terça-feira, 15 de outubro de 2019

Disco da Semana - Big Thief (Two Hands)

Existem coisas que raras vezes acontecem no mundo da música e das artes em geral. Um artista no topo de sua habilidade criativa de alguma forma amplia sua capacidade de produzir, potencializando características esboçadas em seus trabalhos anteriores e desenvolvendo uma identidade incrivelmente própria. E mais: em um período menor que seis meses consegue trazer ao mundo duas obras que estão entre os mais impactantes lançamentos do ano! Esse é o caso da banda americana Big Thief que, após o incensado e elogiadíssimo U.F.O.F. nos brinda agora com este maravilhoso Two Hands. Se no primeiro havia um clima mais "espacial" no indie/folk/rock praticado pelo grupo, no segundo a banda capitaneada por Adrianne Lenker recorre à simplicidade como grande trunfo de suas poderosas canções.

Como nos grandes discos que conseguem captar a atmosfera do local onde a banda se encontra, em Two Hands vemos uma banda em plena capacidade de execução e expressão dos sentimentos decorrentes das composições. Ao optar por um som cru sem muitas aparas e imperceptíveis overdubs, a sensação é a de estarmos assistindo ao ensaio de dentro do estúdio. E é aí que a mágica acontece de verdade. Bateria, baixo, violão, guitarra, o vocal peculiar de Lenker, são fatores a princípio pequenos mas que em conjunto resultam em algo difícil de explicar em palavras. E sabemos que quando nos maravilhamos com algo palavras geralmente nos faltam. Se no anterior sons nos remetiam a uma certa estranheza, como se estivéssemos em um lugar desconhecido, é no clima de familiaridade que somos acolhidos neste mais recente lançamento. E sabemos que a simplicidade requer muito trabalho para ser atingida.


Na introdução com Rock and Sing já podemos sentir a tristeza característica da voz de Lenker, bem como sua letra melancólica que nos convida a fazer exatamente o que o título diz. Funciona como uma leve (e breve) introdução preparando o terreno para a fabulosa Forgotten Eyes, cujas guitarras lembram um pouco Neil Young and Crazy Horse, onde Lenker brilha com sua voz ao mesmo tempo poderosa e vulnerável que contrasta com doçura no refrão. Uma das grandes canções do ano. The Toy é triste e climática enquanto Two Hands é formidável em sua execução - a maneira como a percussão, os instrumentos dedilhados e o vocal se encaixam é algo que beira o sublime em seu desabafo agridoce sobre um relacionamento difícil. Those Girls segue com delicadeza instrumental e vocal frágil enquanto Shoulders e a seguinte, Not, trazem as guitarras novamente à tona dando um clima mais roqueiro e intenso ao disco num de seus melhores momentos, peso esse que é complementado pelas letras viscerais de Lenker. Wolf ainda traz guitarras dedilhadas e a dupla final, Replaced e Cut My Hair, encerram o álbum em uma nota mais calma e melancólica.

O finado (e saudoso) Jeff Buckley certa vez declarou: "Ser sensível não é o mesmo que ser fraco. Significa estar tão dolorosamente atento que mesmo uma pulga pousando sobre um cão soaria como uma explosão". Ao nos depararmos com obra de tamanha sensibilidade é importante algo que chamo de contexto musical: sabe quando você ouve o disco certo no momento certo? Quando parece que alguma força além da compreensão te faz entrar em contato com aqueles sons, melodias, e parece que você está na companhia de amigos que te afagam mas ao mesmo tempo te jogam verdades doloridas (e purificadoras) na cara? Que você sente que amadureceu um pouco mais ao final da jornada? Pois é exatamente isso que aconteceu comigo durante a audição deste soberbo Two Hands. Uma obra difícil de se livrar e quando você se dá conta já colocou no repeat, ouviu dezenas de vezes, e aquilo foi se entranhando no inconsciente num crescendo cada vez maior. É algo raríssimo de acontecer - e muito especial. O disco do ano até agora.

Nota: 10


2 comentários:

  1. Que baita resenha/avaliação! Conhecia quase nada da banda e ela ocupou completamente meu spotify desde ontem, por culpa do Picanha... Tô ouvindo os quatro álbuns, mas Two Hands tem algo de formidável mesmo. The Toy, até aqui, a minha preferida (sempre as mais tristes, fazer o quê?!). Entendo essa coisa estranha - e bela - que faz uma canção ou um álbum encaixar no momento necessário. Foi assim com Valtari (Sigur Rós) e Biophilia (Björk) pra mim, até hoje (os Air Supply deixa pra lá hehe). Coisa de quem sente demais, né (genialmente traduzido pelo Jeff Buckley). Enfim, agradeço por ter ganhado mais uma banda em 2019 :)

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  2. Obrigado pelo feedback Isma, compartilhamos do mesmo sentimento em relação à banda. Feliz em ter colaborado com essa descoberta. Abração!

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