terça-feira, 25 de setembro de 2018

A Volta ao Mundo em 80 Filmes - O Homem Sem Passado (Finlândia)

De: Aki Kaurismäki. Com Markku Peltola, Kati Outinen, Sakari Kuosmanen e Esko Nikkari. Comédia / Drama, Finlândia / França / Alemanha, 2002, 97 minutos.

Todos nós já vimos reportagens sobre o fato de a Finlândia ser um dos melhores países do mundo para se viver, afinal, conta com um Estado forte, que garante educação (gratuita) para a população, além de acesso a saúde e a condições igualitárias, que proporcionam conforto para todos. Mas o cinema do diretor Aki Kaurismäki costuma voltar o seu olhar para uma outra Finlândia que, sim, também existe. No caso, sai de cena o País reconhecido pela qualidade de vida, para surgir na tela a população que luta para sobreviver, que depende (ainda mais) de políticas públicas, que procura emprego e que necessita de amparo de programas sociais ou mesmo do apoio comunitário. E é exatamente esse o caso do ótimo O Homem Sem Passado (Mies Vailla Menneisyyttä) - obra que foi indicada ao Oscar na categoria Filme em Língua Estrangeira, além de ter vencido vários prêmios em festivais mundo afora.

Na verdade trata-se de uma curiosa comédia, a despeito da tragédia que abre a película, quando acompanhamos um homem (Markku Peltola) ser brutalmente espancado por um bando, até perder a memória, no momento em que chegava de trem à capital Helsinque. Além de sumir com a sua carteira, os agressores levam o seu dinheiro e outros objetos de valor. Sim, há violência (até) na Finlândia. Após alguns dias no hospital, o homem, que todos achavam que fosse morrer, foge e é encontrado por uma família pobre de ribeirinhos, ao lado de um rio. Resgatado, ele vai aos poucos restabelecendo a saúde - ainda que não se lembre de nada relativo ao seu passado. Com a ajuda da mesma família, vai morar em um precário container alugado. A comida, inicialmente, vem de projetos sociais. Mais tarde, com algum custo, ele arrumará emprego e reiniciará a sua vida. Ainda que o mistério sobre a sua identidade permaneça.



É um filme sobre recomeços que, metaforicamente, fala da nossa capacidade de se reinventar, em meio a contextos adversos. Fosse uma obra hollywoodiana e talvez acompanhássemos um sujeito em busca de vingança de seus algozes. Mas não. De forma contemplativa e com um indelével ceticismo, o homem procura se reencontrar na sociedade. Assim, se apaixona desajeitadamente por uma assistente social, considera uma grande conquista a "aquisição" de um velho tocador de discos e até se arrisca a plantar batatas, com vistas a ter o que comer futuramente. O humor quase involuntário vem dos inacreditáveis diálogos e das sequências levemente nonsense, que são cheias de simbolismos, de trocadilhos, de pequenas surpresas, que dão conta de preencher as lacunas e nos fazer rir. A cena em que o senhorio vem cobrar o aluguel atrasado, pretendendo ameaçar o devedor com um cachorro claramente dócil, de nome Hannibal, é um desses exemplos. Um tipo de graça mais sutil, visual, que era muito presente nas obras do francês Jacques Tati, por exemplo.

O próprio protagonista, muitas vezes, nos coloca em dúvida sobre sua real condição de saúde, já que brinca com a situação mais de uma vez - como quando ele diz ter ido a lua e voltado, sem ter encontrado nada de mais ou finge confundir o nome de objetos. São desses pequenos momentos, ora satíricos, ora bizarros, que o diretor também constrói uma verdadeira fábula sobre a compaixão. Sobre pessoas se ajudando para fazer da sociedade um lugar melhor para se viver. Sentimento que é complementado pelas interpretações absolutamente naturalistas, pela fotografia dessaturada - os objetos parecem saltar pra fora da tela -, pela câmera grudada em cada personagem e até mesmo pela trilha sonora, que fornece um contraponto ilógico e caótico. Uma obra que, no fim das contas, joga algum "calor" para uma região tão tradicionalmente fria.

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