De: Cláudio Assis. Com Irandhir Santos, Nanda Costa, Matheus Nachtergaele, Juliano Cazarré, Conceição Camarotti e Tânia Granussi. Drama, Brasil, 2011, 104 minutos.
Quem acompanha a carreira do diretor Cláudio Assis sabe que seu cinema é provocador, iconoclasta e até eventualmente enigmático - como comprovam os ótimos Amarelo Manga (2002) e Baixio das Bestas (2006). Bom, não é diferente com o hermético Febre do Rato, que está disponível na Netflix. À moda de um Glauber Rocha urbano - com direito a fotografia em preto e branco (cortesia de Walter Carvalho) - o realizador mistura o caos da metrópole e todos os seus contrastes e complexidades, com o idílio poético que é evocado a partir da margem, do gritos dos excluídos, dos vulneráveis e daqueles que, no cotidiano, não são vistos. Nesse sentido o protagonista Zizo (o onipresente Irandhir Santos) se torna uma espécie de porta-voz dos oprimidos ao editar um periódico que dá nome ao filme. Mais do que isso, portando um megafone, trafega em meio aos desafortunados da periferia como se fosse uma espécie de profeta anarquista, que conclama o indivíduo para refletir sobre a coletividade.
Ao cabo é um filme que nos apresenta uma Recife distante dos cartões postais, entrecortada por casas paupérrimas e úmidas que, paradoxalmente, encontram-se abaixo dos prédios suntuosos que se avizinham. No entorno de Zizo que leva, não por acaso, o apelido de Poeta, o ecossistema é movimentado por outros sujeitos como o gracioso casal Pazinho (Matheus Nachtergaele) e a travesti Vanessa (Tânia Granussi) e o traficante Boca (Juliano Cazarré), que toma de assalto uma fábrica abandonada onde convive com os amigos Rosângela (Mariana Nunes) e Bira (Hugo Gila). Além das vizinhas Dona Anja (Conceição Camarotti) e Marieta (Ângela Leal) que, a despeito da idade mais avançada, "movimentam" a banheira a céu aberto do protagonista - local escolhido para que sejam despejadas as paixões carnais mais desvairadas daqueles que acompanhamos (e, admito, que é simplesmente impossível não rir dos movimentos frenéticos ocorridos nesse prosaico cenário).
Mas quem mexe MESMO com o "coração" - quer dizer, digamos que o coração possa aqui ser uma metáfora para outros órgãos - de Zizo é a jovem Eneida (Nanda Costa) que, a despeito de todos os esforços (e poemas) do protagonista, desvia de todas as suas investidas. Muito mais jovem do que o sujeito, o acompanha a distância em suas andanças, enquanto se diverte com Boca, Rosângela e os demais. Resta a Zizo ir para o bar da esquina, se lamuriar na companhia de Pazinho - que também anda encrencado com Vanessa - e se satisfazer de alguma forma com Dona Anja. Ainda assim a despeito das provocações sexuais diversas - existe uma inesquecível envolvendo uma máquina fotocopiadora - há um ponto em comum que move este coletivo que está a margem: o da luta apaixonada tão anárquica quanto sofisticada, tão violenta quanto engraçada. Todos, afinal, estão do mesmo lado na hora em que a polícia resolve descer a porrada em meio a uma manifestação tão pacífica quanto despudorada.
Em entrevistas, Assis não deixa de denunciar, em algum sentido, a hipocrisia da sociedade - que ele faz questão de avançar para seus filmes. Não por acaso, em entrevista ao Brasil 247 na época do lançamento da obra, ele afirmou que estava tentando alcançar os espectadores mais sensíveis: "não querem que eu diga de uma forma direta, do jeito que é, tudo bem, eu digo com poesia". O que não significa que a provocação não esteja em cada curva da película, seja em um diálogo mais controversamente divertido - como no instante em que Pazinho admite que Vanessa é o homem de sua vida -, seja no instante em que, se empenhando em conquistar Eneida, Zizo assista a ela urinando enquanto estica a mão para o seu mijo. Sim, o cinema de Assis é sobre o que der na telha, é sobre vontades. É sobre paixões, sobre gozos, sobre comportamentos, sobre diletantismo, sobre lutas, sobre sangue, sobre suor e sobre urbes que ardem em meio ao caos social. E talvez seja por isso que seja um cinema tão irresistivelmente nosso.
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