quarta-feira, 18 de agosto de 2021

Tesouros Cinéfilos - O Conto (The Tale)

De: Jennifer Fox. Com Laura Dern, Ellen Burstyn, Elizabeth Debicki, Isabelle Nélisse e Jason Ritter. Drama, EUA, 2018, 114 minutos.

Filmes como o ótimo A Caça (2011), do dinamarquês Thomas Vinterberg, serviram para nos lembrar: mesmo quando o assunto é daqueles que suscitam reações mais exaltadas, pode haver algum grau de complexidade. Um tipo de contexto que "nubla" a nossa percepção. E que pode fazer com que, mesmo aquilo que possa parecer uma inadiável convicção, seja por nós questionado. Nem tudo é tão oito ou oitenta. Tão isso ou aquilo. Ainda que não seja tarefa fácil, num universo polarizado, pretender elevar o debate para além do mero antagonismo que coloca os bons e os maus em prateleiras bastante óbvias. O excelente O Conto (The Tale), telefilme disponível na plataforma da HBO Max é uma dessas obras. Densa, de fluidez difusa, nos apresenta uma outra visão da temática "abuso sexual contra crianças", a partir da história autobiográfica da documentarista Jennifer Fox (Laura Dern), que aqui estreia na ficção. 

A trama inicia com a mãe de Jennifer, Nadine (a excelente Ellen Burstyn) que, ao ler antigas cartas encontradas em um porão e escritas por sua filha ainda jovem - com cerca de 13 anos -, acredita ter identificado ali, naquelas crônicas cheias de lirismo, naquelas letras tortas e eventualmente poéticas, um caso de abuso sexual. Diferentemente da angustiada mãe de Lolita (a do livro de Nabokov) que é consumida pela culpa ao se demorar em identificar o abuso sofrido pela filha, Nadine empreende uma verdadeira jornada de pressões (algumas podem soar até mesmo exageradas) para que Jennifer, agora uma mulher que se aproxima dos 50 anos, possa lembrar o que de fato teria acontecido, anos atrás, no começo dos anos 70, no haras em que ela teve como tutores a professora de equitação Mrs. G (Elizabeth Debicki) e o instrutor de corridas Bill (Jason Ritter).

Vasculhando os cantos de sua própria memória, recorrendo a trechos das mesmas cartas encontradas pela mãe e fazendo visitas a antigas colegas que frequentavam o mesmo local - casos de Becky (Shay Lee Abeson) e Franny (Isabella Amara) -, Jennifer busca reconstituir os fatos, montando o quebra-cabeças que possa lhe dar a solução sobre o suposto abuso. Bem desenvolvida, a narrativa faz com que fiquemos em dúvida por um bom tempo. Quando Mrs. G e Bill surgem pela primeira vez, se apresentam como figuras afáveis, bem resolvidas, que incluem Jennifer (que na juventude é vivida por Isabelle Nélisse) em um tipo de relação "não convencional" e de aparência segura. A ponto de revelarem à adolescente segredos de suas vidas, possibilitando uma existência plena e livre das amarras de seus conservadores pais. Ao mesmo tempo, cada gesto feito pelos seus tutores, cada insinuação mais "perturbadora", faz com que redobremos a atenção. E nos perguntemos: houve abuso? E na percepção da jovem? Como ela encara tudo que aconteceu, em meio a uma realidade que surge em sua mente de forma meio borrada, difusa? Tudo isso sendo apenas uma adolescente?

Desenvolvida de forma elegante, a obra jamais insulta a inteligência do espectador ou tenta manipula-lo. Quebrando a quarta parede, a jovem Jennifer surge numa espécie de conflito interior, desafiando também a nós, que acompanhamos a sua narrativa em meio a flashbacks embaralhados, que hora sugerem uma coisa para, no instante seguinte, migrar pra outra. Da mesma forma, a a obra jamais exagera na romantização, já que nos lembra o tempo todo do fato de que uma vítima pode jamais ter se percebido como tal em sua infância/juventude - muito pela completa incapacidade de leitura mais ampla do cenário no que diz respeito ao sexo. Por mais que a mente esteja sempre aberta para novas "experiências". Como complemento, Nadine e a própria Mrs. G da terceira idade surgem, quase ao final da vida, como figuras amarguradas, que foram coniventes com um processo de aliciamento quase "normalizado" em uma sociedade patriarcal, e que jamais deve ser suavizado. Sim, é complexo. Nunca fácil. Possibilitará uma série de discussões. Sobre corpo, sobre memória, sobre subjetividade, sobre hipocrisia. Sobre violências. As mais diversas. Em resumo: é uma obra gigante. E fundamental. 

Nenhum comentário:

Postar um comentário