terça-feira, 25 de outubro de 2022

Novidades em Streaming - Argentina, 1985

De: Santiago Mitre. Com Ricardo Darín, Juan Pedro Lanzani, Norman Briski e Alejandra Flechner. Drama, Argentina, 2022, 142 minutos.

"Senhores juízes: nunca mais." É marcante a frase dita pelo promotor Júlio César Strassera, em um dos instantes mais comoventes de Argentina, 1985 - obra que representará os nossos hermanos no próximo Oscar e que está disponível na plataforma da Amazon Prime. Encarregado do julgamento contra a junta militar que governou a Argentina entre 1976 e 1983, Strassera (vivido por Ricardo Darín com a habitual competência) concluía naquele instante a leitura do documento histórico que denunciava publicamente nove comandantes militares que governaram o País durante o chamado Processo de Reorganização Nacional (nome mais "pomposo" pra Ditadura). Cinco seriam condenados. Dois a prisão perpétua. Algo histórico, já que desde os Julgamentos em Nuremberg, que perpetraram assassinatos em massa de civis pelos nazistas, não acontecia algo parecido. Aliás, em muitos países que conhecemos muito bem, esse tipo de deliberação não ocorreu até hoje - muitos, inclusive, foram anistiados. Ou seguem impunes. São homenageados, até, por proeminentes parlamentares. Há, ao cabo, quem goste de regimes militares. Deseje seu retorno. A esses recomendo não assistir à obra do diretor Santiago Mitre.

Muito bem costurado, o filme ocorre em um período de cinco meses, entre 1984 e 1985, após a eleição de Raul Alfonsín, que reestabelece a democracia no País. O que não apaga as feridas do período, com milhares de desaparecidos tidos como subversivos (ou contrários ao regime), que teriam sua liberdade privada por agentes do Estado. Aliás, coletivos que defendem os direitos humanos como o das Mães da Praça de Maio e o Serviço Paz e Justiça estimam que 30 mil pessoas podem ter desaparecido à época, sendo milhares delas torturadas. Tentar, de alguma forma, apaziguar a dor causada às famílias argentinas por esse golpe será o esforço de Strassera - ainda que ele esteja alguns anos atrasado nesse intento. Que monta uma equipe de jovens advogados, entre eles Luis Moreno Ocampo (Juan Pedro Lanzani), que se empenharão em juntar provas que possam estruturar as denúncias de forma contundente. Com o mínimo possível de margem de erro, uma vez que estamos falando de acusações a militares - e, basta pensar no Brasil de Bolsonaro, pra termos uma ideia da força e da influência que têm esses grupos.



A desculpa para a captura de supostos revolucionários/rebeldes? Conter o avanço do comunismo - sim, sempre ele e já naquela época ele -, durante o governo de Isabelita Perón, o que dissolveria o congresso, desmantelaria o País economicamente, e violaria um sem fim de direitos humanos. E por todo esse contexto não deixa de ser emocionante acompanhar a jornada vivida pelo personagem de Darín - inicialmente desconfiado e até com medo das reações e pressões externas ao caso (que poderiam vir do próprio Estado, dos militares e de outros lobistas do entorno) -, que busca força de onde quase não tem, sempre amparado por sua amorosa esposa Silvia Strassera (Alejandra Flechner) e pelos filhos, especialmente o caçula Javier (Santiago Estevarena), na busca por pistas, informações e documentos que possam fortalecer a ação da promotoria. É uma experiência que, de alguma forma, requer um pouco de paciência do espectador. Mas que compensa pela sensibilidade, pelo senso de humor inusitado e pelo respeito às vítimas, que têm no filme um verdadeiro tributo as suas memórias.

Em linhas gerais não há espaço para grandes invencionices no roteiro, que se alterna entre sequências impactantes de tribunal, do trabalho dos advogados e das permanentes ameaças que sofre a família do protagonista (com ligações de desconhecidos e cartas com promessas de morte ou assassinato de familiares). Naquele estilo que normalmente costuma operar a fatia mais miliciana das forças armadas. Normalmente desumana, sem nenhuma empatia - exatamente como ocorre nos doloridos momentos em que familiares descrevem com detalhes bastante "gráficos" as sessões de tortura. Sequestros, prisões arbitrárias, mortes, ocultação de cadáveres, censura aos meios de comunicação, impedimento de ações sindicais, proibição de greves, dissolução de partidos políticos e outras tantas atrocidades. Não foram poucas as ilegalidades que, sadicamente, os militares adotavam. Aliás, à época, o general Saint-Jean sarcasticamente chegou a advertir: “Primeiro, mataremos todos os subversivos. Em seguida, os seus colaboradores. Depois, os seus simpatizantes. Depois, aqueles que permanecerem indiferentes. Por último, mataremos os indecisos.” Assim, uma obra como essa não tem muito como ser avaliada tecnicamente, ainda que seja caprichada, bem editada, com excelente trilha sonora e riquíssimo desenho de produção (a reconstrução do período é fenomenal). Aqui, o mérito maior está na ousadia em jogar luz sobre um assunto que nunca deve ser esquecido. E que, bizarramente, muitas pessoas sonham em reviver.

Nota: 9,0



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