E o que mais impressiona é o fato de os anos passarem, com Elza permanecendo ativa, prolífica. Com uma média de quase um disco por ano - ao menos nos últimos anos -, tem sido a voz que representa as minorias, os vulneráveis, aqueles que precisam falar, gritar, mas não sabem como. Bolsonaro, todos sabemos, é o inimigo público número um das artes. Aliás, não só das artes, do POVO. Elegeu a Lei Rouanet como uma espécie de "bode expiatório" do mau uso do dinheiro público na cultura, que seria povoada por pessoas peladas, depravadas, ofensivas. Ignorou assim a importância do papel da arte, da transformação que ela é capaz de promover, se bem conduzida, inclusive como política pública. E talvez seja por tudo isso que Elza sinta tanta necessidade de se expressar. E por nós que ela se expresse, já que cada disco é melhor que o outro. Cada petardo é certeiro, dito de forma sinuosa, lânguida, de uma forma que jamais conseguiríamos, na lata, sem medo.
"O Brasil está doente mas estou avançando", disse a artista em uma entrevista à Folha de São Paulo. Ela está lançando o seu 34º disco da carreira, que leva o título de Planeta Fome - que alude a resposta que ela deu a Ari Barroso quando tinha apenas treze anos e se atreveu a cantar em um programa de calouros da extinta Rádio Tupi. Esse atrevimento glorioso permanece embotado em Elza, no novo material em que ela nos entrega. A palavra zeitgeist é utilizada hoje em dia sem nenhuma parcimônia para resumir o "espírito de nosso tempo". Mas é que Planeta Fome traduz justamente esse sentimento. "Nos anos 60 eu via muita gente na rua. Chico, Caetano, aquelas composições fortes. Sofreram, claro, por toda a rebeldia. Mas hoje, está todo mundo com medo de falar. É por isso que uso a minha voz, para falar o que se cala", afirma a artista na mesma entrevista, garantindo, metaforicamente, que está com FOME. "De saúde, de respeito, de amor, de um País melhor".
No repertório do álbum, produzido por Rafael Ramos, do Selo Deck, há regravações como o clássico Comportamento Geral de Gonzaguinha, que nunca soou tão atual (Você deve rezar pelo bem do patrão / E esquecer que tá desempregado) e Pequena Memória de Um Tempo Sem Memória de Seu Jorge. Em Não Tá Mais de Graça, um dos hinos de Elza, A Carne, é recuperado com uma pequena mudança que celebra as conquistas da comunidade negra (A carne mais barata do mercado / Não está mais de graça). Nas inéditas, uma mistura de ritmos regionalistas (Libertação), MPB (Menino), rock (Bla Bla Bla) e música brega (Tradição). Em todas elas uma visceralidade, uma crueza que exala por cada "poro", exaltando um povo que não baixará a cabeça sem lutar, como comprova País do Sonho, uma das tantas candidatas a música do ano (Eu preciso encontrar um país / Onde a corrupção não seja um hobby / Que não tenha injustiça, porém a justiça / Não ouse condenar só negros e pobres). A Rainha do Samba definitivamente não existe mais. Virou a Rainha de Tudo. E de todos.
Nota: 9,0
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