quinta-feira, 16 de junho de 2016

Picanha.doc - The True Cost

Pouco conhecida (ou lembrada) no Brasil, a tragédia com o edifício Rana Plaza, em Bangladesh, completou três anos no último mês de abril. Quando o complexo de oito pisos - com estrutura já há muito deteriorada - desmoronou, naquela ocasião, 1.138 pessoas morreram e outras centenas ficaram feridas. Sim, você leu certo: 1.138 pessoas vieram a óbito e você, muito provavelmente, não tinha ouvido falar disso. (mas não se culpe: a mídia local pouco espaço encontrou em seus editoriais para o tema) Os mortos e feridos eram operários da indústria têxtil, que recebiam cerca de US$ 2 por dia de trabalho, convivendo com péssimas condições, jornadas exasperantes e outras circunstâncias semelhantes as de um regime de escravidão. Por trás desse sistema, marcas americanas e europeias, como, Benetton, Zara, H&M e DressBarn. A cada dia mais ricas, em meio a crise e ao consumo desenfreado, motivado por aquilo que se convencionou chamar de moda rápida, ou fast fashion.

Em linhas gerais esse é o assunto do imperdível documentário The True Cost. Se já havíamos ouvido falar do fato de que certas camisetas e calçados que usamos eram produzidos por pessoas - homens, mulheres (em sua grande maioria) e crianças - de países pobres, pode-se dizer que o filme consolida esta ideia, apresentando ainda os obscenos detalhes de como funciona esse mercado que visa, exclusivamente, o lucro. E o lucro de poucos. Se já nos deparamos com peças de roupas de R$ 20 ou R$ 30 - não as de brechó, evidentemente -, produzidas por grandes marcas, é muito provável que elas sejam industrializadas em países "emergentes" como China, Camboja e Bangladesh. E, sem um mínimo que seja de regulamentação de mercado, o livre comércio - tão defendido por aqueles que acreditam que a força de um País está, unicamente, no seu Produto Interno Bruto (PIB) - fica com caminho livre para que os países mais industrializados (e ricos) cometam abusos, sem que se sintam responsáveis diretos por tragédias como a do Rana Plaza. É mais ou menos essa a lógica da terceirização - tão debatida (e defendida) pela "família de bem odiosa" ou por parte da juventude política anacrônica que toma por base apenas o lucro e que, nesse caso, tem a frente o empresariado -, que nada mais significa que não a precarização de uma relação pautada pelos quilômetros de distância existentes entre capital e força de trabalho.


Apresentando números estarrecedores - como aqueles que dão conta do fato de o consumo de roupas ter crescido 400% nos últimos vinte anos ou sobre suicídios envolvendo produtores de algodão (mais de 250 mil nos últimos 16 anos, só na Índia) - o jovem diretor Andrew Morgan, que conseguiu viabilizar o filme por meio de financiamento coletivo no Kickstarter, coloca o dedo na ferida, ressaltando o fato de todos os integrantes deste mercado possuírem certa "parcela de culpa" nesse sistema. Inclusive - diria até que, muito especialmente - nós, consumidores. "Se antigamente costumávamos comprar de três a quatro camisetas por ano, atualmente adquirimos uma por fim de semana, por conta dos preços considerados 'mais baixos'", salienta um dos executivos entrevistados. E, tudo isso, sob a ilusão de que, consumindo, seremos mais felizes, mais descolados e mais importantes. Sendo que, verdadeiramente, estamos ficando mais pobres, desiludidos e deprimidos pela necessidade de TER, tão cara a modernidade.

Além de dar voz a executivos, jornalistas, professores, economistas, designers, ambientalistas e empresários, além de pessoas que trabalham em regimes de subserviência, Morgan enriquece ainda mais o seu trabalho ao apresentar o ciclo completo de um sistema que inicia em lavouras de milhares de hectares de algodão transgênico - que recebe diariamente muitos litros de venenos diversos - até chegar a fábrica de onde sai o produto e aos luxuosíssimos desfiles de moda. Sem aliviar nas imagens de maior impacto - especialmente naquelas relacionadas a protestos e greves de trabalhadores -, o diretor questiona o modelo capitalista, que costuma conceder ao empresário um poder quase ilimitado, por este estar simplesmente gerando emprego. Como se este fosse uma espécie de "bem-feitor" e como se os lucros estratosféricos, obtidos por meio da miséria desoladora, da dor, da precariedade e da distância da família, por parte dos escravos empregados, nunca fossem suficientes.


Em uma época em que, no Brasil, direitos trabalhistas há muito conquistados, parecem estar no limite da destruição por parte do governo interino - sob a desculpa da necessidade de "equilibrar as finanças e fortalecer a economia" (que nada mais é do que a visão tecnicista voltada a deixar aquela pequena fatia de ricos, ainda mais ricos, com o trabalhador em condições cada vez mais fragilizadas), um filme como The True Cost serve como uma bela reflexão sobre a forma como nos comportamos em meio a esse ecossistema carniceiro chamado "sociedade de consumo". E se o futuro parece desolador, é preciso saudar iniciativas como as da empresária Safia Minney, da agência People Tree, que emprega pessoas tendo por base o espírito colaborativo, os salários mais justos e a sustentabilidade ambiental. Ou mesmo os debates acalorados de ativistas como a jornalista Livia Firth, que promove palestras disseminando estas mesmas ideias. Se conseguirmos, nós mesmos, repensar os nossos hábitos, modificar a nossa forma de consumo tão materialista (e individualista) e contribuir para um mercado mais justo e menos desumano - quem sabe até mesmo optando por pequenos empreendimentos-, bom, este pode ser um bom começo. Depende de todos nós.

Um comentário: