terça-feira, 29 de abril de 2025

Novidades em Streaming - Mickey 17 (Mickey 17)

De: Bong Joon-ho. Com Robert Pattinson, Steven Yeun, Mark Ruffalo e Toni Collette. Ficção Científica / Comédia / Aventura, Coréia do Sul / EUA, 2025, 138 minutos.

"Ei, Mickey, qual a sensação de morrer?". Essa é uma pergunta que o protagonista de Mickey 17 (Mickey 17), vivido por Robert Pattinson, ouve diversas vezes no transcorrer da história. Como é esse sentimento? "Digamos, você está acostumado com isso". E, bom, esse dilema poderia marcar o ponto de partida de mais uma ficção científica com um viés mais existencialista - e que é o tipo de projeto que, em muitos casos, adoro. Aliás, não são poucos os exemplos bons de distopias do tipo - de bate-pronto lembro do ótimo Lunar (2009), que deve estar escondido em alguma plataforma de streaming e que fez sucesso antes de Black Mirror ser o que é hoje. Só que essa coisa de o mundo em 2025 operar como um grande Black Mirror em edição estendida traz também um problema: parece mais difícil sermos surpreendidos. Ou nos impressionarmos. Ainda mais ao sabermos que as consecutivas mortes de Mickey são apenas parte daquele contexto. Como é partir desta pra uma melhor? Ou, mais do que isso, como é ser simplesmente descartado? São perguntas que param no meio do caminho.

Porque o caso é de que nessa obra de Bong Joon-ho - sim, o nome por trás não apenas do oscarizado Parasita (2019), mas também de outras joias do cinema alternativo, como Expresso do Amanhã (2013) e Okja (2017) -, pouco importa a morte, a vida ou as possíveis reflexões sobre luto, memória, futuro ou passado. O capitalismo tardio é um problema de AGORA e é nele que o livro do romancista Edward Ashton, escrito em 2022, parece centrar sua força. Sim, as questões tecnológicas estão todas ali - e as operações que envolvem esses avanços podem até gerar um certo impacto (especialmente do ponto de vista do mercado, dos empregos e da substituição do homem pela máquina). Só que, nesse sentido, diferentemente do que ocorre em experiências mais metafísicas, aqui temos o exame da necessidade apenas de sobreviver. De ascender. De forma inadiável e individualista. Nem que para isso seja necessário morrer. Para viver. Num paradoxo legítimo do século.

 


Em alguma medida, esse tipo de conflito em um cenário pós-apocalíptico, com pessoas tentando sair de um espaço de vulnerabilidade a qualquer custo, já havia sido explorado no citado O Expresso do Amanhã. Aqui, Mickey é um sujeito de vida simples, um empresário do baixo escalão que, desesperado com a perseguição de um agiota com cara de poucos amigos que deseja a sua cabeça numa bandeja, resolve se inscrever em uma expedição espacial em um cargo nomeado de "dispensável" - que é o integrante da tripulação incumbido de realizar uma série de tarefas perigosíssimas no espaço e em novos planetas. Tarefas que podem resultar na sua morte, o que não chegará a ser exatamente um problema, já que ele já teve uma morte previamente induzida (de seu eu real), com sua memória sendo preservada e restaurada, o que lhe permitirá uma espécie de retorno infinito a partir de um processo de reimpressão (em que ele ressurge como um clone, com mente reimplantada e tudo). Sim, parece estranho. É. E até aí tava tudo mais ou menos interessante.

Só que não demora para que Mickey desenvolva um sentimento de paixão - algo legitimamente humano - pela agente de segurança Nasha (Naomi Ackie), que é outra viajante que está na expedição em direção do gelado planeta Niflheim. E, como dei a entender anteriormente, as coisas dentro da nave poderiam ser bastante estranhas se não fosse a vida real. Do mundo que fica pra trás pouco se sabe, que não seja o fato de o nosso planetinha ter se tornado uma espécie de Terra de ninguém. A replicação de clones não está permitida em solo terrestre, até mesmo pela controvérsia que poderia gerar (e é uma pena que não haja mais espaço para esse debate). Ainda assim o congressista Kenneth Marshall (Mark Ruffalo), que parece uma mistura de Elon Musk com Donald Trump (bem apropriada ao momento), deseja levar seu plano de colonização adiante. Arrumando uma brecha para que o procedimento da cópia humana role solta no espaço. E, bom, depois disso o filme envereda pra ação, pra perseguição, com clones dos clones em confronto, um romance torto que a gente nunca se importa inteiramente, um líder lunático tentando dominar o universo, uns bichos meio estilo Star Wars bem amigáveis e um sem fim de alegorias caóticas que poderiam ser resumidas com um "veja bem, galera, talvez pudéssemos ser melhores do que isso". Só que é um filme que morre pelo caminho. E não há clone que resolva.

Nota: 5,5 


segunda-feira, 28 de abril de 2025

Novidades em Streaming - Código de Ética (Elfogy a Levego)

De: Katatlin Moldovai. Com Ágnes Krasznahorkai, Soma Sándor, Tunde Skovran e Áron Dimény. Drama, Hungria, 2023, 104 minutos.

Ana (Ágnes Krasznahorkai) é uma professora exemplar de Artes e Literatura do Ensino Médio. Tem uma reputação ilibada, é respeitada pelos demais docentes e muito querida pelos alunos. Aliás, seus resultados são excelentes não apenas em sala de aula, local em que ela é capaz de gerar interesse genuíno dos estudantes por autores e poetas - com métodos divertidos que tornam as aulas sobre Whitman e Baudelaire mais leves -, mas também após a conclusão do terceiro ano, em vestibulares na sequência da vida acadêmica. Desde que ela começou a lecionar há mais de 10 anos no educandário húngaro Balassi é assim. Só que lá pelas tantas, Ana comete um "grave" erro. Ela resolve sugerir aos seus pupilos - um grupo de jovens na faixa de 17 anos -, uma atividade extracurricular: assistir ao filme Eclipse de Uma Paixão (1995), que conta a história dos autores dos escritores Verlaine e Baudelaire que, não apenas foram contemporâneos, mas viveram um tórrido relacionamento.

Aparentemente não há nenhum problema ou algo que impeça adolescentes próximos de atingir a maioridade assistirem a esse tipo de conteúdo, né? Esconder a homossexualidade, a diversidade das preferências sexuais ou tentar fazer com que os jovens passem ao largo de obras do tipo, simplesmente fará os gays e as lésbicas desaparecem da face da Terra, né? Claro que não. Sempre haverá um pai de família preocupadíssimo com as suas crianças - aquele "cidadão de bem" exemplar, que acha que se seu pobre filhinho tiver contato com produções como a citada acima, ele se converterá automaticamente em um ouvinte assíduo da Lady Gaga, um seguidor de Ru Paul e suas drag races e um defensor contínuo da cultura woke e do gayzismo cultural. Sim, pessoas trans usando banheiros unissex costuma ser uma preocupação permanente do conservador reacionário que adere à extrema direita. Enquanto o mundo derrete - e não apenas do ponto de vista ambiental.

 


Bom, não é preciso dizer que o ótimo Código de Ética  (Elfogy a Levego) - confesso que o título em português não me agradou muito -, é atualíssimo. Ainda mais em tempos em que pais e mães preocupadíssimos com aquilo que seus filhos consomem (mais em sala de aula do que na internet, imagino), se sentem autorizados a interferir em ementas ou conteúdos programáticos de instituições de ensino - e basta lembrar do recente caso envolvendo o ótimo livro O Avesso da Pele, de Jéferson Tenório, e toda a celeuma causada na nossa adoentada sociedade, pra percebermos que o que se vê no filme, que está disponível pra aluguel em diversas plataformas de streaming, é de um realismo atroz. É mais ou menos aquilo que encontramos no também formidável curta metragem indicado ao Oscar O ABC da Proibição dos Livros (2024) ou mesmo, de forma meio enviesada, no espetacular filme romeno Má Sorte no Sexo ou Pornô Acidental (2021).

Ana apenas indica um filme. Que os alunos sequer são obrigados a assistir. Mas Viktor (Soma Sándor), um jovem de grande sensibilidade e que tem um interesse genuíno por teatro e poesia, resolve conferir a obra no espaço privativo do seu quarto. Tudo corre mais ou menos bem até o seu pai entra no quarto e o flagra assistindo a produção. "Meu Deus, dois homens se amando?". Ok, ele não verbaliza isso. Mas pensa. E vai cobrar uma posição da escola sobre o fato de uma professora estar passando pornografia, pederastia ou o que quer que seja para os estudantes. Há um pano de fundo interessante sobre o educandário estar prestes a completar 150 anos de atividades e estar na dependência da liberação de uma linha de crédito de possíveis investidores para a sua continuidade - sendo o pai de Viktor uma pessoa influentíssima nesse sentido. "Mandei meu filho para a escola para ter uma educação adequada", esbraveja na sala da diretora esse provável seguidor apaixonado de Viktor Órban e do Escola Sem Partido. A verdade é que só muda o País. Enquanto as calotas polares derretem, a guerra comercial escala e os imigrantes são tratados como a escória humana, alguns pais acreditam em lavagens cerebrais de esquerda, em comunismo abstrato ou em ideologia de gênero. O mundo anda pra trás. E nós que lutemos.

Nota: 9,0 


quarta-feira, 23 de abril de 2025

Cine Baú - Pavor nos Bastidores (Stage Fright)

De: Alfred Hitchcock. Com Jane Wyman, Marlene Dietrich, Richard Todd e Alastair Sim. Suspense / Drama, Reino Unido, 1950, 110 minutos.

Muitas vezes tido como um filme menor de Alfred Hitchcock, Pavor nos Bastidores (Stage Fright) possui uma camada mais abaixo que parece dialogar perfeitamente com os cenários labirínticos da casa de espetáculos em que boa parte da trama se desenrola. E que envolve o poder da atuação. Da persuasão. Da arte de interpretar papeis e, em última análise, enganar o público. Filmes de suspense com triângulos amorosos, mulheres fatais, investigadores charmosos, assassinatos e motivações escusas não eram uma novidade nos anos 50 - e o próprio diretor inglês já havia encarreirado alguns clássicos no gênero. Mas aqui há uma alegoria meio óbvia sobre papeis se modificando o tempo inteiro, como no caso de Eve Gill (Jane Wyman), a aspirante a atriz que, mais adiante se converte não apenas em uma jornalista improvisada, mas também em uma empregada.

Claro que esse comportamento camaleônico tem um propósito: o de proteger o namorado Jonathan Cooper (Richard Todd), que se torna o principal suspeito do assassinato do marido da excêntrica cantora Charlotte Inwood (Marlene Dietrich), com quem estaria tendo um caso. Mas claro que num ambiente teatral e de ilusões como o dos palcos, nada será o que parece. Quando o filme - que é inspirado em um romance de 1947 escrito por Selwyn Jepson - inicia, Jonathan interrompe um ensaio de Eve para lhe relatar um grave caso: o de que Charlotte o teria visitado após assassinar o próprio marido, com o vestido sujo de sangue. Para auxiliá-la, o sujeito teria ido até a casa da cantora para buscar uma outra muda de roupas, tendo na ocasião a ideia de modificar o cenário, mexendo em moveis, quebrando portas, espalhando papeis para dar a impressão de ter havido, ali, um assalto brutal.

 


Só que, enquanto o marido de Charlotte jaz no chão, Jonathan é surpreendido por Nellie Goode (Kay Walsh), a governanta que retornava a casa e que, talvez o tivesse flagrado lá dentro. Em resumo, ele consegue fugir da polícia e agora precisa da ajuda de Eve, que o leva até a casa do seu pai (Alastair Sim), um sujeito bem humorado e extravagante que reside na costa, em uma residência idílica. Só que enquanto protege o namorado, Eve inicia uma espécie de investigação a parte. Primeiro faz amizade com o detetive Wilfred Smith (Michael Wilding). Após, finge ser uma repórter que está escrevendo uma matéria sobre o caso, subornando Nellie para que ela se finja de doente, apresentando Eve como a prima distante Doris, para que esta passe a trabalhar com Charlotte. Esse vai e vem parece confuso e parte do charme está justamente no esforço da protagonista em modificar de papel a cada novo encontro - o que faz a narrativa se desenrolar.

Por fim, Eve acha um tanto curioso o fato de Charlotte ter recém se tornado viúva, o que não a impede de se apresentar nos palcos. "O show tem de continuar", afinal - e é inegável o impacto da ambígua cena em que a personagem de Dietrich se apresenta em um palco onírico, cheio de plumas e outros adereços, ao som de The Laziest Gal in Town, de Cole Porter (aquela dos clássicos versos "não é porque eu não deveria / Não é porque eu não faria / E, você sabe / Não é porque eu não poderia / É simplesmente porque / Eu sou a garota mais preguiçosa da cidade"). Com idas e vindas, excelentes interpretações e ótimas surpresas, Pavor nos Bastidores seria criticado, mais tarde, por enganar o público até demais, utilizando como recurso um flashback pouco confiável (pra não dizer falso). Ainda assim, se levarmos em conta o uso do próprio teatro como símbolo da arte - escapista ou não - e de como nos refugiamos por duas horas nesse espaço tão artificial quanto elegante, o fato de sermos deliberadamente manipulados, nos parecerá apenas mais um truque certeiro de Hitchcock. Eu passo pano.

 

Pitaquinho Musical - Marina Sena (Coisas Naturais)

Menos autotunes enfadonhos, efeitos eletrônicos previsíveis, forçação tiktoker e latinidade plastificada e mais brasilidade, mais bucolismo, mais interior e mais vida real. Vento batendo no rosto, estrelas nítidas no céu. Uma varanda à beira-mar e uma espécie de retorno às origens. Sim, desde o cru De Primeira (2021), Marina Sena nunca deixou de ser uma das mais autênticas artistas da atualidade, por mais que o trabalho seguinte, o sensual e noturno Vício Inerente (2023) parecesse um registro menos criativo (ou mesmo de alguém que ainda estava tateando na busca por um caminho na carreira). Só que qualquer incerteza parece definitivamente apagada com a chegada do terceiro álbum, o ótimo Coisas Naturais - que é resultado de uma série de gravações fluídas, feitas em um sítio no interior de São Paulo, na companhia de seus antigos parceiros d'A Outra Banda da Lua, André Oliva e Matheus Bragança, além do produtor musical Janluska.

 


 

Foi esse time que auxiliou Marina nesse processo de reconexão artística - uma imersão que envolveu outros músicos, todos com bastante tempo pra criar, pra exercer o "ócio criativo". Em entrevista para a revista Rolling Stone, a cantora explicou ter sentido falta dessa Marina mais sangue no olho, mais destemida, mais corajosa do começo da carreira. "Mais norte de Minas" e mais Brasil enquanto um País latino. Levando em conta o conceito de Florestania, cunhado por Ailton Krenak, a artista converte o disco em uma verdadeira coletânea de canções que mesclam estilos diversos, como MPB setentista, funk, reggae, brega, bedroom pop e reggaeton, preservando o contato com a natureza e com o místico. Peça central do trabalho, o single Numa Ilha, parece resumir a ideia já na abertura, com uma experiência sensorial de sonoridade misteriosa e letra calorosa (Descalça numa ilha, é tão mágico / Você dizendo que me ama / A Lua refletindo o mar, o seu cheiro / A gente junto na minha canga). Claro, há outros grandes instantes, como em Anjo, Mágico e Lua Cheia. Marina está na melhor fase. O público agradece.

Nota: 8,5

terça-feira, 22 de abril de 2025

Novidades em Streaming - Megalópolis (Megalopolis)

De: Francis Ford Coppola. Com Adam Driver, Nathalie Emmanuel, Aubrey Plaza, Giancarlo Esposito e Shia LaBeouf. Ficção Científica / Drama / Fantasia, EUA, 2024, 138 minutos.

Metáforas tolas, diálogos e narrações em off vazias, dificuldade de compreender qual exatamente é a crítica, ausência de qualquer propósito e um senso de autoimportância fetichista e irritante. Sinceramente, são tantos os problemas em Megalópolis (Megalopolis) - o projeto megalomaníaco de Francis Ford Coppola, que agora chega às plataformas de streaming para aluguel -, que é difícil saber por onde começar. A história é que o famoso realizador de clássicos inadiáveis como O Poderoso Chefão (1972) e Apocalypse Now (1979) levou quarenta anos para conceber essa ambiciosa produção. Que custou cerca de US$ 140 milhões do próprio bolso - em um dos maiores casos de desperdício deliberado de dinheiro que se tem conhecimento. Enquanto assistia ao interminável filme, revirava tanto os olhos frente ao absurdo, que eles quase foram parar na minha nuca. É algo digno de dor de tão ruim. Quase de pena, já que a expectativa era alta.

E, vamos lá, eu não tenho problema algum com obras complexas ou mais eventualmente filosóficas e existencialistas - e que exigem do espectador uma pequena saída da zona de conforto, para que haja um maior envolvimento. Esse até é um processo bastante natural pra quem consome produções do circuito alternativo - e não quero soar pedante aqui. Mas o caso é que a grandiosidade aqui é apenas oca. Quase infantil. "O fim da raça humana será morrer de civilização" comenta alguém, citando outra pessoa (que não lembro quem) em certa altura, como que tentando resumir o que está nas entranhas do filme. Se o futuro parece incerto e sombrio, cabe aos sujeitos do presente tentarem se prevenir. Lá no meio, se a gente cavoucar bastante, vai parecer haver, em cada divagação supostamente épica de Cesar Catilina (Adam Driver), uma crítica ao capitalismo, ao fascismo, à sociedade de consumo hedonista, à burguesia e a sua sede de poder. Mas, assim, nunca fica exatamente claro.

 


Em tempos em que a realidade sempre será pior do que a mais lamentável distopia, assistir a disputas de poder familiares, talvez shakespereanas (mas sem nenhum charme), geram apenas bocejos. Sim, nesse País alternativo que é uma Nova York retrô futurista - chamada de Nova Roma -, os poderosos e aristocratas têm nomes que aludem aos romanos (Cesar, Cícero, Crassus, Clódio), vestindo togas, adereços e adotando cortes de cabelo de séculos atrás, mesclados com capas e outros enfeites que parecem de algum lugar entre o início do século passado e um futuro já meio kitsch. E será em um evento televisionado por uma emissora sensacionalista, que Cesar apresentará para os moradores da cidade, incluindo o prefeito Franklyn Cícero (Giancarlo Esposito), uma espécie de substância milagrosa, de nome Megalon, que possibilitará desbloquear o potencial artístico da cidade, que estaria meio preso em visões políticas ultrapassadas e em uma inércia galopante. 

Cesar, esse jovem meio idealista, encontrará resistência de Cícero que não acredita que o caminho seja o das grandes revoluções. Ainda assim, o sujeito receberá apoio, na surdina, de Julia (Nathalie Emmanuel), a filha do prefeito (para desgosto dele). Em paralelo, outras figuras (nem tão) relevantes se movimentarão em suas ambições, estando entre elas a apresentadora de TV Wow Platinun (Aubrey Plaza), seu tio milionário Hamilton Crassus (Jon Voight), seu primo Clodio (Shia LaBeouf) e o motorista e assistente de Cesar, Fundi (Laurence Fishburne) - e, sério, acho que não citei até aqui 20% dos personagens que surgem, aqui e ali, nesse emaranhado. No mais, existem uma série de supostas ousadias estilísticas que não servem pra coisa nenhuma. Uma delas, a principal: Cesar é capaz de parar o tempo. Mas nunca sabe o quê fazer exatamente com essa habilidade, que se converte ali adiante na mais superficial alegoria. O tempo está passando depressa? Ou não? Qual a ideia por trás? Em certa altura um satélite russo está para cair na Terra, justamente em Nova Roma e não pode haver nada mais anos 80 do que um satélite russo caindo em solo estadunidense.

 

 

Há ainda outras metáforas vazias, como o instante em que estátuas que representam figuras da Justiça começam a ruir - uau, a decadência jurídica do tecido social -, ou aquela em que uma virginal cantora pop surge em cena como uma espécie de representante da pureza perdida nessa sociedade em declínio (que mais adiante só se revelará completamente hipócrita, naquela que talvez seja a sua única boa sequência). É tudo tão desconectado, com cada ponto sendo unido sem muita coerência, que a impressão que temos é a de estar diante de uma grande esquete de teatro amador e alternativo em que, em certa altura, não entendemos coisa com coisa. E só torcemos pra acabar logo pra poder ir embora. Com interpretações ruins - especialmente um Adam Driver empolado, verbalizando cada frase com uma solenidade opaca - e com personagens que a gente não dá a mínima, o filme ainda desperdiça aquela que poderia ser a sua fortaleza: no caso, a parte técnica. Já que a impressão, em certos planos, é de estarmos diante de uma cidade feita com uma versão beta de IA. A gente não tem como parar o tempo, assim como Cesar. Então resta lamentar as quase duas horas e meia cinéfilas desperdiçadas nessa bomba.

Nota: 0

quarta-feira, 16 de abril de 2025

Tesouros Cinéfilos - Quase Famosos (Almost Famous)

De: Cameron Crowe. Com Kate Hudson, Patrick Fugit, Billy Crudup, Frances McDormand e Philip Seymour Hoffman. Comédia, EUA, 2000, 122 minutos.

"Blue jean baby, LA lady / Seamstress for the band / Pretty eyed, pirate smile / You'll marry a music man". Existem alguns filmes que possuem algum tipo de mágica meio inexplicável, que faz com que pareçam envoltos em uma névoa nostálgica. Em linhas gerais essas costumam ser obras sonhadoras - mas um tipo de sonho meio vida real, de memória afetiva (ainda que nem saibamos direito o por quê), que vai direto ao coração. Vocês que são fãs de cinema, certamente já sentiram isso. Aliás, hoje em dia no mundo das artes existe todo um mercado que evoca esse tipo de saudade tão carinhosa quanto melancólica. De lembrança sombria, mas que entusiasma. A nostalgia, ao cabo, vende. E devo confessar que é justamente esse o tipo de sentimento que me invade, a cada vez que reassisto o Quase Famosos (Almost Famous), filme de Cameron Crowe que reestreou no Max e que completa 25 anos de lançamento nesse 2025.

Pra quem viria a se tornar jornalista - meu caso -, tendo passado parte da juventude acumulando edições de revistas como Showbizz, SET e Bravo!, o sonho de integrar uma editoria de cultura era quase onipresente. O leitor, em muitos casos, queria ser aquelees repórteres. Estar naqueles ambientes - de bastidores, tensos e vívidos. O tipo de sonho juvenil que é justamente aquilo que motiva o jovem William Miller (Patrick Fugit) a rabiscar os primeiros artigos sobre rock, que enviaria para fanzines locais de San Diego. Aos 15 anos, William sempre foi vigiado de perto por sua mãe superprotetora Elaine (Frances McDormand) - uma viúva metade do tempo conservadora e na outra hippie -, que fica de cabelos em pé com a possibilidade de o caçula bater asas e enveredar por esse universo de cultura pop, de estrada, de turnês, de loucuragem. Só que o caso é que já era tarde. Quando a irmã do rapaz sai de casa para ser aeromoça (fugindo assim das amarras da mãe), ela lhe deixa um pequeno tesouro: sua coleção de discos de vinil, cheios de obras-primas que influenciariam a vida de William (na juventude interpretado por Michael Angarano) pra sempre.

 


O ano é 1973. Época de efervescência cultural, de contracultura e de veículos de imprensa importantes no meio - como no caso da famosa revista Rolling Stone. Aliás, é justamente um artigo sobre um show do Black Sabbath, escrito por William, a pedido de Lester Bangs (o sempre saudoso e ótimo Philip Seymour Hoffman) que chama a atenção dos editores do periódico. Que lhe contratam como freelancer para que ele acompanhe a turnê dos emergentes roqueiros do Stillwater - com quem o protagonista havia tido contato nos bastidores da apresentação da banda de Ozzy Osbourne. Foi a partir da amizade improvisada com a groupie Penny Lane (Kate Hudson) que William consegue entrar no backstage. "Não esqueçam que ele é o inimigo!" brada o vocalista do Stillwater diante da investida do adolescente, que se empenha em juntar material pra reportagem (como que condensando toda a imprensa cultural em um mesmo balaio). É o início de uma relação bonita e complexa não apenas com Penny, mas também com a banda, que tem em seu centro o sedutor guitarrista Russel Hammond (Billy Crudup).

Em linhas gerais esse pode ser considerado o filme de amadurecimento por excelência. Em meio as ligações insistentes da mãe - que tem dificuldade de conversar com o rapaz (resumindo seus recados telefônicos a um comovente, angustiado e engraçado "não use drogas") -, o ônibus da banda percorre uma série de cidades, enfrentando desafios variados, que vão de produtores mal intencionados, públicos nem sempre convidativos e, especialmente, as disputas internas de egos e vaidades, que vão deteriorando aos poucos as relações de todos. Olhando com olhos curiosos de quem vive várias primeiras vezes - beijos, sexo, bebida, show de rock, viagem longa -, William, um sujeito nada cool e com cara de parecer mais velho do que de fato é, empreenderá uma jornada ao infinito na tentativa de entrevistar Russell, que nunca parecerá realmente disponível (com suas oscilações de humor, que vão da instabilidade ao sentimentalismo na mesma sequência).

 

 

E como de praxe nos filmes de Cameron Crowe - e este tem claríssimas tintas autobiográficas -, temos na trilha sonora uma de suas fortalezas, com cada uma das músicas de artistas diversos, como, Velvet Underground, Rod Stewart, The Who, Cat Stevens, Led Zeppelin e Simon & Garfunkel, contribuindo para dar o tom da narrativa. Para explicar, ainda que por linhas menos óbvias, esse ou aquele momento. E é aí que chegamos àquele que é o momento mais comovente da produção, que é o instante em que, depois de um desentendimento homérico e uma noite sem fim de bebedeira e drogadição de Russell, os viajantes se unem no ônibus para cantar, no alvorecer, o clássico Tiny Dancer, de Elton John. Um momento de comunhão que ficaria famoso não apenas por sua beleza lúdica e polida, mas também porque os executivos não concordavam que essa parte, feita meio que no improviso, permanecesse no corte final. Ao cabo esse é uma sequência de união pela música, que reforça esse ideal mesmo nas adversidades. E que nos ajuda, como espectadores, a olhar para todos aqueles sujeitos - desajustados, fraturados, incertos, cheios de medos futuros e anseios presentes - como aquilo que de fato são: apenas humanos. "Você está em casa", diz Penny a William em certa altura. É como todos nós nos sentimos. Comovente.

Pitaquinho Musical - Seu Jorge (Baile à la Baiana)

Vamos combinar: se existe alguém versátil no mundo da música essa pessoa é o Seu Jorge. Capaz de trafegar por estilos brasileiros variados, como samba, funk e MPB, o artista jamais ignora o poder da conexão com públicos estrangeiros e as possibilidades de levar a sua arte para além dos limites geográficos do País - e basta pensar nas versões de David Bowie para a trilha sonora de A Vida Marinha com Steve Zissou (2003), de Wes Anderson, ou nas canções em espanhol ou italiano da época de Cru (2004) para que essa certeza só aumente. Só que, ainda assim, talvez faltasse em sua discografia aquele registro que condensasse todas as possibilidades da nossa música. E que fosse capaz de representar toda a nossa diversidade e riqueza culturais. O que ele parece alcançar com Baile à la Baiana, seu sétimo álbum de estúdio.

 


"Esse disco é uma junção de influências que venho acumulando ao longo dos anos, misturando minhas raízes cariocas com a força da música preta da Bahia", mencionou o músico em entrevista à Rolling Stone, afirmando ainda que esse é um trabalho para dançar, se divertir e celebrar a vida. De essência festiva, mas sem ignorar as questões sociais que costumam perpassar as suas músicas, o disco se converte rapidamente em uma experiência de altíssima voltagem. A inspiração, de acordo com o artista, teria vindo depois de uma visita ao espaço cultural Galpão Cheio de Assunto, em Salvador, um local que abrigava música, exposições e outras expressões de convergência criativa. O resultado é uma mistura de soul, funk, afropop, carimbó e samba rock, que resultam em uma sonoridade harmônica e enérgica, sendo impossível resistir à joias como Sábado à Noite, Batuque, Lasqueira, Gente Boa se Atrai e Sete Prazeres.

Nota: 8,5

terça-feira, 15 de abril de 2025

Novidades em Streaming - A Ordem (The Order)

De: Justin Kurzel. Com Jude Law, Nicholas Hoult, Tye Sheridan e Jurnee Smollett. Drama / Policial / Suspense, EUA, 2024, 116 minutos.

"É difícil um homem honesto ganhar essa quantia de dinheiro no nosso País. É porque esse não é mais o nosso País". Sim, é meio inevitável termos uma sensação meio que de déjà vu quando assistimos ao diálogo acima, entre dois supremacistas brancos dos Estados Unidos, e que é parte do filme A Ordem (The Order), que chegou não faz muito à plataforma da Amazon. Após um assalto bem sucedido em um banco de uma pequena cidade do interior do Idaho, a dupla divaga sobre aquilo que eles acreditam ser o problema da sociedade americana, que estaria envolta em uma suposta decadência moral, que resulta em perda de espaço por parte de homens brancos, héteros, cidadãos de bem. Que só querem formar suas famílias, ir na Igreja, rezar, humilhar minorias, dar um ou outro tiro de espingarda, explodir algo ou alguém que desagrade. Nada de muito diferente daquilo que prega o redneck fã do Trump, em seu dia mais comum.

Só que no filme de Justin Kurzel, que é inspirado em eventos reais, não estamos em 2025. Ou numa cruzada contra imigrantes que retiram vagas de emprego provavelmente arrombadas de moradores do Arkansas e do Texas. Aqui, estamos em 1983 e quando essa boa obra começa, a impressão que temos é a de que acompanharemos um daqueles suspenses policiais típicos dos anos 90, sobre o agente do FBI em fim de carreira, que vai para o interior se aposentar e que se depara com as maiores atrocidades. Sim, em partes é mais ou menos isso. Mas a violência não é apenas a violência em si. Com um serial killer meio desvairado matando sem muito critério. Tanto que quando o policial veterano Terry Tusk (Jude Law) chega ao pequeno Condado de Kootenai, ele é surpreendido não apenas com o relato do jovem xerife Jamie (Tye Sheridan), que menciona a existência de uma quadrilha de falsificadores de dinheiro, mas com o fato de que esse grupo pode ter ligações com células neonazistas e antissemitas, que estariam se fortalecendo nas redondezas.

 


As coisas começam a se encaixar quando Jamie e Terry investigam o assassinato de um homem que teria conexões com esses grupos de ódio - se deparando com um cadáver enterrado em uma cova rasa. De forma concomitante a esse crime e aos roubos de banco, a dupla também precisa lidar com os seguidos atentados à bomba em sinagogas, em sex shops ou casas de cinema adulto - espaços de suposta "perversão" que os hipócritas da extrema direita costumam abominar (ao mesmo tempo em que mamam os parças na broderagem). Claro que não vai demorar para que os investigadores cheguem à uma Igreja existente em uma comunidade afastada, onde o pastor local lhes informa sobre a dupla Bruce (Sebastian Pigott) e Gary (George Tchortov), que teria sido expulsa da ordem das Nações Arianas por causa da prática de crimes como falsificação. O fato de a Igreja local ter uma série de imagens de suásticas e de letreiros estilo white power? Capaz, tudo certo. Só um detalhe. Eles não incomodam ninguém. 

Só que o caso é que os roubos de grana alta integram um plano ainda maior. E envolvem um jovem líder de nome Bob Mathews (Nicholas Hoult), que pregava uma espécie de revolução supremacista nos Estados Unidos, que envolveria o extermínio de pretos, judeus, comunistas e outras minorias, que estariam tornando a sua raça "impura". Sim, em 1983 o papo era o mesmo pregado nas altas rodas republicanas da atualidade. Esse sonho de uma América higienizada, livre de misturas raciais, com uma meia dúzia de famílias brancas, bem nascidas e agrupadas, se perpetuando infinitamente. "É hora de recuperar a terra que foi prometida aos nossos pais. Senão onde estaremos em dez anos?", brada Bob, durante uma pregação, em um dos momentos mais impressionantes. Talvez esse filme fosse menos perturbador se aquilo que assistimos estivesse em um passado distante, agora apenas enterrado. Que as ideias propagadas em panfletos bizarros, como o tal Turner Diaries fossem motivo apenas de estudo para que a história nunca mais se repetisse. Mas em tempos em que grupos de incels e de redpills se sentem pertencentes a coletivos que lhes prometem um retorno a essa terra prometida, que homens médios de autoestima baixa encontram propósito na culpabilização do outro como forma de compensar as suas próprias falhas ou fraquezas, o caso é que a alegoria se torna assombrosamente real. O que faz com que essa obra cresça ainda mais.

Nota: 8,0 


segunda-feira, 14 de abril de 2025

Novidades em Streaming - O Quarto ao Lado (The Room Next Door)

De: Pedro Almodóvar. Com Juliane Moore, Tilda Swinton, John Turturro e Alessandro Nivola. Drama, Espanha / EUA, 2024, 107 minutos.

Vamos combinar que não é de hoje que Pedro Almodóvar vem numa toada mais melancólica em suas obras. Talvez seja a experiência. Ou o senso de finitude. O que faz com que suas produções mais recentes venham banhadas em momentos mais introspectivos - ou menos caricatos. Claro que os temas ligados à morte (e ao medo dela), à memória (coletiva ou não) e a busca por uma certa paz de espírito para seguir adiante, nunca deixaram de fazer parte dos seus filmes. Em meio às cores quentes e saturadas e aos dramas novelescos, essa consciência de que somos seres complexos, cheios de medos, desejos e traumas nem sempre bem resolvidos, sempre esteve presente. Mas é preciso que se diga que nos recentes Dor e Glória (2019) e Mães Paralelas (2021) parece haver um tipo de silêncio mais reinante. Que preenche espaços que, anteriormente, talvez fossem ocupados por barulhos histriônicos. Vai saber.

O caso é que essa impressão, proposital ou não, combina bastante com O Quarto ao Lado (The Room Next Door), que, baseado em obra de Sigrid Nunez, chega agora em diversas plataformas de streaming. Em entrevistas, o diretor chegou a mencionar a dificuldade que temos, como seres humanos, de falar a respeito da morte, por mais inevitável que ela seja "Não é natural que algo que esteja vivo deva morrer", comenta ainda na narração em off do início da projeção, a personagem Ingrid (Juliane Moore) uma escritora de best sellers que está em uma livraria, para a sessão de lançamento de sua nova publicação. Essa parece ser a deixa ideal para que, ali, naquele ambiente movimentado por fãs, uma antiga conhecida lhe dê uma notícia um tanto trágica: sua amiga Martha (Tilda Swinton), uma antiga colega de trabalho de quem ela meio que perdeu o contato, está com um câncer terminal.

 


Ingrid resolve visitar Martha. E é desse reencontro provocado por uma situação adversa que se estabelecerá um vínculo que determinará o futuro de ambas as mulheres. Sim, falando assim pode não soar tão interessante. Mas o que o diretor espanhol faz aqui é um pequeno tratado sobre estoicismo, esperança e autopiedade nos tempos atuais. Tempos, aliás, de avanço da extrema direita e de uma agenda antiambientalista que, de uma maneira bastante curiosa, se encaixará mais adiante na história. Especialmente após a aparição de Damian (John Turturro), um escritor que já teve algum tipo de relacionamento amoroso com ambas as mulheres no passado. Em suas recordações, em meio a momentos tristes e de euforia, Martha contará a Ingrid sobre como ficou grávida, no passado, de um jovem que foi para o Vietnã e que voltou traumatizado pela guerra - e com quem ela teve uma filha, Michelle, com quem ela perde contato após uma tragédia familiar.

[SPOILERS A PARTIR DAQUI] Já Ingrid se apresenta como a figura onipresente em um momento delicado para Martha que, desesperada em meio a tratamentos experimentais que dão errado e o receio generalizado de ter uma morte excessivamente dolorosa, faz uma proposta extravagante para a amiga: a de que ela lhe auxilie na condução de um processo de eutanásia, com pílulas que ela adquire na deep web. Para além de toda a complexidade ética ou os questionamentos morais que decorrem do fato, o caso é que Almodóvar coloca uma pulguinha atrás da orelha do público, em mais um tema considerado tabu em vários países do mundo: as pessoas deveriam ter o direito de simplesmente morrer, de forma confortável e assistida, se assim desejassem? Como se fossem criminosas, ambas alugam uma casa de campo meio escondida no Airbnb, para que a ideia amadureça. E claro que tudo isso será uma boa desculpa para mais uma experiência soturna, de humor torto e absolutamente cativante do espanhol. 

Nota: 8,0


quarta-feira, 9 de abril de 2025

Tesouros Cinéfilos - Contos Proibidos do Marquês de Sade (Quills)

De: Philip Kaufmann. Com Geoffrey Rush, Kate Winslet, Joaquin Phoenix e Michael Caine. Drama / Biografia, Reino Unido / EUA / Alemanha, 2000, 124 minutos.

"O homem que altera sua maneira de pensar para agradar os outros é um tolo." Se em pleno 2025 as "famílias de bem" são capazes de se aterrorizar, se atormentar, arrancar os próprios cabelos com um livro um pouco mais descritivo na hora de relatar um ato sexual - ainda que no cerne da mesma obra esteja a crítica ao racismo estrutural e o preconceito em suas mais variadas formas -, imagina como não deve ter sido no final do Século 18, na França governada por Napoleão, e que marcaria o encarceramento do Marquês de Sade. Famoso por sua literatura, provocativa, obscena, iconoclasta, libertina, o Marquês (seu nome real é Donatien Alphonse François) teria sido preso não apenas por seus romances e novelas que denunciavam a hipocrisia reinante da época, mas também por blasfêmia e supostos crimes sexuais, como estupro e outros abusos. E é mais ou menos esse o pano de fundo para o delicioso Contos Proibidos do Marquês de Sade (Quills), obra de Philip Kaufmann que completa 25 anos de lançamento em 2025.

Sim, a conduta do Marquês (vivido pelo ótimo Geoffrey Rush) pode ter sido questionável. E talvez até siga sendo até hoje - e uma pesquisa breve nos permitirá compreender a complexidade da sua personalidade e as infinitas polêmicas em que ele se meteu. Da prisão, publicou anonimamente uma série de livros, entre eles Justine, que é mais ou menos o ponto de partida da produção, que foi injustamente esnobada na cerimônia do Oscar daquele ano (a despeito de uma ou outra indicação em categorias técnicas). O manuscrito de Justine - sobre uma jovem que se torna escrava sexual de monges em um mosteiro e que, salva por um cavalheiro, acaba presa também por ele -, é enviado para fora do sanatório de Charenton com a ajuda da lavadeira Madeleine (Kate Winslet), que entrega o material para um cavaleiro anônimo. De lá para a editora e para as ruas e para o mercado negro e para mundo. Chegando ao imperador, que se horroriza com o teor pornográfico do material. A solução? Calar o Marquês. Inicialmente, queimando seus livros em praça pública. Depois, enviando o médico psiquiatra Royer-Collard (Michael Caine) pra tentar dar jeito na mente (supostamente) perturbada do sujeito.

 


Claro que essa tentativa de passar um corretivo - com cheirinho de censura -, não será bem recebida pelo próprio Marquês (que, em Charenton vive com alguns luxos, como acesso a uma biblioteca, móveis, vinhos e outros confortos), mas também pelo abade Du Coulmier (Joaquin Phoenix) que, com seu espírito benevolente e, em alguma medida, progressista pra época, tenta coordenar o local de forma mais afetuosa ou menos violenta. Já os métodos de Royer-Collard beiram a tortura institucionalizada, com afogamentos forçados e outras medidas drásticas e, claro, não demorará para que o conservadorismo atroz do psiquiatra, entre em choque com as ideais libertinas de Sade - que tenta melhorar a sua imagem por meio de aulas de teatro ministradas aos demais internos e com o esforço hercúleo de jamais publicar o que escreve. O que para a sua mente borbulhante talvez seja o pior dos castigos. E é nesse cai e vem que, lá pelas tantas, uma apresentação teatral em Charenton, com Royer-Collard e sua nova esposa na plateia - a adolescente Simone (Amelia Warner) - instalarão o caos.

Divertido, sedutor, excitante e por quê não, ofensivo, o filme é um deleite, especialmente no que diz respeito às interpretações. Rush parece bem à vontade no papel de um sujeito caótico e imprevisível, que jamais se renderá às imposições de seus algozes, o que reforça também o poder da arte como veículo de quebra de padrões, de subversão e de iconoclastia. Em uma das tantas discussões com o abade, um Phoenix correto, o religioso praticamente implora para que o protagonista utilize o seu talento para escrever sobre as coisas belas e poéticas do mundo que nos rodeia. "Eu escrevo ficções, não tratados morais", exalta-se Sade. Aliás, o filme de Kaufmann, que é baseado em uma peça de teatro de mesmo nome dirigida por Doug White no circuito Off Broadway, é recheado de tiradinhas bem humoradas, que funcionam bem dada a personalidade cativante do protagonista. Aliás, quando Du Coulmier aponta, por exemplo, o absurdo por trás da mera existência de Justine - e de sua circulação deliberada pelo País -, o Marquês pega o tomo na mão e concorda: "sim, olha a falta de qualidade desse papel, a letra pequena".

 

 

E, claro, importante dizer que por mais que o filme se posicione como favorável ao poder da arte acima de tudo - ainda mais quando envolvem proibições pautadas pelo moralismo religioso -, Sade nunca é retratado como o heroi excessivamente injustiçado e sim como a figura complexa que, de fato, ele pareceu ser. Seus crimes podem ter sido apenas uma alucinação de quem queria condená-lo, achando que as atrocidades pulavam para fora das páginas? Talvez. Ou não. Vai saber. Ainda assim, em tempos em que a extrema direita parece ter desejos autoritários de impedir esta ou aquela obra de circular por ser supostamente ofensiva - lembremos o curta-metragem O ABC da Proibição de Livros indicado ao Oscar no ano passado -, uma experiência fílmica feita com vinho, sangue, vísceras e alma e que evidencia o poder libertador da literatura e de outras expressões culturais, merece toda a consideração. Ainda mais pelo fato de, para além do tema, ser um filmaço, tecnicamente bem executado cheio de suspense, violência, tesão e fúria.

terça-feira, 8 de abril de 2025

Pitaquinho Musical - Perfume Genius (Glory)

Aparentemente a "temporada da feiura" ficou pra trás. Ao menos em tese, já que Glory, o sétimo registro de inéditas de Mike Hadreas como Perfume Genius, pouco lembra o hermético e pouco palatável Ugly Season, de 2022 - e que interromperia, ao menos de forma momentânea, a gradual aproximação do artista de uma sonoridade mais acessível, nostálgica e primaveril, como no caso do delicado Set My Heart on Fire Immediately (2020), que parece ter sido o ápice dessa proposta. É claro que neste novo trabalho os temas recorrentes do compositor - e que vão de medos pós pandêmicos, passando pela sensação de isolamento, identidade queer e os temores provocados por pensamentos intrusivos - surgem iluminados por sintetizadores suaves e um certo minimalismo no todo, que parecem jogar algum tipo de luz sobre a escuridão. "Um fio condutor desse álbum é a antecipação da dor", explicou Hadreas em entrevista à Stereogum.

 

 


Um bom exemplo nesse sentido pode ser percebido justamente na inaugural It's a Mirror, que abre o registro. "Essa é uma canção sobre se sentir sobrecarregado, ou se sentir verdadeiramente mortal ou frágil" resumiu na mesma entrevista, explicando ainda que esse tipo de instabilidade parece ser parte do mundo na atualidade pós covid. "O que eu ganho sendo tão bem resolvido? / Ainda corro e me escondo quando batem à porta", canta o artista em uma base de percussão e violão que crescem no encontro dos versos introspectivos, que nos arremessam de forma instantânea pra esse ambiente entortado, com o espelho sendo uma metáfora para o olhar pra nós mesmos. Em outras faixas, como no single Clean Heart, o medo das mudanças e o senso de finitude dão o tom, em meio à produção limpa, de melodia onírica e poesia enigmática (O tempo, ele faz um coração limpo / Quando você está a quilômetros de distância de tudo). Já na linda Left for Tomorrow há um clima meio sobrenatural que aparece e some em meio a versos existencialistas. Soturno, delicado, melancólico, sobrenatural, grandioso. O Perfume Genius segue colocando beleza na esquisitice do mundo.

Nota: 8,5

Novidades em Streaming - Acompanhante Perfeita (Companion)

De: Drew Hancock. Com Sophie Tatcher, Jack Quaid, Rupert Friend e Megan Suri. Suspense / Ficção Científica, EUA, 2025, 97 minutos.

[ATENÇÃO: ESSE TEXTO TEM SPOILERS]

Robôs que adquirem algum tipo de consciência e que, frente a toda crueldade e maldade dos seres humanos, tentam a todo o custo se libertar deles. Vamos combinar que esse tipo de história - atualmente bastante frequente na coleção de episódios apenas medianos de Black Mirror - não chega a ser uma novidade. Em épocas de inteligência artificial embasbacante - e eventualmente ameaçadora (ao menos do ponto de vista utilitário) -, um filme como Acompanhante Perfeita (Companion) ainda é capaz de nos surpreender? E como se já não bastasse esse recurso narrativo pra lá de batido, aqui, ainda temos o suspense da casinha isolada no meio do nada, onde um grupo de amigos se reúne para um final de semana e que, com cinco minutos de filme, a gente sabe que as coisas começarão a dar errado. "Acho que a Kat não gosta de mim", diz Iris (Sophie Tatcher), já na chegada ao local, que sequer aparece no mapa do GPS.

Ok, talvez não fosse um grande problema recorrer a esses recursos pra lá de óbvios, mas o caso é que a obra de Drew Hancock não funciona muito bem em nenhum gênero em que ela tenta, de forma atrapalhada, existir. Como suspense? Bom, simplesmente na primeira linha de diálogo a gente já sabe que Josh (Jack Quaid, com a mesma cara de songa monga de sempre) vai morrer. Porque uma narração em off de Iris nos avisa disso. Como ficção científica existencialista? Nada. Não há nada que aprofunde os eventuais dilemas morais de "namorar" um robô ou uma inteligência artificial qualquer, que já não tenha sido feito anteriormente, de forma muito mais inteligente e com boas reflexões, como nos casos de Ela (2013) e Ex-Machina: Instinto Artificial (2015), por exemplo. Romance heroico? Josh, a despeito de ser um cara boa pinta, parece ser um tipo de incel pós-moderno, que não consegue se relacionar com o sexo oposto. Mas até a respeito disso não conseguimos ter alguma certeza. Não há nada sobre a vida daqueles personagens, para além do final de semana em grupo.

 

 


Claro, lá pelas tantas a gente compreenderá as motivações de todos ali. No grupo parece haver um vilão cruel - um russo (sério, em 2025), que é justamente o dono da casa e que possui negócios escusos que nunca ficam muito claros -, e nada mais justo que dar cabo dele. Como? Transformando a protagonista robô, devotíssima à seu dono, na assassina involuntária. Claro que ser apenas um objeto feito para o uso de seres humanos de códigos éticos questionáveis ("ei, eu comprei você para que você me satisfaça sexualmente, então, apenas durma") já converteria Iris meio que, automaticamente, na mocinha da história. Só que, a menos que haja alguma alegoria mais profunda sobre opressão de minorias ou algum tipo de metáfora sobre masculinismo tóxico ou a respeito de misoginia que eu não tenha pego no ar, o fato de torcer por uma robô apenas por torcer, tornando todas as pessoas do entorno em figuras lamentáveis, é de uma misantropia meio atroz. E, sim eu já tô flertando com a misantropia. Basta ver o mundo. Não preciso muito desse filme pra isso.

Em linhas gerais, a despeito de um ou outro mérito na produção, há absolutamente pouco espaço para a tensão levada até um certo limite, já que qualquer pessoa que tenha lido uma resenha descritiva, ou assistido o trailer já sabe que temos uma robô, um namorado babaca, uma casa na floresta e alguns crimes. Por vezes eu cheguei a me perguntar se a obra teria mais estofo se saísse daquele microcosmo frágil de meio dúzia de pessoas com suas atitudes estúpidas e mesquinhas, que ninguém se importa. O que tá rolando fora do Twitter? No mundo real, namorar robôs é comum? Eles nunca dão defeito ou descambam pra algum tipo de violência, estando sujeitos a redpills aleatórios, que as adquirem - sempre bonitas, com suas peles de borracha perfeitas -, diretamente de seus quartinhos fedendo a Doritos e Fanta? Por fim, acho que o mundo cresceu meio que demais, pra que consigamos prestar atenção a um filme desses. Especialmente sem alguma materialidade que instigue o debate. Robôs em fuga, correria, sangue, violência, casa isolada. Nos anos 90 - época em que Iris, do Goo Goo Dolls, que a produção tenta nostalgicamente nos forçar - talvez rolasse. Hoje em dia, nem pra distopia serve.

Nota: 4,0 


sexta-feira, 4 de abril de 2025

Cinema - Parthenope: Os Amores de Nápoles (Parthenope)

De: Paolo Sorrentino. Com Celeste Dalla Porta, Gary Oldman, Luisa Ranieri e Silvio Orlando. Drama / Romance, Itália / Franã, 2024, 137 minutos.

Quem acompanha a carreira do diretor italiano Paolo Sorrentino sabe: suas obras costumam ser experiências oníricas, sinuosas, surrealistas, existencialistas, filosóficas, sensuais e artísticas. É assim que ele construiu uma sólida carreira, em que filmes pontuados por fragmentos servem como a desculpa mais do que ideal para debates - nas entrelinhas, que seja -, de temas como luto, memória, velhice, artes, gastronomia, paixão e tesão, claro. Ao cabo, produções como A Grande Beleza (2013) e A Juventude (2015) servem quase como um pequeno estudo antropológico do comportamento humano - nossos erros e acertos, anseios e medos, desejos reprimidos ou não, tudo embalado com um quezinho de sofisticação burguesa que, por vezes, parece no limite de sua própria decadência. E todo esse expediente se repete no saboroso Parthenope: Os Amores de Nápoles (Parthenope).

Assim como no ainda recente e premiado A Mão de Deus (2021), Sorrentino retorna novamente para a sua cidade Natal para narrar a história de amadurecimento de Parthenope (Celeste Dalla Porta), jovem napolitana que nasce (metaforicamente) das águas e, tal qual uma deusa grega, parece enfeitiçar qualquer um que cruze seu caminho, com sua beleza estonteante, inteligência acima da média - que lhe faz ter "sempre a resposta certa" -, e comportamento ao mesmo tempo misterioso, atrevido e sensual. A exuberância da protagonista é completada pelas próprias imagens da geografia da cidade em si, com suas ruas, cores, sabores, águas, belezas mundanas e arquitetura onipresente praticamente saltando da tela. "Você não tem ideia da inquietação que sua beleza causa", comenta em certa altura o escritor John Cheever (Gary Oldman), como que, alegoricamente, resumindo não apenas a musa que se torna sua amiga íntima, mas também a cidade.

 


Com vários saltos temporais, a história se inicia em 1950 para, depois derivar para 1968 e 1973, com outros pequenos pulos nas décadas de 70 e 80, até chegar em 2023. Em cada um desses períodos, Parthenope é retratada como um espírito livre, determinado e idealista, que flama pela cidade como uma espécie de Marcelo Mastroiani de A Doce Vida (1960), saindo de um núcleo a outro, uma relação a outra, um encontro fortuito aqui e ali para seguir a sua vida de forma corajosa, na busca de fugir do papel que a sociedade reserva às mulheres (de donas de casa obedientes e preocupadas com a família) - e de também ignorar as investidas dos vários homens do entorno, que lhes nutrem demasiada paixão. Estando entre eles Sandrino (Dario Aita), o filho da governanta da luxuosa mansão em que reside e até mesmo o seu irmão, Raimondo (Daniele Rienzo), que parece ter um sentimento meio confuso em relação à protagonista. "Se eu tivesse quarenta anos a menos você casaria comigo?" pergunta um velho comandante amigo da família, em certa altura. "A pergunta correta seria, se eu tivesse quarenta anos a mais, você casaria comigo?", retruca Parthenope. Ela parece estar sempre um passo à frente. E faz questão de evidenciar isso nas suas vivências mundanas, pacatas e cheias de desinibição.

Fugindo da lógica, a jovem entra para a faculdade de Antropologia, faz amizade com o severo professor Devoto Marotta (Silvio Orlando), viaja para Capri, é seduzida (em vão) por um ricaço, se aproxima de Cheever, que é seu escritor preferido e que se torna confidente, presencia uma tragédia envolvendo seu irmão, escreve uma tese, tenta se tornar atriz se tornando pupila de uma certa Flora Malva (Isabella Ferrari), uma espécie de Norma Desmond italiana, que não mostra o seu rosto desfigurado, após uma cirurgia plástica mal sucedida, conhece uma atriz idosa e petulante de nome Greta Cool (Luisa Ranieri), que lhe alerta sobre os perigos de uma vida ordinária, vai para os bairros operários, conhece os rituais da máfia, engravida, faz um aborto, enfrenta uma ditadura, conhece um excêntrico cardeal e tudo isso sempre banhado em brilho suntuoso e efervescente. Para alguns paladares pode ter uma carinha meio de autoparódia ou um clima geral de "já vi isso antes". Mas assistir a qualquer obra de Sorrentino é sempre uma experiência meio mágica, em que o microcosmo se expande. E se torna universal.

Nota: 8,0 


quarta-feira, 2 de abril de 2025

Novidades em Streaming - Saturday Night: A Noite que Mudou a Comédia (Saturday Night)

De: Jason Reitman. Com Gabriel LaBelle, Cory Michael Smith, Ella Hunt, Dylan O'Brien e Rachel Sennott. Comédia, EUA, 2024, 109 minutos.

Um filme de comédia sobre um dos maiores programas de humor da história: e que consegue a proeza de não ter nenhuma graça. Aliás, que mais do que isso, chega até a gerar algum tipo de vergonha alheia em certo ponto. Muita gente - inclusive parte da crítica - afirmou que Saturday Night: A Noite que Mudou a Comédia (Saturday Night) só funcionaria para aqueles que estivessem bastante familiarizados com os bastidores e com as figuras emblemáticas que originariam o clássico programa da NBC. Sinceramente, eu não preciso estar por dentro da cultura japonesa pra apreciar uma obra de lá. Ou inteirado do período ditatorial chileno pra compreender as nuances políticas dessa ou daquela produção. O caso é que o filme dirigido por Jason Reitman é ruim mesmo. Uma bagunça irritante, caótica, supostamente divertida, e que é tão cansativa que eu quase cogitei desistir.

E em geral, em si, parecia uma boa ideia. Mesmo que a gente não conheça tão bem assim esse produto tipicamente estadunidense, meio que qualquer sujeito que aprecia programas de esquetes já cruzou nas timelines da vida com alguma sequência engraçada do programa que, há cinquenta anos, vai ao ar nos sábados à noite, nos Estados Unidos. Então porque não contar essa história de como foram as ansiedades por trás das câmeras na hora e meia antes da estreia? Legal, né? Baita! Só que não. Tendo o produtor Lorne Michaels (Gabriel LaBelle) como uma espécie de fio condutor da narrativa que leva o espectador de lá pra cá nesse tour guiado bagunçado de corredores apertados, cubículos cheios de gente, palcos improvisados, estúdios adaptados e percorridos por 50 mil pessoas ao mesmo tempo, todas gritando, perguntando alguma coisa, falando basicamente o tempo todo, a sensação é de apenas claustrofobia. E talvez raiva.

 


A impressão que se tem é a de que ninguém fazia a menor ideia do que estava fazendo ali, antes do programa ir ao ar na sua primeira edição - e, ok, parece que a história foi essa mesma. A ideia era substituir (até onde entendi porque nem sempre) as reprises do programa do Johnny Carson. Então é meio que isso: cenários sendo construídos de última hora, esquetes sem graça ensaiadas faltando meia hora pra estreia, profissionais desistindo no meio do caminho, brigando, se avacalhando. Aliás, taí uma boa palavra: avacalhação total. E mais, como se fosse uma massa disforme sem nenhum personalidade, o conjunto de astros se comporta de uma forma tão inexplicavelmente homogênea - todos com aquele sendo de humor meio de tiozão cringe -, que ninguém parece possuir algum traço especificamente particular, distinto. Sendo o auge do erro de escalação, nesse sentido, o caso de Nicholas Braun (o eterno e ótimo Greg, de Sucession), que sério, quem quiser que se arrisque a conferir.

No mais, as poucas partes que se salvam são aquelas em que há um respiro eventual motivado por alguma saída de dentro do estúdio - uma ida ao terraço, ou ao bar -, em que as coisas se acalmam um pouco e a gente quase se conecta com algo ou alguém ali. São instantes eventuais em que há um ensaio de profundidade. De calmaria. E como seria bom se houvesse mais desses momentos na produção. No mais, a gente não se importa muito. Não importa se Chevy Chase (Cory Michael Smith) tinha pinta de galã metido e arrogante, se George Carlin (Matthew Rhys) parece irritado com tudo e com todos, se os executivos de estúdio tão batendo cabeça, se uma censora tenta cortar trechos do texto porque eles podem ser, uau, escatológicos ou cheios de piadas sexistas. É um ambiente que, em conjunto, soa ultrapassado - ainda que haja um esforço coletivo em se apresentar o tempo todo como subversivos, anárquicos, revolucionários. Vamos combinar, né galera, o SNL é um bom programa. Mas não salvou a TV. O que não justifica essa "homenagem" tão estupidamente histriônica.

Nota: 2,0

 

terça-feira, 1 de abril de 2025

Pitaquinho Musical - Lady Gaga (MAYHEM)

Um disco de inéditas que mais parece uma coletânea que condensa tudo aquilo que a Lady Gaga entregou para os fãs ao longo de sua carreira: assim pode ser resumida a experiência com MAYHEM, o sétimo registro da estrela pop - e um dos melhores. Sim, a gente sabe que na era do "sou fã quero service" é meio chato o público ficar meio que ditando aquilo que o artista deve ou não fazer, mas o caso é que basta chegar na metade do hipnótico single Abracadadra para nos sentirmos diante da Lady Gaga raiz (especialmente depois dos experimentos country do igualmente bom Joanne, de 2016, e do aceno ao jazz na parceria com Tony Bennett). Ainda assim, talvez o crítico musical mais ávido por novidades possa afirmar que aqui temos o mais do mesmo - e, vamos lá, muitas vezes vai ver a gente só quer aquilo que já estejamos acostumados. Que nos seja familiar. Que nos abrace. Gaga, que se apresenta no Brasil em maio, sabe fazer música pop dançante como ninguém. E se havia alguma dúvida depois do desastroso Harlequin, feito para o constrangedor Coringa: Delírio A Dois (2024), ela está sanada.

 


Só que, diante disso tudo, é importante dizer: esse aceno ao passado, especialmente à fase The Fame Monster (2009), jamais significa obviedade. Gaga nos convida pra dança, mas mostra a personalidade de sempre em faixas que flertam como outros estilos e subgêneros como o grunge eletrônico (Perfect Celebrity), o rock das rrriot girls (Garden of Eden), o funk de levada noventista (Killah), a inspiração na Taylor (How Bad do U Want Me, a minha preferida), o gótico (The Beast), a baladona romântica (Blade of Grass). Tudo com aquelas letras simples e reflexivas que amamos, em que temas como romances tortos, fama, cobranças e frustrações, manutenção da sanidade mental, desafios da carreira (e do mundo como um todo), empoderamento feminino e LGBTQIA+, perdas e luto, se mesclam em uma experiência sempre celebratória, que só parece crescer a cada audição. Eu sei que é cedo e que muita coisa ainda vai acontecer em termos de música nesse 2025. Mas até aqui, não há nada que supere isso.

Nota: 9,5

Novidades em Streaming - Acabe com Eles (Bring Them Down)

De: Christopher Andrews. Com Christopher Abbott, Barry Keoghan, Nora Jane-Noone e Paul Ready. Drama / Irlanda / Reino Unido / EUA / Bélgica, 2024, 105 minutos.

Vamos combinar que a verossimilhança não é uma característica necessária para a apreciação de um filme. Mas ao mesmo tempo, ela pode ajudar a tornar um pouquinho mais crível aquilo que assistimos. Em gêneros como o drama, por exemplo, aquele pezinho na realidade sempre faz bem. Ajuda a dar a impressão de verdade. E a nos conectar com a obra. No subgênero do drama rural que, depois de ótimas experiências em produções alternativas como As Bestas (2022), A Menina Silenciosa (2022) e Alcarrás (2022), parece estar em leve alta esse espaço de deslocamento para o campo e as pessoas que lá habitam parecem prescindir ainda mais de plausibilidade. Um agricultor, enfim, fica melhor se parecer um agricultor. Uma família do campo sempre soará mais realista se adotar hábitos mais próximos aos do interior. Ou sei lá se eu tô viajando, mas tenho a impressão de não ter encontrado isso no defeituoso Acabe Com Eles (Bring Them Down).

Sim, o filme que estreou na Mubi na semana passada e que foi exibido em festivais mundo afora pode até ter boas intenções no seu pano de fundo - com o roteiro ancorado em um ambiente de violência crescente, que decorre de traumas do passado. Ok, famílias rurais podem ter suas desavenças. Seus problemas ou medidas desesperadas na tentativa de sobreviver. Mas a menos que sejam pessoas completamente desvairadas não me parece uma solução meio inteligente atacar o rebanho ovino de um vizinho - que só está separado de você por um morro em uma propriedade (com uma ponte) -, para retirar dos animais apenas as patas, simplesmente porque uma atravessadora do mercado paralelo disse a eles que essas peças possuem grande valor de venda. O simples fato de cogitar tal atrocidade, para alguém que não parece o maior vilão da história das fazendas do interior da Irlanda, é de um descolamento da realidade acachapante.

 


E tá tudo bem. Digamos que, num ato de vingança, um criador de ovelhas resolvesse ferrar a vida do outro fazendo isso. Qual o sentido? Parece uma forma meio forçada de retratar o belicismo eventual desse tipo de ecossistema. Bom, mas eu já falei demais e nem comentei direito sobre o que é esse filme, que marca a estreia do diretor Christopher Andrews e que começa com um trágico acidente provocado pelo jovem Michael (Yousseff Quinn), que mata a sua mãe e desfigura o rosto de sua antiga namorada, Caroline (Nora Jane-Noone). Um salto breve no tempo nos faz perceber que Michael (Christopher Abbott, na fase adulta) ainda é assombrado pelo ocorrido. Ainda mais pelo fato de Caroline lhe ter abandonado para casar com um vizinho com cara de poucos amigos - seu nome é Gary (Paul Ready) -, com o qual tem um filho, Jack (Barry Keoghan, que tem de dar uma cuidada pra não soar meio caricato na hora de interpretar o doidinho da vez).

O furto de duas ovelhas de Michael, que descobre os animais vivos, mais tarde, na feira da cidade, faz as tensões aumentarem, com trocas de empurrões e promessas de violência - e até esse ponto, eu admito que estava bastante envolvido com a trama. Havia ainda algum tipo de sutileza que nos deixava meio no escuro quanto ao que poderia ocorrer dali pra frente. Só que aí a coisa desanda após um acidente de carro que fere Gary e Jack, com perseguições de parte a parte - e é muito irritante perceber como a trilha sonora invasiva, aquele tipo de percussão não muito criativa, parece sempre querer te lembrar que aquele é um momento em que você deve ficar nervoso. Ok, há aqui e ali alguns bons momentos diante da mata fechada e claustrofóbica, que lembram algum tipo de perseguição bucólica à Hitchcock (forçando bastante a barra). Mas não é suficiente. Assim como não é suficiente a metáfora da ovelha como um bicho em vulnerabilidade. O pai inútil na cadeira de rodas. Ou o clichê da morte do cachorro. Há muito filme bom nesse filão sendo feito (pode clicar em qualquer uma das três resenhas lá do começo do texto). E esse aqui, cheio de urbanoides que nunca se comportam como agricultores, não cola.

Nota: 4,0