segunda-feira, 26 de setembro de 2016

Tesouros Cinéfilos - O Novíssimo Testamento (Le Tout Nouveau Testament)

De: Jaco Van Dormael. Com Benoît Poelvoorde, Yolande Moreau, Catherine Deneuve e Pili Groyne. Comédia / Fantasia, Bélgica / França / Luxemburgo, 2014, 114 minutos.

Deus existe, está muito "vivo" e é um velho entediado, rabugento, beberrão e malvado que vive com a esposa e a filha de 10 anos de idade nos arredores de Bruxelas, na Bélgica. A menina, de nome Ea (Pili Groyne), cansada do comportamento abusivo e violento do pai, aproveita um momento de distração do todo poderoso para invadir o seu computador, que contém os dados de todos os habitantes da terra, para mandar uma mensagem que revelará a data de suas respectivas mortes. Sim, de uma hora para outra todos os moradores do planeta passam a saber - via mensagem de texto por celular (!) - o exato instante em que passarão desta para uma melhor. O absoluto sentimento de finitude gerará, não é preciso dizer, uma série de consequências inimagináveis e de questionamentos entre as pessoas. Afinal de contas, se sabemos o nosso exato momento de bater as botas, para que viver, trabalhar, amar, dividir, se preocupar... enfim, crer!

E será com o objetivo de fugir da ira divina que Ea empreenderá - após um diálogo sobrenatural com o falecido irmão (no caso Jesus Cristo em "pessoa") - uma fuga para a Terra, por meio de uma passagem secreta existente dentro de uma máquina de lavar, com a intenção de escrever, ainda, um novíssimo testamento, com o auxílio de seis discípulos escolhidos aleatoriamente nos arquivos do velho. É tomando por base essa premissa que subverte a lógica deste e de outros dogmas da Igreja Católica, que o diretor Benoit Poelvoorde constrói, com o o ótimo O Novíssimo Testamento (Le Tout Nouveau Testament) uma deliciosa fábula moderna que, ainda que resulte em um filme leve, colorido e divertido, não ignora o debate existencialista, passando ainda de raspão por temas relacionados ao destino, ao senso de liberdade e até mesmo ao amor nos tempos modernos.



Quem gosta dos filmes de Jean-Pierre Jeunet - especialmente Delicatessen (1991) e O Fabuloso Destino de Amelie Poulain (2001) - certamente se encantará com o estilo absolutamente visual do diretor, que não hesita em ilustrar ideias e pensamentos de todos os personagens da maneira mais palpável possível. Assim, não deixam de ser divertidas, por exemplo, as divagações de Deus Pai a respeito da criação do homem ou mesmo aqueles instantes em que, aborrecido com tudo, resolve descontar nos humanos, criando as tais pequenas desgraças do nosso cotidiano (e que costumamos atribuir a famigerada Lei de Murphy) - casos da fila ao lado que sempre é maior, da louça que sempre se estilhaçará depois de limpa ou mesmo do pão que invariavelmente cairá com o lado da geleia voltado para baixo. Vale o mesmo para o sujeito que, conhecedor da data de sua morte, resolve tentar se matar de todas as formas, procurando realizar uma espécie de "drible no destino".

Nesse sentido também será possível encontrar ecos do trabalho de diretores como Spike Jonze, Charlie Kaufman e Michel Gondry, o que pode ser considerado um belo elogio - e que também serve para dar a ideia do clima psicodélico, eventualmente soturno e da estética de sonho nonsense que ronda a película. Ainda que, aqui e ali, a obra também saiba falar sério, especialmente quando do encontro com alguns dos discípulos na Terra - propositalmente sujeitos a margem da sociedade ou integrantes de minorias, como mendigos, pervertidos sexuais ou pessoas com sentimento de inferioridade. (Naturalmente homens e mulheres aos quais um certo "toque divino" poderá fazer bem no conjunto geral e até mesmo transformar a vida, a despeito do espírito iconoclasta e da natureza subversiva que rege a película e que poderia afastar uma boa quantidade de adeptos)


E se no final dessa simpática obra a impressão que temos é a de estar num videoclipe multicolorido e adocicado do Tame Impala, isso ocorre exclusivamente pelo fato de que o filme prefere muito mais entreter e nos fazer sorrir (e até mesmo resolver as divergências entre todos os personagens passando ainda uma mensagem de amor ao próximo) do que se aprofundar em qualquer tipo de debate. Não por acaso o estilo absolutamente adocicado da película é um dos motivos que a torna um verdadeiro achado - ou um Tesouro Cinéfilo - em meio a tantas outras. Ainda que o filme não tenha conseguido faturar uma vaga entre os finalistas para Melhor Filme Estrangeiro, a indicação na mesma categoria para o Globo de Ouro se tornou praticamente um atestado de qualidade para uma obra tão querida pelo público.

Nenhum comentário:

Postar um comentário