terça-feira, 28 de novembro de 2023

Tesouros Cinéfilos - Código Desconhecido (Code Inconnu: Récit Incomplet de Divers Voyages)

De: Michael Haneke. Com Juliette Binoche, Ona Lu Yenke, Luminita Gheorghiu, Thierry Neuvic e Alexandre Hamidi. Drama, França, 2000, 118 minutos.

Já vi muitas pessoas desfazerem o filme Código Desconhecido (Code Inconnu: Récit Incomplet de Divers Voyages) sob o argumento de que não acontece nada nele. Mas é meio curioso: por mais eventualmente arrastada e fragmentada que seja a narrativa da obra de Michael Haneke, é interessante notar como ela permanece atualíssima em seus temas. Racismo, xenofobia, crises envolvendo imigrantes, diferenças sociais e culturais, tudo aparece salpicado aqui e ali - ainda que talvez de forma não tão coesa. Os primeiros quinze minutos, por exemplo, talvez sejam os melhores, quando acompanhamos um longo e bem orquestrado plano sequência pelas ruas de Paris. É nesse cenário que surge Anne (Juliette Binoche), uma atriz que é abordada pelo seu cunhado Jean (Alexandre Hamidi), que precisa urgentemente conversar com seu irmão Georges (Thierry Neuvic), que é o namorado de Anne.

É uma sequência em que muitas coisas acontecem - e que evidenciam em alguma medida o caos, a urgência cotidiana. Jean está pedindo para ficar alguns dias com o casal, já que abandonou o trabalho na fazenda do pai. Ele está meio enraivecido, seu comportamento é intempestivo e, após comprar um lanche, ele simplesmente arremessa os restos daquilo que consumiu em uma moradora de rua, que pedia esmolas junto à calçada. Esse é o estopim para que uma pequena confusão se instaure: insatisfeito com o comportamento de Jean, Amadou (Ona Lu Yenke) o confronta, exigindo que ele peça desculpas à mulher. Amadou é um rapaz negro, um professor de música que se compadece com a injustiça social presenciada ali, em plena luz do dia. Quando a polícia chega, por mais que algumas testemunhas apontem o que realmente ocorreu, Amadou acaba preso. E, pior, Maria (Luminita Gheorghiu), a mulher sem teto, que havia sido agredida é identificada como imigrante ilegal. Sendo, posteriormente, deportada.

Nesse sentido, não é necessária nem meia hora de filme para que percebamos a habilidade de Haneke em sua análise ferina de como operam as estruturas da sociedade. Jean, o agente provocador, sai impune do ocorrido, enquanto um negro e uma imigrante precisam prestar contas à justiça e ao Estado, o que gera um grande clima de instabilidade nas famílias dos envolvidos. A mãe de Amadou (Hélone Diarra), por exemplo, expõe as angústias de ter a sua própria casa devassada pela polícia, após o acontecido. Um constrangimento que nos deixa com a pulga atrás da orelha: não fossem eles negros, a coisa ocorreria dessa maneira? Já Maria, de volta à Romênia, se reconecta com a sua família, que vive em completo estado de precariedade. De degradação. E mesmo ela expõe preconceitos, como no instante em que revela ter lavado as mãos após ter dado dinheiro a uma cigana - o que talvez a tivesse feito pegar alguma doença.

Em alguma medida, a obra também mostra a complexidade da experiência humana, seus acasos, possibilidades e paralelos. Como atriz, Anne encena um filme em que sofre uma violência brutal - ocasião em que é presa em um cômodo fechado, sendo deixada para morrer pelos vilões (que nunca mostram seu rosto). Esse tipo de fetiche pela violência - às vezes institucionalizada, selvagem, que vêm sabe-se lá de onde - e pelo medo como modus operandi do cotidiano se repetiria na filmografia de Haneke, seja em obras como Caché (2005) ou A Fita Branca (2009). Aliás, é justamente quando o espaço entre ficção e "realidade" é burlado, durante uma tensa sequência no metrô é que nos assombramos com as possibilidades da arte como veículo de discussões. Anne tem a impressão de ouvir barulhos quando está em casa, alguém que chora. A instabilidade parece sempre pronta para bater na porta - assim como é a guerra, a doença, o extremismo. É meio brutal e imprevisível. E por isso mesmo tão potente.


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