Obras cheias de simbolismos e amplamente evocativas como o clássico moderno Abril Despedaçado, de Walter Salles, podem ser analisadas pelos mais diversos ângulos. Por um lado trata-se de um faroeste "à brasileira", que retorna ao começo do século passado para abordar a sangrenta luta entre duas famílias nordestinas pela posse de terras - e que inevitavelmente resultará em tragédias sequenciais. Por outro, o filme também é um elogio ao poder transformador das artes e ao espírito libertador da educação, o que é simbolizado muito particularmente pelo "relacionamento sério" entre o menino Pacu (Ravi Ramos Lacerda) e o seu único livro. Unindo estes dois universos bastante distintos, uma história de superação de dificuldades, de aprendizado e de mudança de destino - especialmente se este destino envolve um ciclo de violência que parece interminável.
A trama nos joga para a aridez escaldante do Nordeste onde, há mais de 100 anos, a posse de terras era determinada por uma luta ancestral. Uma camisa esmaecida, com uma mancha de sangue que já "amarelou", é o indicativo que autoriza o jovem Tonho (Rodrigo Santoro) a vingar a morte de seu irmão mais velho. Com a missão cumprida, passa a ser ele o jurado de morte pela família rival - a trégua durará até a próxima lua cheia (e uma espécie de fita preta amarrada no braço será o símbolo que lhe marcará seu destino). Consumido pela tristeza, Pacu, que é o irmão mais novo de Tonho, encontra em uma dupla de teatro mambembe - a jovem Clara (Flavia Marco Antônio) e seu tio Salustiano (Luiz Carlos Vasconcelos) -, uma espécie de "respiro" em meio ao cenário de muito trabalho (a família cultiva cana de açúcar e produz rapaduras), de luta, de dor e de abafamento palpável.
Na família não há espaço para diversão (ou para distração), como comprovará o descontentamento do pai dos meninos (o sempre carismático José Dumont, que aqui interpreta um homem embrutecido e melancólico). Será no choque entre esses dois mundos - um de sonhos, de sereias e de liberdade, outro de cansaço, de labor e de torpor -, que residirá um dos arcos dramáticos mais interessantes dessa pequena joia de nosso cinema. Não é por acaso que em uma das primeiras aparições de Clara e de Salustiano, apresentando um número ao mesmo tempo arriscado e divertido com o uso do fogo, nos encontremos tão comovidos: é a arte invadindo o sangue e as vísceras daqueles que estão ali a descobrir os encantos poéticos do "faz de conta". Ainda que, de forma paradoxal, a presença do sol, do fogo (e consequentemente do calor), em suas vidas, tenha significados distintos.
Aliás, o filme é pródigo em utilizar um sem fim de rimas visuais para reforçar aquilo que, efetivamente, quer dizer. É o caso, por exemplo, da junta de bois anda em círculos na lida no moinho da família - assim como os seus próprios integrantes, que rodam e rodam sem sair do lugar, sem sair da miséria e do ciclo eterno de pobreza (a despeito da posse de grandes áreas de terra). Já em outra cena, Tonho anda pela primeira vez de balanço, sentindo o vento no rosto, uma representação de liberdade efêmera, que será representada pelo rompimento da corda que segura o objeto. Há aspereza e ternura, dor e comoção se alternando permanentemente na tela, o que conduz o espectador a um sem fim de sentimentos - e aqui há também que se destacar o belo trabalho de fotografia e mesmo o desenho de produção (a aridez e o suor são tão claudicantes, que às vezes até parece que vão saltar da tela).
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