quinta-feira, 26 de setembro de 2019

Palco Picanha - A Mulher Arrastada

De: Diones Camargo e Adriane Mottola. Com Celina Alcântara e Pedro Nambuco. Drama, Brasil, 2018, 50 minutos.

O debate público sobre violência e abuso policial poucas vezes esteve tão em alta. Em praticamente todas as semanas (pra não dizer dias) somos surpreendidos com notícias a respeito de operações militares desastrosas em favelas ou morros, que resultam no assassinatos de civis que, invariavelmente, são pobres e pretos. E em governos autoritários como o de Bolsonaro e de Wilson Witzel, este tipo de prática parece ter sido ampliada. Na chamada guerra contra o tráfico - que também poderia ser chamada de guerra contra o POVO - não há limites para a violência. Vale tudo. Guarda-chuvas podem ser confundidos com armas e trabalhadores com bandidos, com a população vulnerável se transformando no "inimigo" a ser combatido. E assim morrem diariamente Ágathas, Kauans, Amarildos, Lucianos, Evaldos e tantos outros que viram apenas manchete. Estatística. Sem comoção. Sem dor. Apenas mais um que vai, por que assim é a vida, né?

O que a perturbadora peça de teatro A Mulher Arrastada faz é jogar luz sobre um desses tantos episódios de violência envolvendo uma polícia despreparada, que trata pessoas comuns como bandidos, de acordo com a matiz de sua pele. Exibida no Teatro do Sesc na noite de quarta-feira (25/09), como parte da programação do Palco Giratório, a peça resgata a história de Cláudia Silva Ferreira que não apenas foi morta pela polícia num dia qualquer de março de 2014: ela ainda teve o seu corpo praticamente desfalecido arrastado pelo camburão por quase MEIO QUILÔMETRO. E foi justamente por causa desse episódio grotesco - há imagens na internet que eu me recuso a assistir, sinceramente -, que Cláudia, trabalhadora, casada, mãe de família, proprietária de um corpo de todos os seus "pedaços" se transformou, para a mídia, apenas na "mulher arrastada". Sem nome. Coisificada. Como muitas vezes são os pobres e pretos que morrem, reduzidos à condição de objeto. E aí está um dos tantos subtextos possíveis, nessa impressionante obra que, não por acaso, tem sido premiada Brasil afora, desde que estreou no ano passado.


"Competir com a realidade seria muito difícil, então tivemos de reimaginar esse episódio abominável, para tornarmos ele catártico para o público", explicou a atriz Celina Alcântara em um pequeno bate-papo após a exibição da peça. Foi assim que o roteirista Diones Camargo e a diretora Adriane Mottola chegaram ao cenário - composto apenas por alguns biombos e uma espécie de maca usada em necrotérios -, com o público disposto como se estivesse em uma arena. O uso da luz e do som constroem uma ambientação claustrofóbica, incômoda, daquelas que faz o espectador se remexer o tempo todo na cadeira, conforme o episódio é reencenado. Os fatos não são apresentados em ordem cronológica: a peça inicia com o ator Pedro Nambuco, que interpreta o policial, proferindo uma série de frases aparentemente desconexas, que dão conta de sua confusão mental, enquanto trafega nervosamente por um canto do cenário, em meio ao público que está ali confinado - como se estivesse em uma espécie de "ônibus imaginário".

E este, no fim, é um dos tantos méritos da obra. Há muita simbologia. E muita simbologia que até nos escapa. Em dado momento, ainda no preâmbulo, o policial abraça Cláudia (Celina), como se esta fosse uma "refém" dele. E não seriam os pretos, os pobres, o povo, reféns reais desse tipo de política policial que lhes destrói as vidas? Em meio ao espetáculo, Celina realiza uma espécie de comovente monólogo em que chama a atenção para o absurdo do episódio, com o espectador imerso em um ambiente de dor, daqueles em que é difícil não se comover. Tudo ocorrendo com o policial circulando em meio a plateia como se fosse um espectro que reflete cada um de nós que, afinal de contas, pouco fazemos para que o racismo estrutural, institucionalizado, e mesmo a violência contra a mulher ou a misoginia possam ser refutados. Ou minimamente discutidos. Trata-se de uma peça arrebatadora, curta, daquelas que mete o dedo na ferida e que faz todo o mundo ficar paralisado em seu ato final. A pergunta que fica é: até quando? Sem resposta, o que fica é o gosto amargo, enquanto a escuridão (e a inquietação) nos invade.

Um comentário:

  1. muito bom, Tiago.Muita dignidade na interpretação da Celina. Sementes... nessa cidade tão preconceituosa. Tristemente lindo o espetáculo. Tocou fundo. Viva o Teatro!

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