segunda-feira, 19 de setembro de 2016

Cinema - Aquarius

De: Kleber Mendonça Filho. Com Sonia Braga, Maeve Jinkings, Humberto Carrão e Irandhir Santos. Brasil / França, Suspense / Drama, 2016, 141 minutos.

Não fosse todo o falatório em cima do protesto que denunciava o golpe em curso em pleno Festival de Cannes desse ano e talvez Aquarius passasse pelas salas brasileiras como mais um ótimo filme de autor, com trama envolvente, recheado de sutilezas e com personagens multidimensionais, mas bem distante da patética dicotomia reducionista que vivemos hoje no País e que joga de um lado os coxas e de outro os petralhas, sem meio termo (hoje em dia até quem é a favor de ciclovias é taxado de comunista, só pra exemplificar). Sim, por que diferentemente do que ocorre com obras mais engajadas ou no cinema de protesto, a película de Kleber Mendonça Filho - inacreditavelmente preterida para o Oscar - não denuncia escancaradamente as injustiças sociais, não fala claramente da dura relação entre a classe operária e os patrões ou mesmo de conquistas quaisquer relacionadas às minorias. Não há nada disso no filme. Ao menos não de maneira evidente, é preciso que se diga.

Não é por acaso que a protagonista Clara (Sonia Braga), é uma senhora de 65 anos bem vividos, viúva, que mora sozinha no bom apartamento de classe média em que criou os seus três filhos na praia de Boa Viagem, no Recife. Clara, ao menos inicialmente, não está a margem da sociedade, não está passando fome, não enfrenta filas para atendimento a saúde, tem quem lhe auxilie n os cuidados com a casa e curte a justa aposentadoria de quem dedicou a vida ao trabalho como jornalista. Qual o motivo, então para a raiva mortal de boa parte da direita batedora de panela (bem como de seus articulistas) em relação ao filme de Mendonça Filho? É que o caso é que este é um filme que toma por base a sutileza para falar de experiências. E sobre como estas experiências são capazes de formar o nosso caráter, moldando a nossa personalidade e alterando a lógica do senso comum da atualidade sobre aquilo que realmente é importante em nossas vidas.



Pra exemplificar: Clara mantém uma coleção de vinis em seu apartamento e que contém, em sua essência, parte da história da família. Foi escutando eles que, na juventude, conheceu seu marido, criou seus filhos, chorou, sorriu, teve perdas e ganhos, enfim, viveu. E se os vinis funcionam como um gatilho para o resgate daquilo que verdadeiramente importa - e que vai muito para além do aspecto financeiro - assim também é com outros objetos (ou mesmo cheiros e sensações) que compõem o apartamento de Clara que, se por um lado está antigo e talvez careça de pintura, é pleno em vivências, em boas recordações, em história. (e não é por acaso que, em uma das tocantes cenas iniciais, quando voltamos ao passado para uma homenagem a uma tia de Clara, percebemos que os moveis antigos, ao invés de servirem como produtos mera cenografia descartável ou base para a colocação de bibelôs, retornam a mente da mesma tia como o local em que ela fez sexo de todas as formas imagináveis com o antigo amante)

Assim, a protagonista não precisa de dinheiro. Não precisa de um apartamento branco, asséptico, inodoro, limpo, tecnológico e sem vida, no mesmo local em que passou toda a sua existência. Essa é uma (e talvez a maior) transgressão cometida por Aquarius. O desafio. A subversão da lógica. Tanto que quando um grupo de investidores aparece no local adotando o discurso da fala mansa, da gentileza e da (aparente) generosidade, interessado em comprar o apartamento de Clara, já sabemos, com poucos minutos de exibição, que aquele espaço não está a venda. Não estará a venda. E só poderá ser adquirido quando a protagonista falecer. Algo que, a princípio, não ocorrerá tão cedo, já que Clara foge (e muito) do estereótipo da velhinha que passa os dias na casa de bingo como que se aguardasse o ocaso de sua existência, já que ela sai com as amigas para dançar, toma banho de mar em locais perigosos, bebe o seu vinho, conversa sobre tudo com plena lucidez e ainda faz sexo com um garoto de programa, se assim lhe interessar. (opa, aí pode estar uma SEGUNDA transgressão do filme e que, sim, poderá chocar as famílias de bem acostumadas com as suas vovozinhas fazendo bolo para os netos)


Apresentando o grupo de investidores como a face mais realista da meritocracia, Mendonça Filho não faz concessões na hora de mostrar o jovem de nome Diego (o ótimo Humberto Carrão) como um sujeito quase caricato que acredita ser alguém superior pelo simples fato de ter feito três anos do curso de Business - certamente pagos com o dinheiro do papai, já que família de empresários do ramo imobiliário já está na terceira geração. E se a incredulidade diante das negativas de Clara para as ofertas com valores "irrecusáveis" são uma mostra do pensamento daquela parcela da população para a qual o dinheiro definitivamente é a felicidade - o que explica o fato de a tragédia política da direita ser sempre financeira - o mesmo pensamento também povoa a ideia da filha da personagem de Sonia Braga, Ana Paula (Maeve Jinkings, em mais um ótimo papel), que, ao mostrar-se genuinamente preocupada com a mãe, também é capaz de denunciar uma certa existência vazia de significados que, adaptada a esta nova sociedade de "vencedores e perdedores", enxerga um apartamento velho, como... um apartamento velho. E assistir as discussões entre as duas em algumas das melhores sequências do filme é ver a direção de atores como verdadeiro exercício artístico, com diálogos maravilhosos, capazes de nos levar do riso ao choro em segundos. (e que também mostram que cada personagem tem a sua lógica de vida e a sua personalidade, que jamais será unidimensional ou necessariamente a mais correta)

Inspirando-se claramente em Janela Indiscreta, de Hitchcock, Mendonça Filho transforma, ainda, a câmera em primeira pessoa no nosso olhar para o mundo exterior. E será através dele que a protagonista observará não apenas o mar, as pessoas e a natureza que lhe rodeia, mas também a chegada dos investidores ou mesmo de um grupo de jovens que chega para uma festa, o que garante momentos de indistinta tensão - sensação ampliada pela ótima trilha sonora, que utiliza, em muitos casos, o mesmo som diegético já aplicado pelo diretor no imperdível O Som ao Redor. E se o elenco como um todo está maravilhoso, é o trabalho intenso de Sonia Braga um dos pontos altos do filme. Despida de qualquer vaidade, a atriz se entrega de corpo e alma a um papel que, se por um lado emociona e nos envolve, por outro mostra uma mulher que desafia o tão conhecido choque de gerações, capaz de reduzir os idosos a sujeitos dotados apenas de necessidades, para apresentar-nos alguém que possui força, identidade própria e personalidade. E que joga pra longe a lógica do sujeito mais velho desenhado como uma pessoa conservadora, idiotizada do ponto de vista político, ou mesmo preconceituosa. Talvez esteja aí uma terceira sutil transgressão. Num conjunto desafiador que talvez explique a esnobada para o Oscar, em mais um dos tantos momentos constrangedores protagonizados pelo governo golpista. Mas isso é o de menos: se você, leitor do Picanha, for capaz de superar o debate político em favor da arte, certamente encontrará em Aquarius um dos grandes filmes desse início de milênio.

Nota: 10

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