Parece inacreditável que, nos dias de hoje, episódios como o do assassinato do músico Evaldo dos Santos, há pouco mais de uma semana, ainda ocorram. Na ocasião, uma ação absurdamente destemperada de um Exército racista e despreparado foi o gatilho para o disparo de 80 tiros de fuzil contra a família do homem, que retornava de uma festa. O que fez a corporação diante desse episódio nefasto? Divulgou uma nota, no dia seguinte, que garantia que Evaldo havia atirado primeiro contra os militares, que apenas teriam agido em legítima defesa. Nas imagens divulgadas na internet e no relato de testemunhas não há nada que confirme a desvairada versão da polícia. Foi execução pura e simples. Talvez motivados por "violenta emoção" ou "surpresa" - pra ficar nas palavras do Pacote Anticrime do Sérgio Moro - os militares agiram, confirmando aquilo que as estatísticas não deixam mentir: a política pública de segurança é racista já que de cada dez mortes, sete são de pessoas negras.
Bom, se hoje é assim - e o caso de Evaldo é UM CASO, em meio a centenas que ocorrem somente no nosso País - o que dirá em tempos passados, muito mais segregacionistas e preconceituosos? Na abertura do filme Se a Rua Beale Falasse (If Beale Street Could Talk), um letreiro do autor James Baldwin diz que "toda a pessoa negra nascida na América nasceu na Rua Beale, no bairro negro de uma cidade americana, seja em Jackson Mississipi ou no Harlem em Nova York. A Rua Beale é o nosso legado". Essa sentença é uma forma de dar conta, metaforicamente, de uma história de preconceito, de racismo e de abusos de autoridade. Se por um lado a Rua Beale - localizada em Nova Orleans - é barulhenta e o berço do jazz, por outro ela também é o local em que a violência contra os negros acontece, legitimada por aqueles que deveriam ser os responsáveis por defender o cidadão, independente de sua raça. É assim em qualquer lugar do mundo. É assim em Guadalupe, na Zona Oeste do Rio de Janeiro, com a família de Evaldo dos Santos.
Na trama, acompanhamos a jornada da jovem Tish (Kiki Layne), que luta para livrar o marido Fonny (Stephan James) de uma acusação criminal, aparentemente injusta, de estupro. Cumprindo pena enquanto aguarda o desenrolar jurídico do episódio - o que envolve uma tentativa de localizar a suposta vítima, que teria fugido para Porto Rico -, Fonny descobre que Tish está grávida. E como se não bastassem os problemas relacionados à prisão do homem, as famílias de ambos ainda "batem cabeça" encontrando espaço para desavenças religiosas - o que envolve uma maravilhosa cena em que todos estão reunidos (pais mães, irmãos), bem no começo da película. Provar a inocência de Fonny não será tarefa fácil: há um advogado caucasiano que se empenha no caso, mas parece haver sempre uma desconfiança no ar, em relação as suas reais intenções. O que é reforçado pela morosidade para qualquer tipo de resolução.
A despeito da "morosidade", o filme poderá soar levemente arrastado para o espectador que não está tão habituado a uma linguagem cinematográfica com uma fluidez mais lenta, quase lânguida. Mas a obra é muito bonita, quase nos remetendo àqueles antigos filmes apaixonados dos anos 40. Há uma forte carga romântica - reforçada pela bela trilha sonora - que faz com que torçamos o tempo todo pelos protagonistas. Mas o que a gente sabe de antemão é que tudo é mais difícil quando estamos falando de provar a inocência de um negro. A família de Fonny fará de tudo para que isso aconteça - entre elas a sua sogra, vivida por uma Regina King assombrosa em caracterização que lhe deu o Oscar. Mas há um outro lado também machucado, dolorido: o de uma mulher que foi estuprada e, traumatizada, pode ter confirmado aquilo que não era verdade. A dúvida permanece até o final, ainda que a presença de policiais racistas, de entes políticos cheios de preconceitos e de um Estado que não olha para as minorias, posso indicar aquilo que, afinal de contas, todo mundo já sabia: Fonny era inocente. E, assim como Evaldo, não merecia a sentença que lhe foi dada.
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