quarta-feira, 7 de setembro de 2016

Grandes Filmes Nacionais - Boi Neon

De: Gabriel Mascaro. Com Juliano Cazarré, Maeve Jinkings, Alyne Santana, Carlos Pessoa e Josinaldo Alves. Drama, Brasil / Uruguai / Holanda, 2015, 101 minutos.

Diferentemente do que ocorre com as classes mais abastadas, as escolhas profissionais das camadas mais humildes da população ocorrem muito mais pelas circunstâncias do meio em que estão inseridas, do que pelo incentivo dos pais - que, no caso dos mais ricos, não veem problemas em bancar as melhores escolas, os cursinhos particulares e as aulas de inglês. Por mais que você já tenha ouvido falar por aí que a conquista profissional daquele filho de médico famoso foi fruto de muito esforço - pensa que é fácil fechar direitinho o pote de Neston? - a grande verdade é que, para a grande maioria das pessoas, trabalhar naquilo que se gosta é tarefa praticamente impossível. E no sertão nordestino, então, por mais que boas políticas públicas para formação de jovens, como o Programa Universidade para Todos (Prouni), criado em 2004 pelo Governo Lula, tenham contribuído para que milhares de pessoas alcançassem seus sonhos, é possível dizer que o cenário ainda é um tanto desolador. (com tendência de piora com a consolidação do golpe)

Bom, nessa altura do campeonato, você já deve estar se perguntando o que todo esse preâmbulo tem a ver com o espetacular Boi Neon, dirigido por Gabriel Mascaro (de Doméstica) - e, desde já, um dos grandes candidatos a melhor filme nacional do ano. A obra, que marca a estreia do quadro Grandes Filmes Nacionais - que corrige certa injustiça que andávamos cometendo, ao não abordar as boas películas lançadas em nosso País - nos apresenta ao curraleiro Iremar (Juliano Cazarré) que trabalha ao lado de Galega (Maeve Jinkings), Zé (Carlos Pessoa) e Mário (Josinaldo Alves), além da pequena Cacá (Alyne Santana), em vaquejadas realizadas em pequenas feiras e eventos recreativos do interior. Só que, por mais que tenha carinho no trato com os animais e demonstre dedicação total a sua atividade, o sonho mesmo de Iremar era ser estilista.


O estranhamento que todos nós possamos ter por, eventualmente, um homem heterossexual, que passa os seus dias sujando as botas em meio a bosta de vaca, passando talco nas crinas e no rabo dos cavalos e andando em meio a currais apertados e feitos com madeira velha, se vai embora com 15 minutos de película, dado o naturalismo com que nos são apresentados os ideais do protagonista. Sem apelar para o estereótipo do sujeito excessivamente afetado - que poderia, eventualmente, colocar a obra na vala comum (ou no mesmo nível de esquetes de "humor" do século passado ou mesmo do Zorra Total)  - Mascaro trata as pretensões de Irandir sem nunca apelar para o deboche. Assim, quando o vemos recolhendo restos de revistas e de manequins nas feiras em que o grupo passa, para que possa exercitar o seu hobby, não apenas passamos a acreditar fielmente nesse contexto, como também passamos a torcer para um desfecho favorável de seu principal personagem.

Utilizando-se ainda de uma espécie de saborosa iconoclastia, o diretor faz uma curiosa mescla entre a lida rural e campeira com os elementos que poderiam compor um exótico desfile de moda com o envolvimento de bois, vacas ou mesmo outros animais. Nesse sentido, a presença lancinante de Galega executando danças sensuais enquanto utiliza não apenas as roupas costuradas por Irandir, mas também máscaras de cavalos, funciona bem para delimitar qual o exato alcance que a arte  (e o sonho) tão pretendidos pelo vaqueiro pode chegar. (e não ignoremos a presença magnética de Jinkings e sua Galega, uma das mulheres mais fortes do cinema atual) E quando acompanhamos a ida tímida (e levemente melancólica) do protagonista a uma espécie de gráfica para pedir o preço de fôlderes, percebemos o quanto a falta de tato para o linguajar do meio, poderia facilmente ser suplantada com a ampliação de oportunidades e com o acesso maior ao conhecimento. Especialmente pelo fato de percebermos que a parte "prática" não é o problema.


Já tradicional em filmes sul-americanos, as interpretações absolutamente naturalistas não nos fazem duvidar em nenhum momento do fato de estar diante de pessoas que levam efetivamente este estilo de vida. E se o cenário desolador e recheado de erosão e lama de alguns pontos do Nordeste serve de indicativo do estado de espírito dos sujeitos, o clima levemente divertido da interação entre o grupo, com trocas de "xingamentos" imprevisíveis, dão conta da sensação de intimidade e de amizade que permeia as suas rotinas - mesmo em circunstâncias adversas. Equilibrando ainda momentos mais evocativos - como o das patas de cavalo que executam um caminhar que se assemelha ao de uma mulher de salto alto - com outros mais singelos - como os de conversas lúdicas entre Irandir e Cacá -, Mascaro constrói uma obra plena de significados (e que essa resenha certamente não é capaz de contemplar em sua totalidade) que, se não apresenta exatamente um final feliz, da conta do profundo exercício de resignação para aqueles que não foram fruto da meritocracia. O que não é pouco.

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