quarta-feira, 18 de outubro de 2017

Grandes Filmes Nacionais - O Pagador de Promessas

De: Anselmo Duarte. Com Leonardo Villar, Glória Menezes, Dionísio Azevedo, Norma Bengell e Othon Bastos. Drama, Brasil, 1962, 97 minutos.

Por mais que a icônica imagem do Zé do Burro carregando uma pesada cruz de madeira até a porta de uma Igreja, com o objetivo de prestar contas a Santa Bárbara, se mantenha até hoje no imaginário coletivo do público brasileiro, o que torna O Pagador de Promessas - obra de Anselmo Duarte adaptada da peça de Dias Gomes - um filme tão atemporal, efervescente e vigoroso é a sua temática. Afinal de contas, abordar a intolerância e o preconceito religiosos é falar não de algo sepultado na Idade Média e sim dos tempos atuais. De um período em que a Igreja convive com a dificuldade de se modernizar, mantendo-se próxima das "famílias de bem", e com os dois pés bem fincados em um conservadorismo que surge com força total também na esfera política. O que, de forma desoladora, impossibilita avanços dos mais simples, como a aceitação do pluralismo religioso, até outros mais complexos, e que envolvem o debate científico e cultural.

Na trama, Zé do Burro (interpretado de forma comovente por Leonardo Villar) e sua esposa Rosa (Glória Menezes) chegam a Salvador após uma longa caminhada de mais de 40 quilômetros desde a propriedade rural em que moram. O protagonista tem consigo a já mencionada cruz, que é parte de uma promessa feita a Santa Bárbara, após o seu burro de estimação ser atingido por um raio - e ter se restabelecido depois. O problema é que, desesperado, Zé faz a promessa em um terreiro de candomblé, o que acaba sendo uma afronta para o padre Olavo (Dionísio Azevedo), que fará de tudo para impedir a entrada do homem na Igreja. "Não posso permitir que o senhor se perca nas trevas da bruxaria", argumenta o sacerdote, para ouvir como resposta "Oras, se Santa Bárbara não estivesse de acordo com isso, ela não faria o milagre?"



Uma passada pelas redes sociais, nos dias de hoje, e será possível perceber que, mais de cinquenta anos depois do lançamento de O Pagador de Promessas, nada mudou em relação ao respeito as crenças religiosas que não sejam as nossas. Como seria possível misturar um terreiro de macumba com a adoração a imagens sacras? Oras, com mais tolerância e menos preconceito, afinal de contas, na visão do ingênuo Zé do Burro, o que importa é salvar o seu estimado animal, já que para ele não há esse tipo de separação, por mais crente que seja. O que talvez fosse o ideal em um mundo, hoje, tão globalizado. Ainda, ao adotar a Bahia como cenário, Dias Gomes escancara um Brasil plural, colorido e multicultural em que jogadores de capoeira e adeptos do carnaval convivem com boêmios, prostitutas, cafetões, apostadores, escritores e devotos das mais diversas religiões - do Candomblé ao Cristianismo. E, nesse sentido, é praticamente impossível não se divertir com as sequências que mostram, no terço final, essa multiplicidade de personas em torno do Zé (e tentando se aproveitar dele, claro) que, lá pelas tantas, até ares de divindade passa a ter.

O papel da imprensa também é mostrado de forma orgânica na película e quando ouvimos um editor dirigindo a frase "não queremos boas reportagens, queremos reportagens que vendam" a um de seus repórteres, é fácil perceber como o sensacionalismo não é um modismo dos dias de hoje, sendo parte do processo de produção de (des)informação há várias décadas. E a tentativa de um dos jornalistas (um vivaz Othon Bastos) em transformar Zé em uma figura (política) favorável a Reforma Agrária - parte de sua promessa envolvia a distribuição de parte de suas terras a seus empregados - e contrária a exploração do homem pelo homem surpreende pelo fato de vermos, nos dias de hoje, a religião tão próxima das bancadas em que se acotovelam edis. (ainda que os ideias da atualidade sejam absolutamente opostos aqueles mostrados no filme, período em que João Goulart era o presidente de nossa República)


Povoando ainda a película com uma série de personagens secundários divertidos e audaciosos - como o sedutor Bonitão (Geraldo Del Rey), o ator de rua Dedé (Roberto Ferreira), o dono do bar Galego (Gilberto Marques) e a bela prostituta Marli (Norma Bengell) - Duarte transforma a obra de Gomes em um panorama do Brasil carente de ídolos e que se mostra, ainda, como numa espécie de contraponto, capaz de se aproveitar da ingenuidade das pessoas visando apenas o próprio benefício. Ao abordar temas como doutrinação religiosa, discriminação racial, adultério e sensacionalismo da imprensa - alguns momentos da mídia nos fazem lembrar outro clássico, A Montanha dos Sete Abutres (Ace In the Hole), lançado em 1951 por Billy Wilder -, Duarte ainda consegue trazer para o presente um debate já existente no passado e que envolve sujeitos sem escrúpulos em um microcosmo em que a parte mais fraca sempre é aquela que sai perdendo. O final desalentador, resultado da intolerância desenfreada, encerra a película - única na história do Brasil e faturar a Palma de Ouro no Festival de Cannes - de forma não menos do que impactante. Uma obra seminal.

Nenhum comentário:

Postar um comentário