Interessante notar como um filme de estrutura bastante hollywoodiana, como é o caso do dinamarquês Culpa (Den Skyldige), é percebido com um outro tipo de severidade quando se trata do cinema europeu. Tudo parece ser mais naturalista, com os personagens surgindo na tela como figuras absolutamente verossímeis, possíveis de existir. Se há tensão, ela é palpável. Se há sofrimento, a dor salta da tela. Talvez seja algum tipo de distanciamento, que resulte nesse sentimento. A fotografia granulada. A luz ambiental. A música quase inexistente. Não sei. Tô viajando aqui, ao mesmo tempo em que já sei que os americanos farão uma versão deles dessa pequena joia do cinema dinamarquês. E que haverá Jake Gyllenhall no papel principal - o de um policial que está sob investigação e que é "rebaixado" ao cargo de atendente de ligações de emergência na delegacia em que trabalha.
Bom, no original dinamarquês, dirigido pelo estreante Gustav Möller, o protagonista é Asger Holm (Jakob Cedergren). Em meio a ligações com pedidos de socorro os mais variados - desde quadas de bicicleta, até relatos de pequenos furtos -, Asger atende uma ligação de uma mulher que, aparentemente, está sendo sequestrada. Ao telefone, ela finge que está falando com a sua filha, como forma de despistar o sequestrador e facilitar a logística que poderá levar a polícia até a autoestrada em que está a van do criminoso. Intercalando chamadas direcionadas a outras delegacias de Copenhague, a policiais rodoviários e até a amigos policiais mais próximos (que, a paisana, também poderiam ajudar), Asger vai montando uma espécie de quebra-cabeças para que ele consiga, mesmo a distância, solucionar o caso.
Só que há um aspecto que o protagonista não parece colocar na balança nessa situação toda: o da imprevisibilidade. O apoio dos policiais de campo levará a descobertas nauseantes, aumentando a angústia não apenas de Asger, mas também do espectador, que acompanha tudo com a câmera praticamente colada na do policial. Hábil na construção de um cenário claustrofóbico, Möller realiza todo o filme no cubículo da delegacia, fazendo com que o espectador escute vozes, barulhos, passos, suspiros, choros e outras reações que ocorrerão do outro lado do telefone em nenhuma chance de reação e que transformarão a película em uma experiência não menos do que sufocante. Assistir a dor do policial que, longe, não consegue ajudar como desejaria, ao passo que ele mesmo lida com os seus próprios demônios - parece haver segredos do passado prontos para vir à tona - tornam a obra uma gratíssima surpresa dentro do gênero suspense.
Com apenas um ator aparecendo praticamente o filme inteiro, essa obra de pouco mais de 80 minutos é a prova viva de que não são necessárias explosões, efeitos especiais de última geração e outras trucagens para a composição de uma obra satisfatória: basta uma boa ideia. E que ela seja bem executada - já que, certamente na mão de outro diretor talvez o filme beirasse o delírio histrionista e irresponsável. Discutindo ainda o conceito de culpa (e seus atenuantes em crimes variados), bem como o nosso ímpeto natural de ser juiz em causas que não são nossas, o filme, enviado pela Dinamarca para a categoria Língua Estrangeira no último Oscar, ainda reserva para o terço final uma impactante reviravolta, que deixará o espectador estarrecido no sofá. Nesse sentido trata-se de um filme completo: tenso, urgente, com ótima interpretação do protagonista e uma resolução surpreendente. Não era necessária uma versão de Hollywood, definitivamente.
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