Gênero cinematográfico muitas vezes relegado a um segundo plano do ponto de vista artístico - seja por conta dos argumentos forçados, do excessos de clichês ou pela ausência de verossimilhança -, o suspense eventualmente nos apresenta alguma boa película que, ainda que aqui e ali possa incorrer na repetição de fórmulas, serve para dar uma "reanimada" no estilo. É exatamente este o caso do surpreendente O Presente (The Gift), uma pequena pérola escondida entre as dezenas de filme existentes na plataforma de streaming Netflix. A obra, estreia do ator Joel Edgerton na direção, pega um dos chavões mais batidos do gênero - o do casal de classe média americana que se muda para uma casa maior, mais espaçosa e muito mais envidraçada, com a intenção de dar um outro rumo as suas vidas ou mesmo superar algum trauma do passado e que terá reflexos no presente. Só que, aqui, essa lógica é subvertida.
No caso, o casal protagonista é Simon (Bateman) e Robyn (Hall). Casados há pouco tempo, resolvem comprar uma casa nos arredores de Los Angeles, cidade em que Simon passou a infância e a adolescência. Não demora para que eles encontrem um ex-colega da época de colégio, de nome Gordon (Edgerton). Introspectivo e enigmático, Gordon passa a visitar o casal, levando a eles algum presente, ou até mesmo contribuindo em alguma tarefa doméstica. Só que, ao mesmo tempo em que Robyn acredita nas boas intenções do sujeito - que mantém a aparência entre o afável e o misterioso -, Simon parece desconfiar dessa aproximação, que se torna a cada dia mais ostensiva - e parece relacionada a algum segredo do passado, que carece de ser resolvido.
Claramente inspirado por obras do diretor austríaco Michael Haneke - especialmente Caché (2005) e Violência Gratuita (2007) - Edgerton constroi o suspense de maneira crescente, mas sem jamais apelar para o maniqueísmo típico do gênero, e que poderia acabar por delimitar os papeis de cada um dos personagens que vemos em cena, fossem eles bandidos ou mocinhos. Ao contrário, ao se apropriar da técnica do Mcguffin - tão bem empregada na filmografia de Alfred Hitchcock -, o diretor estreante faz com que tenhamos a nossa atenção voltada para as inusitadas e constantes visitas de Gordon, para, no instante seguinte, mostrar a nós que os problemas domésticos podem ser muito maiores do que um sujeito freak com cavanhaque estranho e ar tristonho, que resolve perturbar o casamento de alguém conhecido do passado. É mais ou menos como os zumbis de The Walking Dead, que, lá pelas tantas, passam a representar o menor dos problemas.
Ainda que a obra não consiga esquecer totalmente os lugares-comuns do gênero - entre eles a inevitável cena da protagonista que acorda de um sonho em que está sendo "atacada" pelo vilão -, o filme certamente reservará boas surpresas para os espectadores que apreciam roteiros engenhosos e que se sintam muito mais instigados pelo lado psicológico do que pelo susto óbvio provocado pelo miado de um gato escondido. Além de, aqui e ali, ainda abordar alguns dos males "modernos", como as fobias sociais e a síndrome do pânico. É claro que há uma ou outra forçada de barra na constituição do projeto - Bateman, ainda que simpático, não consegue convencer como um sujeito de personalidade ambígua, por exemplo. Mas, em geral, o filme, que ainda reserva algumas revelações decisivas para o seu terço final - com direito a uma liçãozinha de moral básica -, tem saldo positivo. Vale conferir!
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