formando uma musicalidade curiosa e até mesmo mais ampla do que aquela vista nos maravilhosos trabalhos anteriores.

Como exemplo disso, podemos citar a assimetria existente na trinca formada por Oxente, Vem Vem e O Seu Amor Sou Eu. Enquanto a primeira, gravada em parceria com Chico César, é quase uma ode ao Nordeste, seus ritmos e gírias, a segunda, concebida num dueto com a encantadora artista Maya, é uma Jovem Guarda que recebeu um banho de modernidade, estando prontinha para tocar nas rádios mais descoladas. Já a terceira é pura beleza orquestral, com a voz em falsete de Jeneci amparando os delicados versos em forma de carta de amor. Esse tipo de contraste, de justaposição, se repetirá diversas vezes durante o registro, sem que isso signifique necessariamente heterogeneidade excessiva ou algum tipo de falta de lógica. Se Melodia da Noite mantém a batida sutil, a melodia sinuosa, Aí Sim aparecerá para colorir o dia, com versos sobre mudança, transformação. Se Redenção é provocativa, Saudade do Meu Pai será nostálgica. E por aí vai, afinal de contas, assim é a vida: cheia de idas e vindas.


Produzido por Pedro Bernardes em parceria com Lux Ferreira, o álbum é cheio de participações especiais, como a de Lucas dos Prazeres na percussão, mestre Adelson Silva na beteria de frevo, Robinho Tavares no baixo de Vem Vem e até a Filarmônica de São Petersburgo nas cordas de O Seu Amor Sou Eu. Essa multiplicidade de artistas, de gêneros - há ainda o já citado Chico César, por exemplo -, pode ser um dos motivos de o trabalho soar tão universal, tão perfeitamente preenchido, tanto nas letras, como na sua musicalidade. Difícil saber qual o caminho a ser adotado pelo artista daqui pra frente, mas a desconstrução do menino que aos sete anos já tocava acordeão, para o homem capaz de lidar de forma mais madura tudo que lhe rodeia, parece ser uma realidade. O baile vai acontecendo / A gente se toca / Sem se tocar, canta o músico na saborosa Vem Vem. É uma das formas de ditar o ritmo, nesse trabalho imperdível.

Nota: 8,5

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