segunda-feira, 6 de janeiro de 2020

Cinema - Dois Papas (Two Popes)

De: Fernando Meirelles. Com Jonathan Pryce, Anthony Hopkins, Juan Minujín e Cristina Banegas. Drama, EUA, 2019, 125 minutos.

Divisor de águas entre o catolicismo conservador e o progressista, o Concílio Vaticano II, que durou de 1962 a 1965, procurava estabelecer algumas aberturas para temas importantes na Igreja. A ideia era dialogar mais com o mundo moderno, introduzindo novos modos de concepção da Revelação e flexibilizando inclusive o rito da missa - até então, celebrada em latim. Esta nova Teologia voltou a Igreja para questões mais humanas e sociais, como a justiça e a autonomia da ciência, reinterpretando dogmas e outros pontos da moral católica, que culminariam na Teoria da Libertação, estabelecida em 1968 e que julgava as causas de pobreza, de injustiças e de opressão como pecados estruturais. Um processo de conscientização e de organização em torno de lutas justas, humanitárias e inspiradas na prática religiosa - e que, claro, deixaram os grupos conservadores da Igreja Católica, que consideraram esta visão heterodoxa uma ameaça a sua fé, de cabelos em pé.

O que o espetacular filme Dois Papas (Two Popes) faz, é imaginar como seria o suposto encontro de correntes teológicas tão distintas, simbolizadas pela "amizade" entre os papas Bento XVI (Anthony Hopkins) e Francisco (Jonathan Pryce). Dirigida pelo brasileiro Fernando Meirelles (Cidade de Deus), a obra inicia no conclave que empossa Bento, em 2005, dando um salto no tempo para os meses que antecedem à sua renúncia, em 2013 - momento em que ele convoca o cardeal Jorge Mario Bergoglio para uma conversa que, no fim das contas se converterá em uma série de troca de confidências em que ambos os homens revelarão fraquezas, angústias, remorsos, dúvidas e anseios. Mesmo com pensamentos e visões de mundo opostas - Bento é da corrente conservadora e pouco aberta ao diálogo, ao passo que Francisco é um progressista de grande popularidade -, aos poucos os dois se aproximarão, percebendo o fato de que podem ser tão parecidos quanto diferentes.


Sim, a gente sabe que filme sobre dois papas que dialogam sobre o mundo e as suas mudanças e as necessárias adequações da Igreja Católica para tentar conter a perda de fiéis, poderia soar como mera propaganda religiosa (ou mesmo um convite para um sono de duas horas). Mas não. Para além da suntuosidade dos cenários luxuosos - e a reconstrução de Castel Gandolfo impressiona -, o roteiro faz idas e vindas no tempo para mostrar a vida de Francisco na juventude, tornando mais dinâmicos os momentos que poderiam soar excessivamente elegíacos. Da mesma forma, fluem com naturalidade as diferenças entre os dois papas e que são superadas com a compreensão do outro. E com respeito. A simplicidade de Francisco, por exemplo, pode ser vista no ato mundano de comprar pizza e Fanta laranja em uma barraquinha de Roma ou mesmo na reconhecida paixão pelo futebol (e pelo San Lorenzo), ao passo que a sisudez de Ratzinger é reforçada pela persistência na solidão e pelo amor pela música clássica (aliás, a cena em que Bento está ao piano está, certamente, entre as mais comoventes, carregada, paradoxalmente, por uma impactante leveza).

Assim, uma obra que poderia ser pesada, se torna curiosamente até divertida - especialmente pelo fato de o roteiro de Anthony McCarten (O Destino de Uma Nação) optar por não se aprofundar em temas que poderiam conferir outro tipo de densidade para Dois Papas, como os casos de pedofilia na Igrega Católica ou mesmo a onda ultraconservadora que tem tirado do armário novos grupos neonazistas, ligados a um modelo de religião anterior ao do Vaticano II. Assim, se por um lado o filme desperdiça a oportunidade para este tipo de discussão mais relevante, nos brinda com um sem fim de grandes diálogos, em que assuntos como homossexualismo, aborto, celibato e divórcio são evocados, mesmo que de passagem, com a dupla central dando um show de interpretação. Aliás, ambos não são apenas parecidos fisicamente com os papas que encarnam: seus movimentos, seu comportamento, o gestual, tudo está de acordo para que não haja apenas formalismo ou homenagem e sim uma caracterização eficiente. O que poderá resultar, inclusive, em indicações ao Oscar.


E, como se já não bastassem todos esses predicados, o filme ainda insere elementos que despertam a curiosidade do espectador, por mais que, nas aparências, pudessem soar apenas como excentricidade. É o caso do instante em que Francisco canta Dancing Queen, do Abba (para surpresa de Bento). Abba, em hebraico, e de acordo com o Novo Testamento, significa "Pai Sagrado" - o que, na condição de máximo pontífice, Bergoglio será no futuro. O Pai. Que segura o livro Pedagogia do Oprimido, de Paulo Freire, na mão. São detalhes que enriquecem a narrativa, que é super bem montada e que ainda reserva para os créditos finais um dos momentos mais divertidos - em que as diferenças se "encontram" da mais improvável das maneiras. Um filmaço!

(Fonte: Revista Cult - Edição nº 252, dezembro de 2019)

Nota: 9,0

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