quarta-feira, 9 de abril de 2025

Tesouros Cinéfilos - Contos Proibidos do Marquês de Sade (Quills)

De: Philip Kaufmann. Com Geoffrey Rush, Kate Winslet, Joaquin Phoenix e Michael Caine. Drama / Biografia, Reino Unido / EUA / Alemanha, 2000, 124 minutos.

"O homem que altera sua maneira de pensar para agradar os outros é um tolo." Se em pleno 2025 as "famílias de bem" são capazes de se aterrorizar, se atormentar, arrancar os próprios cabelos com um livro um pouco mais descritivo na hora de relatar um ato sexual - ainda que no cerne da mesma obra esteja a crítica ao racismo estrutural e o preconceito em suas mais variadas formas -, imagina como não deve ter sido no final do Século 18, na França governada por Napoleão, e que marcaria o encarceramento do Marquês de Sade. Famoso por sua literatura, provocativa, obscena, iconoclasta, libertina, o Marquês (seu nome real é Donatien Alphonse François) teria sido preso não apenas por seus romances e novelas que denunciavam a hipocrisia reinante da época, mas também por blasfêmia e supostos crimes sexuais, como estupro e outros abusos. E é mais ou menos esse o pano de fundo para o delicioso Contos Proibidos do Marquês de Sade (Quills), obra de Philip Kaufmann que completa 25 anos de lançamento em 2025.

Sim, a conduta do Marquês (vivido pelo ótimo Geoffrey Rush) pode ter sido questionável. E talvez até siga sendo até hoje - e uma pesquisa breve nos permitirá compreender a complexidade da sua personalidade e as infinitas polêmicas em que ele se meteu. Da prisão, publicou anonimamente uma série de livros, entre eles Justine, que é mais ou menos o ponto de partida da produção, que foi injustamente esnobada na cerimônia do Oscar daquele ano (a despeito de uma ou outra indicação em categorias técnicas). O manuscrito de Justine - sobre uma jovem que se torna escrava sexual de monges em um mosteiro e que, salva por um cavalheiro, acaba presa também por ele -, é enviado para fora do sanatório de Charenton com a ajuda da lavadeira Madeleine (Kate Winslet), que entrega o material para um cavaleiro anônimo. De lá para a editora e para as ruas e para o mercado negro e para mundo. Chegando ao imperador, que se horroriza com o teor pornográfico do material. A solução? Calar o Marquês. Inicialmente, queimando seus livros em praça pública. Depois, enviando o médico psiquiatra Royer-Collard (Michael Caine) pra tentar dar jeito na mente (supostamente) perturbada do sujeito.

 


Claro que essa tentativa de passar um corretivo - com cheirinho de censura -, não será bem recebida pelo próprio Marquês (que, em Charenton vive com alguns luxos, como acesso a uma biblioteca, móveis, vinhos e outros confortos), mas também pelo abade Du Coulmier (Joaquin Phoenix) que, com seu espírito benevolente e, em alguma medida, progressista pra época, tenta coordenar o local de forma mais afetuosa ou menos violenta. Já os métodos de Royer-Collard beiram a tortura institucionalizada, com afogamentos forçados e outras medidas drásticas e, claro, não demorará para que o conservadorismo atroz do psiquiatra, entre em choque com as ideais libertinas de Sade - que tenta melhorar a sua imagem por meio de aulas de teatro ministradas aos demais internos e com o esforço hercúleo de jamais publicar o que escreve. O que para a sua mente borbulhante talvez seja o pior dos castigos. E é nesse cai e vem que, lá pelas tantas, uma apresentação teatral em Charenton, com Royer-Collard e sua nova esposa na plateia - a adolescente Simone (Amelia Warner) - instalarão o caos.

Divertido, sedutor, excitante e por quê não, ofensivo, o filme é um deleite, especialmente no que diz respeito às interpretações. Rush parece bem à vontade no papel de um sujeito caótico e imprevisível, que jamais se renderá às imposições de seus algozes, o que reforça também o poder da arte como veículo de quebra de padrões, de subversão e de iconoclastia. Em uma das tantas discussões com o abade, um Phoenix correto, o religioso praticamente implora para que o protagonista utilize o seu talento para escrever sobre as coisas belas e poéticas do mundo que nos rodeia. "Eu escrevo ficções, não tratados morais", exalta-se Sade. Aliás, o filme de Kaufmann, que é baseado em uma peça de teatro de mesmo nome dirigida por Doug White no circuito Off Broadway, é recheado de tiradinhas bem humoradas, que funcionam bem dada a personalidade cativante do protagonista. Aliás, quando Du Coulmier aponta, por exemplo, o absurdo por trás da mera existência de Justine - e de sua circulação deliberada pelo País -, o Marquês pega o tomo na mão e concorda: "sim, olha a falta de qualidade desse papel, a letra pequena".

 

 

E, claro, importante dizer que por mais que o filme se posicione como favorável ao poder da arte acima de tudo - ainda mais quando envolvem proibições pautadas pelo moralismo religioso -, Sade nunca é retratado como o heroi excessivamente injustiçado e sim como a figura complexa que, de fato, ele pareceu ser. Seus crimes podem ter sido apenas uma alucinação de quem queria condená-lo, achando que as atrocidades pulavam para fora das páginas? Talvez. Ou não. Vai saber. Ainda assim, em tempos em que a extrema direita parece ter desejos autoritários de impedir esta ou aquela obra de circular por ser supostamente ofensiva - lembremos o curta-metragem O ABC da Proibição de Livros indicado ao Oscar no ano passado -, uma experiência fílmica feita com vinho, sangue, vísceras e alma e que evidencia o poder libertador da literatura e de outras expressões culturais, merece toda a consideração. Ainda mais pelo fato de, para além do tema, ser um filmaço, tecnicamente bem executado cheio de suspense, violência, tesão e fúria.

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