domingo, 14 de fevereiro de 2016

Lado B Classe A - Lupe de Lupe (Quarup)

Peço perdão ao leitor para uma declaração apaixonada a um disco pouco ouvido, de uma banda pouco conhecida, mas que acaba por tomar de arrebatamento quem vos escreve. E não é coisa de agora. Ele foi crescendo aos poucos, ao longo de muito tempo e durante muitas etapas da vida - Arte tem muito a ver com o contexto em que ela é inserida e chega a nosso encontro. Divago, mas explico: Lupe de Lupe (cujo nome não significa nada, conforme os integrantes) é uma banda mineira formada por Renan Benini (baixo e vocal), Cícero Nogueira (bateria), Vitor Brauer (guitarra e vocal) e Gustavo Scholz (guitarra e vocal) que iniciou sua carreira no ano de 2008, tendo lançado oficialmente seu primeiro disco em 2011, o EP Recreio. Após seguiram-se o álbum Sal Grosso (2012) e o EP Distância (2013) chegando ao derradeiro e ambicioso disco duplo Quarup, de 2014.

O que leva alguém a querer lançar um disco duplo em plena época de audições superficiais e imediatismo musical devido à internet? A pergunta eu não sei responder, mas ambição certamente é a palavra chave que define a jovem banda de Belo Horizonte. Pertencer à escola punk do do it yourself e ao estilo "eu não sei tocar mas toco" não são fatores limitantes para o resultado assombroso alcançado pelo grupo no registro em questão. Antes de mais nada o estilo aqui é rock, mais precisamente o noise rock, o pós-punk e o shoegazer, tudo embalado em uma estética lo-fi e barulhenta aos melhores moldes do rock independente dos anos 90 (Guided by Voices e Pavement são as primeiras bandas que me vem à mente, além é claro do Sonic Youth). Há um pouco também do rock brasileiro dos anos 80 (Legião Urbana é uma referência óbvia, reforçada pela homenagem a la My Bloody Valentine da clássica Por Enquantoem single lançado anteriormente) no caldeirão sonoro apresentado pelo grupo, que possui diversos compositores e vocalistas - o que torna tudo ainda mais embaralhado e imprevisível, mas de uma sinceridade desconcertante (e que é ainda mais reforçada pelas explosivas e emocionadas performances ao vivo).


Batizado de forma homônima ao clássico romance de Antônio Callado, de 1967, Quarup é enigmático em sua essência, mas se levarmos em consideração o tema da obra referenciada (o conflito do romance de Callado resume-se na incapacidade e na insuficiência da ação humana contra a injustiça de uma sociedade) tudo passa a ter um sentido mais amplo - porém não menos desafiador, tanto na forma lírica quanto instrumental. Concebido em duas partes, um lado positivo e outro negativo, temos uma parte mais "de boa" e outra mais "porrada", respectivamente. Do início contemplativo com O Futuro é Feminino até o pop rock de O Arrependimento na sequência, a aura é de gravação ao vivo, com poucos aparos de arestas imperfeitas, vocais desafinados e guitarras tortas, o que pode (deve) causar estranhamento em ouvidos pouco afeitos ao som mais experimental e sem polimentos a que somos apresentados aqui. Da declaração de amor da faixa Gaúcha que, de tão sincera e cara limpa, chega a ser constrangedora (no melhor dos sentidos) à maravilhosa e roqueira Ao Meu Verdadeiro Amor, o disco consegue emocionar àqueles que se deixarem arrebatar pela música sem concessões dos mineiros. Da bem humorada Esse Topper Foi Feito para Andar até a lenta, climática e bela Ágape e a catártica e ressentida Fogo-Fátuo, somos lentamente encaminhados para o lado B da obra.

Do início com os quase dez minutos de Jurupari, com suas guitarras e barulhos ensurdecedores, o clima é de pesadelo desafiando o ouvinte até onde ele é capaz de chegar. A porrada segue solta com Orquesta para Três (com sua citação a Quero Ser John Malkovich) e Minha Cidade em Ruínas, com o desespero típico de uma alma jovem e atormentada pela fase provavelmente mais difícil da vida - a passagem para a vida adulta, o amadurecer e o se sentir um estranho em sua própria cidade. Querubim alivia um pouco a barra ao esboçar a cura das feridas, mas sem deixar as guitarras post-rock de lado. A raivosa Eu Já Venci destila no vocal declamado e desconfortável de Vitor Brauer uma série de frases fortes, cuspindo na cara da cultura de vencedores tão em voga com sarcasmo e ironia mordaz, fazendo uma dobradinha coerente com a antepenúltima faixa Você é Fraco. O shoegazer volta com força total na dupla A César o que é de César, A Deus o que é de Deus e a derradeira Carnaval, com seus intermináveis 15 minutos.

Confesso pra vocês que encarar a obra do início ao fim é uma tarefa hercúlea, não só pela duração do disco (2 horas) mas também pelo teor das canções. Ao optar ir pela contramão de toda uma indústria e até mesmo de um estilo musical, a Lupe de Lupe chega ao auge da sua proposta com este impactante Quarup que, de tão urgente e visceral, deixa uma marca indelével em quem o escutar - para o bem e para o mal. Tem sentimentos aqui que evito retornar, enquanto outros me fazem sorrir e voltar frequentemente - coisa que só o tempo é capaz de fazer - e esta é uma obra que permaneceu comigo e provavelmente continuará por muito tempo. Resta ao ouvinte um convite a se aventurar.

A minha melodia é vã e arrogante
E parece engolir as outras melodias
Com a violência que é a minha voz
E que apesar de corajosa e arredia
No fim tende sempre a se juntar
A todas as outras melodias
Numa grande e estupenda harmonia
Num conjunto sublime e universal
Que soma a destruição e o amor
Num conjunto final
Carnaval

P.S.: É da banda também a homenagem à musa Tainá Müller, registrada no EP Distância.



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