terça-feira, 8 de novembro de 2016

A Volta ao Mundo em 80 Filmes - O Sonho de Wadjda (Arábia Saudita)

De: Haifaa Al Mansour. Com Waad Mohammed, Abdullrahman Al Gohani, Reem Abdullah e Sutan Al Assaf. Drama, Arábia Saudita / Alemanha, 2012, 97 minutos.

Acredite se puder: gravado em 2012, O Sonho de Wadjda (Wadjda) é o primeiro filme da história feito na Arábia Saudita. Sim, há apenas quatro anos. E isso não é por acaso, já que no País não são aceitas manifestações artísticas em espaços públicos como teatros ou cinemas. Aliás, tais locais sequer existem. Por essa lógica, não é necessária a confecção de filmes, já que estes, evidentemente, não serão vistos. O caso é que, como ocorre em muitos estados extremistas, as expressões culturais são encaradas como uma forma de subversão que, vejam só, poderá fazer as pessoas pensarem. Enfim, questionarem, refletirem sobre o universo em que estão inseridas ou sobre suas próprias existências, crenças ou convicções. Bom, não se pode negar que os reis de lá - o País vive sob uma monarquia - tinham certa razão, já que O Sonho de Wadjda pega justamente no maior problema não apenas da Arábia Saudita, mas da maioria dos estados islâmicos e que envolve a forte opressão as mulheres e a sua total e histórica submissão aos homens.

Assim como ocorre nos filmes iranianos, a trama parte de um fiapo de história para apresentar e analisar um contexto muito maior. Tudo que Wadjda (Mohammed), que tem apenas 10 anos de idade, quer, é poder andar de bicicleta. Ela passa os dias brincando com os guris em meio as ruas empoeiradas e escaldantes do subúrbio da capital Riade, em especial com o jovem Abdallah (Al Gohani). Mas quando todos sobem nos veículos de duas rodas para apostar corridas, a menina acaba ficando para trás, já que, na sociedade absolutamente conservadora e machista em que vivem, não é permitido as garotas andar de bicicleta ou de carro. Aliás, às mulheres do País não é permitida coisa alguma, já que o Estado está em uma das piores posições do mundo no que diz respeito a igualdade entre gêneros no âmbito doméstico, de acordo relatório produzido pelo World Economic Forum.


No País, são várias as restrições as mulheres, que são extremamente afetadas pelas políticas não inclusivas locais, que se utilizam de um padrão que enaltece o gênero masculino e inferioriza o feminino. Não por acaso, uma das leis mais conhecidas e que atesta essa desigualdade, é aquela que estabelece a necessidade de as mulheres terem um guarda masculino, responsável por conceder autorizações acerca da vida cotidiana, como por exemplo, o direito de trabalhar, frequentar a escola, ir a estabelecimentos públicos e até ir ao médico. Bom, as mulheres sequer podiam votar quando o filme foi lançado - conquista que só foi alcançada, após uma onda de protestos, em 2015. Nesse sentido, a grande sacada da obra da diretora Haifaa Al Mansour é ir apresentando esse cenário de opressão aos poucos para o espectador, fazendo com que ele seja envolvido e, inevitavelmente, arrebatado, por aquela que é a realidade das mulheres árabes.

Sem deixar de lado a comoção da busca de Wadjda pelo dinheiro que poderá representar a materialização de seu objeto de desejo - alcançado, aqui e ali, por meio de trambiques e negociações com outros alunos e amigos - a diretora esquadrinha, com sua câmera levemente distante, fluída e muito técnica, um contexto de desolação para TODAS as personagens do filme. Assim, mesmo quando aparecem aparentemente empoderadas - como no caso da mãe de Wadjda (a belíssima Reem Abdullah) -, as mulheres, no instante seguinte, apenas reforçam os estereótipos de uma sociedade puramente patriarcal, em que elas vivem exclusivamente para servir os seus maridos, donos ou o que quer que seja. Mesma situação vive, por exemplo, a diretora do colégio, ela mesma a responsável por oprimir as meninas que promovem pequenas subversões como ouvir música, usar tênis all star, ou pintar as unhas dos pés. Ela cresceu assim. Aprendeu dessa forma. E acompanhar sequências em que o casamento de uma criança é anunciado - algo normal no País -, em que uma árvore genealógica é mostrada, mas sem a presença dos familiares do sexo feminino ou em que um pedreiro grita obscenidades pedófilas para a protagonista do filme, apenas serve para reforçar ainda mais a realidade desoladora e de desencanto vivido pelas mulheres árabes.


Feito como um pequeno e sutil manifesto de repúdio a uma cultura milenar - e que, vejam bem, NÃO REPRESENTA o que diz o Alcorão e o islamismo como um todo, que prega a IGUALDADE entre seres humanos e seus gêneros -, O Sonho de Wadjda ainda consiste em um exercício absolutamente talentoso de todos os envolvidos na construção da narrativa que é conduzida de forma naturalista e sem maneirismos. Nesse sentido, o filme jamais soa como artificial ou mesmo amador, ainda que represente o ponto inaugural da sétima arte no País. E se o elenco todo é competente em sua caracterização é a jovem Mohammed que, literalmente, rouba a cena, ao encarnar a sonhadora Wadjda como uma menina determinada, sensível, graciosa e divertida, e que mantém ainda certa ingenuidade diante dos constantes choques de realidade que lhe são impostos. E se a pequena "conquista" do final do filme parece pouco para mãe e filha, por outro lado muitas serão as lágrimas dos espectadores com o pequeno passo dado. E que pode significar o fiapo de esperança que tanto necessitam as mulheres dessas nações.

Fontes:

Os direitos da mulher na Arábia Saudita: uma análise das concessões e proibições sob a ótica dos preceitos islâmicos
Religião e opressão contra as mulheres

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