Eu teria tudo para odiar Bacurau, longa-metragem dos diretores Kleber Mendonça Filho (dos maravilhosos O Som ao Redor e Aquarius) e Juliano Dornelles. Sou homem, heterossexual, branco, de sobrenome alemão, classe média. Moro na região sul do país, que deu aproximadamente 70% dos votos para Jair Bolsonaro no segundo turno das eleições, uma região que se acha tão autossuficiente que possui um movimento para se emancipar do resto do país. Uma região que recebe aqueles que não deseja na bala e de relho. No meu estado tem "justiça" que prefere retomar antigo nome de uma avenida - que possui termos como "legalidade" e "democracia" - para homenagear general ditador. Como diria o hino riograndense, "sirvam nossas façanhas de modelo a toda terra" (#SQN). Na minha cidade tem movimento neofascista querendo censurar evento jornalístico, e também tem vereadores destilando desinformação, homofobia, e acusações sem provas. Aqui pertinho tem gente que não respeita a arte e a cultura, que não suporta a livre manifestação e a crítica. Tem gente que se acha superior ao resto do país devido ao suposto sangue europeu de seus antecessores. Tem gente que certamente vai odiar com todas as forças Bacurau. Não foi o meu caso.
Em um futuro não muito distante o povoado da cidadezinha nordestina de Bacurau (cujo nome remete a um pássaro de hábitos noturnos que, quando aparece, significa mau presságio) está velando a avó de Teresa (Colen), que está retornando à localidade para se despedir trazendo consigo um lote de vacinas e medicamentos. A partir da morte da matriarca somos apresentados lentamente aos personagens do vilarejo - cuja maior característica é o senso de comunidade - em toda a sua diversidade e peculiaridade. Tudo muda no momento em que um casal de turistas supostamente fazendo trilha pelo local altera a rotina dos moradores, quando estes descobrem que a cidade não faz mais parte do mapa (mais especificamente, do Google Maps - sim, a cidade é pobre, mas neste futuro a tecnologia está disponível para todos em seus smartphones). A partir daí as tensões aumentam (uma característica do cinema de Mendonça Filho) levando a desfechos violentos e inesperados. Se você é ligado em cinema já deve ter lido muito sobre o filme e até ter sido vítima de alguns spoilers, portanto não nos aprofundaremos na trama visto que a melhor parte da experiência é ir descobrindo o filme aos poucos e, de preferência, na tela grande.
São raros os filmes que captam o espírito de seu tempo e, a julgar os acontecimentos atuais no país, o B de Bacurau pode muito bem ser, em seu microcosmo, o B de Brasil. O que vemos em tela é uma alegoria perfeita: as escolas sucateadas, os políticos que só aparecem em época de eleição e exploram seu povo, a animalização do diferente, a exploração de áreas pertencentes a outras pessoas em benefício próprio, o extermínio do povo negro e pobre, o abandono das crianças, a legitimação da violência, o entretenimento a qualquer custo, a frustração do homem branco e a fetichização das armas, o fascismo, a RESISTÊNCIA. Resistência esta que brota das minorias, das mulheres, dos homossexuais, dos trans, dos negros, dos nordestinos, de tudo aquilo que mais irrita os reacionários de plantão. Enquanto a escola é o último refúgio das crianças para sobreviver, é no museu da cidade onde repousa a memória do cangaço - e é justamente esta memória que poderá salvar uma população em risco de extinção.
Eu teria tudo para odiar Bacurau. Felizmente, desde cedo, minha família sempre me colocou em contato com a arte. O cinema, a música, o teatro, a dança, são as formas mais eficazes de desenvolver a empatia por nossos semelhantes. Quando digo semelhante, quero dizer a humanidade. Que ela possa conviver e aceitar as diferenças entre si é um imperativo do sucesso civilizatório. Todo governo autoritário deixa de financiar a arte, a cultura e a educação pois sabe que não há arma maior contra a tirania do que o conhecimento. E é por isso que todo mundo deve assistir Bacurau. Porque é um filme espetacular, DO CARALHO. E porque está fazendo história. Em tempo real.
Nota: 10
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