quarta-feira, 25 de setembro de 2019

Grandes Filmes Nacionais - Serras da Desordem

De: Andrea Tonacci. Documentário, Brasil, 2006, 130 minutos.

Não é preciso avançar muito em pesquisas no Google para que se obtenham informações diversas sobre massacres de povos indígenas no Brasil, invasões e tomadas de terras, incêndios em florestas ou assassinatos de líderes de tribos - especialmente em um País comandado por um Bolsonaro. Ainda que a prática não seja exclusividade deste governo, a volúpia com que parecem crescer o número de casos desse tipo em nosso território, dá conta de uma política de exclusão de povos tradicionais ou de famílias em vulnerabilidade social. Sem apoio federal e sem qualquer tipo de proteção, resta aos índios tentar se defender por conta em uma luta que é, por demais, inglória. Bom, o que dizer do atual diretor de Administração e Gestão da Funai, Fernando Carlos Rocha, que considera absurda a ideia de demarcar terras indígenas? O cenário é desolador, de fato.

E é talvez por isso que filmes como Serras da Desordem, do italiano Andrea Tonacci (do premiado curta-metragem Blá Blá Blá), ressurjam como verdadeiros documentos atemporais a respeito dos sistemáticos ataques sofridos pelos índios, vamos combinar, desde o nosso "descobrimento". Durante a Ditadura Militar, muitos fazendeiros se sentiram legitimados para atentar contra os povos tradicionais, tomando suas terras na marra para utilização no agronegócio (nada diferente do que ocorre nos dias de hoje). Foi o que ocorreu com a tribo Awa-Guajá do índio Carapirú, em 1978, quando seu grupo familiar foi atacado e morto por ambiciosos madeireiros. Único sobrevivente, Carapirú foge do local empreendendo uma longa jornada de 10 anos e mais de dois mil quilômetros de distância pela mata, até ser encontrado por moradores de uma pequena comunidade no interior da Bahia.


Acolhido, acaba chamando a atenção de lideranças do Governo Federal, que enviam primeiramente representantes do Incra e, depois, da Funai para recolhê-lo. É assim que Carapirú vai parar em Brasília, levado pelo sertanista Sydney Possuelo para, mais tarde, numa reviravolta "hollywoodiana" envolvendo um filho que ainda está vivo, retornar para o seu antigo "lar". É uma história com começo meio e fim narrada de forma contemplativa, bucólica, num misto de documentário e ficção e que utiliza a pequena tribo do protagonista - bem como suas interações naturalistas com a fauna e a flora local -, como um microcosmo para a questão maior dos indígenas. Há um simbolismo forte em cada sequência, com o tempo passando diferente nesse contexto simbiótico, gerando no espectador um estranhamento natural por aquilo que é considerado culturalmente avesso e que o "homem branco", adepto do colonialismo, fará de tudo para modificar, seja colocando roupas em Carapirú ou ensinando-o a usar talheres e o vaso sanitário.

Com longos planos sequência, Tonacci faz com que sejamos observadores (quase) participantes das vivências e desventuras de Carapirú. Em certo sentido, o formato adotado pelo diretor, a paciência complacente com que narra cada episódio, sem qualquer tipo de explicação relativa a saltos temporais, pode não ser fácil para todos os paladares cinéfilos. Propositalmente longa, a obra versa nas suas entrelinhas sobre passagem do tempo, diferenças culturais, ganância e até amizade - que se sobrepõe de forma comovente às barreiras da língua (e ver um Carapirú amistoso, amoroso e sorridente com todos a sua volta é algo não apenas enternecedor: é cativante, surpreendente, idílico). Nesse sentido, a vitalidade do protagonista (que recria as cenas vividas por ele mesmo, no passado) serve como um contraponto para um universo em que as motosserras, os tiros, o sangue e a brutalidade dos ditos "racionais", fala mais alto. Uma obra ao mesmo tempo econômica e complexa, sobre um tema que segue mais do que atual.

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