quinta-feira, 16 de setembro de 2021

Pérolas da Netflix - Machuca (Machuca)

De: Andrés Wood. Com Ariel Mateluna, Matias Quer, Manuela Martelli, Ernesto Malbrán e Tamara Acosta. Drama, Chile / Espanha / França / Reino Unido, 2004, 116 minutos.

"Um povo que não conhece a sua história está fadado a repeti-la". Quando olhamos para o Brasil contemporâneo é simplesmente impossível não pensar na frase atribuída ao filósofo e teórico político Edmund Burke - que, por ironia do destino, era um conservador. E o expediente se repete em toda a América Latina - e o filme Machuca (Machuca), do diretor chileno Andrés Wood, não deixa de ser um curioso exercício cinematográfico banhado em tintas lúdicas, mas que aproveita a história de amizade entre dois meninos que estão em extratos sociais opostos para traçar um painel do Chile nos tempos que antecederiam o Golpe Militar. E que deporia o governo democrático de Salvador Allende para implantar em seu lugar a ditadura de Pinochet. O pano de fundo político é composto por complexidades e ambiguidades que se estendem para essa história de formação que envolve o protagonista Pedro Machuca (Ariel Mateluna) e seu amigo Gonzalo Infante (Matías Quer).

A trama se passa nas dependências do Colégio São Patrício - conceituado educandário que é o escolhido pelos pais das famílias mais abastadas para o estudo dos seus filhos. Só que o governo socialista de Allende inspira os padres da instituição a implantarem uma nova política - tipo uma política de cotas -, que utiliza parte dos impostos dos ricos para que jovens em vulnerabilidade social possam estudar no local. É claro que a chance de não dar certo é grande, dadas as enormes diferenças existentes no miscigenado grupo. E a situação piora quando o grupinho dos ricos resolve fazer bullying com o recém-chegado Machuca. A provocação se estende à Gonzalo, que se recusa a participar dos ataques à Machuca. Em uma sequência tão agressiva quanto poética se forma uma amizade inusitada. Os dois afugentam os valentões e, dali para frente, não se "desgrudam", passando a brincar juntos e a fazer as lições. Condição que também possibilitará a ambos descobrir detalhes da realidade um do outro.

E acredito que justamente nesse ponto que o filme ganhe força, já que as famílias de ambos os meninos não estão em lados antagônicos apenas financeiramente, mas também em termos de política. Sem passar pano para os eventuais equívocos do governo Allende - lá pelas tantas a população passa a sofrer com o desabastecimento, ainda que as reformas propostas pelo presidente tenham sofrido com a estagnação e a falta de avanço perpetradas pelo Congresso -, a obra coloca as famílias mais pobres ao lado de Allende - que é saudado de forma comovente pelos humildes com um sonoro "Allende, Alende, teu povo te defende!". Do outro lado, as classes ricas anseiam pelo Golpe Militar, preocupadíssima com a ameaça comunista que, supostamente, rondava o Chile. A parafernália inclui desfiles em carros luxuosos, com a elite lutando para não perder os seus privilégios, mostrando-se insatisfeita com as reformas, especialmente a agrária, e a estatização. 

Não demora para que a violência se torne uma saída inadiável. Em lados destoantes, Machuca e Gonzalo querem apenas ser amigos. Mas como sustentar isso? Sendo crianças, não compreendem bem a complexidade daquilo que vivem - e a cena em que Gonzalo tenta esconder um panfleto socialista (com direito a foice e martelo desenhados) de sua família é apenas tragicamente divertida. Com ótima edição, que alterna cenas das passeatas, das lutas, com ótimos instantes "domésticos", o filme avança para a convulsão social sem necessariamente tomar partido - ainda que seja inevitavelmente nefasto perceber os efeitos de um governo militarizado, especialmente em uma escola. Aliás, a violência desmedidamente implementada nos faz perceber que, em partes, estamos o tempo todo tentando escapar de algo parecido por aqui - algo que as elites sonham em estabelecer, sempre empunhando as armas e a bíblia como mecanismo de força. A diferença é que, aqui, no momento, não há Allende. O presidente luta contra moinhos de vento, contra ameaças ilusórias, amparado por paranoias conspiratórias. Vamos repetir a história, como afirmou Burke, se assim continuar. E assistir ao povo, tal qual acontece com a família de Machuca, padecendo. É dolorido. Mas serve pra nos dar aquele chacoalhão.

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