quarta-feira, 22 de janeiro de 2020

Cine Baú - Alma em Suplício (Mildred Pierce)

De: Michael Curtiz. Com Joan Crawford, Ann Blyth, Zachary Scoot, Jack Carson e Bruce Benett. Drama, EUA, 1945, 111 minutos.

Vamos combinar que, em 1945, não era muito comum ver mulheres independentes e empoderadas como protagonistas no cinema - especialmente em filmes noir, em que as femme fatales muitas vezes se dobravam a algum capricho relacionado a relações extraconjugais complicadas, tóxicas ou cheias de conflitos de interesses. E só este fato já transforma Alma em Suplício (Mildred Pierce) em uma obra que se mantém atual e que merece ser revisitada. Quem interpreta a Mildred do título original é Joan Crawford - em papel que lhe rendeu o seu único Oscar. A trama começa com um assassinato em uma casa de praia isolada, com o morto caindo e balbuciando o nome de Mildred. Mais tarde, na delegacia, o detetive encarregado chega a conclusão, a partir de algumas pistas, que o assassino é Bert (Bruce Bennett), ex-marido de Mildred que, motivado por ciúme, teria cometido o crime. Bom, não teríamos um filme se a resolução fosse simples assim, né?

É na própria delegacia que uma resignada Mildred resolve contar uma história que inicia quatro anos atrás, na época em que ela decide se separar de Bert, especialmente pelo fato de ele estar desempregado. Acostumada a vida de dona de casa, com as duas jovens filhas tendo tudo do bom e do melhor, a protagonista sai atrás de emprego. Após conseguir uma colocação como garçonete, junta uma grana, complementa renda vendendo bolos, pega um empréstimo e conta com o apoio do amigo corretor de imóveis Wally Fay (Jack Carson) - um galanteador que não perde a oportunidade de cortejar Mildred -, para comprar o imóvel em que funcionará seu restaurante. Com espírito empreendedor, amplia seu negócio - que se torna uma franquia -, ao passo que se aproxima do bon vivant Monte Beragon (Zachary Scott) que, bom, nessa altura do campeonato já sabemos que é o sujeito que morre no começo do filme.


Parece meio confuso, mas o roteiro absolutamente engenhoso (escrito por Ranald Macdougall), cheio de idas e vindas no tempo, alterna o relato atual de Mildred na delegacia, com um sem fim de cenas em flashback, que vão sendo saborosamente apresentadas ao espectador. Por meio delas, saberemos que a relação de Mildred com a sua filha mais velha, a ambiciosa Veda (a ótima Ann Blyth, que talvez também merecesse o Oscar e eu não assisti A Mocidade é Assim Mesmo, que deu a estatueta a Anne Revere), não é nada boa. Veda não aceita o trabalho da mãe - ela considera trabalhar em restaurante coisa de "subalterno" -, ao mesmo tempo em que tenta seduzir Monte, que é candidato a namorado da Mildred. Rodeada por vários homens, também assistiremos uma Mildred que não se "dobra" pra qualquer cantada barata, especialmente pelo fato de ser uma mulher que não necessita de um homem para sobreviver, que paga suas contas, que vive, que sorri e que sofre (como no triste episódio da morte de sua filha mais nova). O romance não tem lugar de protagonismo aqui. E o que vemos é uma mulher forte que, mais tarde, arcará com as consequências de seus atos.

Espetacular também na parte técnica, Alma em Suplício é um primor na fotografia que aposta no uso de contrastes e reflexos, com sombras nas paredes e nos rostos das personagens, além de imagens que surgem em espelhos sendo utilizadas de forma orgânica para reforçar a tensão. Já a trilha sonora (de Max Steiner), conduz a narrativa com fluidez, sendo capaz de sair dos acordes festivos para os mais tensos com naturalidade (e na mesma sequência). Com ótimos diálogos - a personagem Ida (Eva Arden) tem alguns dos melhores (e ela é até mais feminista do que Mildred) -, o filme não cede espaço para o otimismo, com o desfecho sendo bastante amargo e servindo para que a protagonista descubra que amor incondicional de mãe pode servir apenas para a consolidação de filhos mimados. Ainda que tenha perdido o Oscar para o ótimo Farrapo Humano (1945), a obra do versátil Michael Curtiz (Casablanca, A Canção da Vitória) costuma figurar em inúmeras listas, como no caso da do livro 1001 Filmes Para Ver Antes de Morrer. Um filme fundamental.

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