sexta-feira, 5 de julho de 2024

Tesouros Cinéfilos - Rosetta (Rosetta)

De: Jean-Pierre e Luc Dardenne. Com Émilie Daquenne, Fabrizio Rongione, Olivier Gourmet e Anne Yernaux. Drama, Bélgica / França, 1999, 94 minutos.

"Seu nome é Rosetta. Meu nome é Rosetta. Você encontrou um trabalho. Eu encontrei um trabalho. Você tem um amigo. Eu tenho um amigo. Você tem uma vida normal. Eu tenho uma vida normal. Você não vai cair na rotina. Eu não vou cair na rotina. Boa noite." É mais ou menos na metade de Rosetta - obra dos irmãos Dardenne que venceria a Palma de Ouro no Festival de Cannes de 1999 (uma surpresa, aliás, já que o favorito era o Tudo Sobre Minha Mãe, de Pedro Almodóvar) -, que a protagonista vivida pela ótima Émilie Daquenne tem uma espécie de epifania, que faz com que ela fale sozinha. Na modesta casa de Riquet (Fabrizio Rongione), deitada na cama, ela divaga sobre ter encontrado um emprego, ter feito uma amizade, ter agora uma vida normal. Como se fosse uma espécie de mantra, ela repete as frases como se, ao verbalizá-las em voz alta, elas pudessem ter mais força. Afinal de contas, tudo que a jovem deseja é uma rotina repetitiva. É ter um dia a dia como o de qualquer outra pessoa.

Só que ela simplesmente não consegue - e quem acompanha a filmografia dos belgas Jean-Pierre e Luc Dardenne sabe que seu cinema bastante cru e sem firulas é daquelas que aborda as mazelas humanas, os contrastes sociais, a dureza do mundo e a hipocrisia da sociedade de forma direta e um tanto naturalista. Nas suas obras não costuma haver a problemática espetacularização da pobreza ou da miséria - com arroubos estilísticos e aparatos técnicos hiperbólicos que servem como mera distração para aquilo que efetivamente interessa. Em uma produção como Rosetta não há muito espaço para respiro. A câmera seca está sempre grudada no rosto e no corpo da protagonista - aliás, por vezes ela parece quase confusa, trêmula, como se fosse um objeto invasivo, a atrapalhar a ação. A impressão que se tem em muitos casos é a de se estar assistindo um documentário, tamanho o realismo das imagens, a veracidade das sequências (dramáticas, violentas, caóticas).


 

Aliás, aqui o filme já abre com uma Rosetta aflita que circula por corredores apertados daquilo que parece ser uma pequena indústria não se sabe bem de quê. Em tom de súplica, a jovem "foge", mas, curiosamente, para dentro do local de trabalho. Ela não quer sair dali. Quer ficar. Tem uma mãe alcoólatra pra lidar, uma existência miserável em um trailer improvisado e precário em que volta e meia falta tudo (de gás a luz), e um monte de contas para pagar. Independência? Individualidade? Esquece. A vida de Rosetta se resume a um cubículo fechado, que só é desocupado quando sua mãe se prostitui como forma de quitar dívidas. Ou pra manter o vício em bebidas. A caminhada de Rosetta na abertura do filme é simbólica, alegórica. É longa, deprimente, entre escadarias infinitas e espaços opacamente iluminados. "Eu quero ficar", implora, enquanto seu chefe explica que seu período de experiência terminou e ela não mais trabalhará ali. Um tumulto acontece, a polícia é chamada, todos vão ao chão.

Essa será a deixa para que os Dardenne, como de praxe, examinem a precariedade do universo do trabalho, exatamente como fariam outras vezes, mais adiante, em obras doloridas como O Filho (2001) ou Dois Dias, Uma Noite (2014) - o primeiro sobre um sujeito que contrata um jovem que supostamente assassinou seu filho, o segundo sobre uma mulher que empreende uma via crúcis para preservar seu emprego, após retornar de uma licença saúde. Em Rosetta, a protagonista está sempre apressada pra lá e pra cá, em uma busca desenfreada por alguém que simplesmente lhe permita trabalhar. Que lhe assine uma carteira. Que lhe confira dignidade. Ou alguma qualidade de vida. Que lhe ajude a amenizar as cólicas recorrentes, a solidão retumbante, o desalento comovente. É uma obra dura em que as brigas são mundanas e as metáforas gritam, como no instante em que a jovem joga fora peixes dados como um "presente" à mãe, para tentar pescar no lago do entorno as suas próprias carpas. "Não somos mendigas", argumenta. Evidentemente, em obras assim não há muita solução para além da resignação, diante da completa falha do capitalismo nem tão tardio. Se a gente ri no final, se é que ri, é de nervoso.


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