terça-feira, 9 de julho de 2019

Cinema - Eu Não Sou Uma Bruxa (I Am Not A Witch)

De: Rungano Nyoni. Com Maggie Mulubwa e Henri B. J. Phiri. Drama / Fantasia, Reino Unido / Zâmbia / França / Alemanha, 2018, 92 minutos.

Se no "democrático" Brasil de Bolsonaro a junção de fanatismo religioso, sociedade patriarcal e Estado autoritário já tem produzido, em apenas seis meses, resultados devastadores, o que dizer de países ainda mais fechados? No inacreditável Eu Não Sou Uma Bruxa (I Am Not A Witch), somos apresentados à dura realidade cultural das mulheres que nascem em países como Zâmbia ou Gana e que, por motivos variados - seja morarem sozinhas, não terem emprego ou um companheiro ou estarem na rua -, podem ser acusadas de bruxaria. O que faz com que passem a viver, a partir de então, em isolados campos de concentração como propriedade do Estado, tendo limitado o seu direito de ir e vir. Ou sendo ainda apresentadas como aberrações para turistas ávidos por selfies - mas sem nenhum espírito humanitário ou qualquer tipo de empatia pelos vulneráveis.

É exatamente essa a realidade da jovem Shula (Maggie Mulubwa). Com pouco mais do que oito anos de idade, ela é tomada como bruxa após cruzar o caminho de uma mulher que carrega um balde de água que acaba despencando de sua cabeça. Sim, um acaso fortuito é o suficiente para que uma jovem errante seja entregue ao Governo por praticar bruxaria - na teoria ninguém pega mais água porque Shula derruba os baldes. E, para ter certeza de que a menina é MESMO uma bruxa, durante uma reunião na comunidade, um homem aparentemente bêbado fala a respeito de um sonho que teria tido com a jovem - ocasião em que esta decepava a sua mão. Sim, um sonho. Bom, as decisões jurídicas sobre a questão da bruxaria são meio injustas em certos países africanos. Bom, as decisões jurídicas podem ser injustas em qualquer País, se não obedecerem um mínimo de regras em que se estabeleça, de fato, a justiça.



Estabelecida como bruxa, Shula é entregue a comunidade das bruxas, que lhe festejam com cânticos de louvor (numa das tantas belas sequências da película). A jovem passa a trabalhar como escrava na lavoura, usando uma espécie de cordão (a rédea), que lhe impede de sair dos limites estabelecidos pelo Governo. Em meio a tudo, participa de atos públicos, caso de uma espécie de julgamento em que um homem também é acusado injustamente de ter praticado roubo. É nesse momento que Shula se aproximará ainda mais do tutor governamental Sr. Banda (Henri B. J. Phiri), passando a morar com ele e sua esposa, se tornando responsável por rituais variados, como a dança da chuva e a consequente promessa ao Estado, de uma safra satisfatória.

É um filme duro, árido, tratado pela diretora Rungano Nyoni (que acompanhou tribos em que a cultura da bruxa existe, como estudo para seu filme de estreia) com um caráter documental, sendo quase raros os momentos em que a câmera se afasta de Shula (e dos demais). Lírica, a obra transborda beleza e desolação em igual medida, evocando sensações diversas no espectador. Não por acaso, sequências como a que mostra um caminhão com diversos carretéis de rédeas rompidos ou mesmo a do Sr. Banda e de Shula participando de um programa de televisão mexem conosco, nos geram desconforto e estranhamento, paradoxalmente, mantendo um fiapo de esperança. O mesmo valendo para as cenas em que as bruxas realizam seus rituais, com cânticos em meio a um cenário sombrio/avermelhado e de contraste.


Por fim, trata-se de uma obra de grande sutileza, que faz a crítica, mas sem esfregar aquilo que está propondo na cara de ninguém. Nas entrelinhas é possível ver temas como descaso dos governos com as minorias, preconceito e xenofobia, machismo, patriarcalismo, excessos do mundo capitalista (as cenas com os turistas beiram o constrangimento) e até fanatismo religioso, abordados em meio a sequências devastadoramente oníricas, funcionando quase como pesadelos áridos, cinzas, e que são fruto de um mundo em que a desesperança é a ordem do dia. Eu Não Sou Uma Bruxa foi o enviado do Reino Unido para a categoria Filme em Língua Estrangeira no último Oscar. Pode não ter se classificado para a final, mas faz com que a nossa atenção se volte para os absurdos cometidos por culturas retrógradas, preconceituosas e ultrapassadas, que costumam utilizar o medo do diferente como moeda de troca.

Nota: 8,5

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