Há que se louvar o fato de a primeira série da Netflix produzida no Brasil ser de um gênero pouco comum por aqui: no caso, a ficção científica. Ainda mais pelo fato de estarmos acostumados a linguagem das comédias farsescas no cinema - aquelas protagonizadas pelo Leandro Hassum e mais alguém - e à dramaturgia simplista das novelas e suas tragédias eventualmente distantes da realidade das famílias tupiniquins. Ou seja, merecem elogios o Cesar Charlone e o Pedro Aguilera - os criadores do projeto - por se desafiarem. E por proporem uma distopia a respeito de um universo em um futuro não tão distante assim, em que apenas 3% da população vive no bem bom. Enquanto os outros 97% penam em uma vida miserável, com alta escassez de recursos, em meio a um ambiente sujo e inóspito, conhecido apenas como Continente (ou Lado de Cá).
A ideia era muito boa e prometia, especialmente pelo fato de este recorte ser, aparentemente, muito fiel a nossa realidade. E as distopias, é preciso que se diga, quase sempre apresentam, em seu contexto, analogias capazes de apresentar o mundo tal qual nós vivemos. Em que os pobres se tornam cada vez mais pobres, as custas da ganância e da ambição daquela parcela da população mais abastada, que não verá problema algum em gerar políticas - ou leis - que mantenham essa equação exatamente como está. Contando muitas vezes com o apoio justamente daqueles que são oprimidos - e obras-primas da literatura, como 1984 de George Orwell ou mesmo filmes recentes, como o ótimo Distrito 9 são bons exemplos de distopias que apresentam metáforas que passam de raspão na realidade. Então, confesso que fui salivando assistir a 3%, quase no modo maratona. Mas, digamos que a série tem muitos probleminhas.
O mais gritante de todos disparado envolve as interpretações. Na trama, os jovens que vivem nos 97% tem a chance de, aos 20 anos, passar por uma bateria de provas - físicas, morais e psicológicas - que poderá lhes render o acesso ao mundo de riquezas e oportunidades do local conhecido apenas por Mar Alto. Mas o grupo de atores pós-adolescentes comandado pela protagonista Michele (Bianca Comparato) definitivamente não convence. Aliás, em alguns momentos constrange - também por culpa do roteiro opaco. Em determinada prova, Michele deve convencer os pais de uma jovem morta durante o Processo a aceitar a ideia de permitir a sua outra filha, a participação nas mesmas provas. Michele chora, faz discurso antiquado sobre ter perdido o irmão e, assim, num passe de mágica, convence o casal desconhecido a dizer as palavras que lhe garantem a aprovação no desafio. Mas a cena não é convincente. E esse é apenas um exemplo de forçação de barra.
Aliás, a necessidade que tem o roteiro - e seus diálogos - de desenhar para o telespectador aquilo que está sendo apresentado também se configura em um problema. Não são poucas as vezes em que aquilo que se vê recebe uma bengalinha textual para que não haja dúvidas quanto aquilo a que se está querendo dizer. Em determinada prova os participantes se veem presos em uma espécie de albergue em que um pequeno grupo, capitaneado por Marco (Rafael Lozado), se esforça para tentar arrombar o portão de saída. O que lhes poderá dar a liberdade e a vitória no desafio. Sem alcançar sucesso na empreitada, do nada o grupo se revolta e, adotando postura fascista, passa a saquear os demais integrantes, roubando suas comidas e bebidas. Quando o grupo que está sendo vilipendiado reage, Rafael usa da violência e brada: "isso aqui é um microcosmo da nossa sociedade, onde poucos mandam e muitos obedecem". Sério, seria muito mais bonito deixar para que nós mesmos tirássemos essa conclusão.
E se a construção da "nova juventude política fascista", que se vale da meritocracia para alcançar seus objetivos, ao menos é bem pensada - o mesmo Rafael é de uma família tradicional em que todos os seus membros foram aprovados nos testes para o Mar Alto, não hesitando em utilizar de ódio e violência para alcançar seus objetivos - o mesmo não se pode dizer de toda a conjuntura estabelecida, o que é uma pena. Não que a construção de um universo totalitário tivesse que ser maniqueísta ou unidimensional, mas causa verdadeiro estranhamento o fato de os recrutadores das provas serem sujeitos eventualmente simpáticos e "humanos" - a exceção do protagonista Ezequiel (o talentoso João Miguel, em um papel errado) - e genuinamente preocupados com os seus pupilos. Assim, mesmo em um cenário de injustiças sociais, não parece haver sujeitos "do mal" na trama, o que torna as ações da Causa - um grupo insurgente que aparece volta e meia - um tanto inócua. O próprio "casal fundador" tantas vezes citado, parece ter saído da pobreza, tendo "construído" o Mar Alto com humildade, trabalho e empatia. Mas como pode, assim, o sistema ter se tornado tão injusto?
Outras decisões também são exóticas nesse sentido. Por exemplo, no Mar Alto não é permitido ter filhos. Mas, por quê não propagar os genes meritocráticos de seus habitantes, deixando o povão na miséria sem chance alguma? E que sistema fascista é esse em que minorias são conduzidas até o final do processo, num misto de pena e admiração por seus atos - como no caso da rebelde Joana (Vaneza Oliveira)? São meio estranhas as concepções do roteiro e a impressão que dá é que não foram bem desenhados os lados nessa história toda. E, por mais cruel que isso possa parecer, muito provavelmente o cenário "verdadeiro" dessa distopia seria muito mais adverso com um personagem cadeirante - no caso Fernando (Michel Gomes, o melhor do elenco jovem) - do que aquele em que vemos na série. Mesmo superando eventuais dificuldades - aliás, as provas também apresentam problemas, já que raciocínio lógico, velocidade de pensamento, capacidade de resolver charadinhas bobas e perspicácia para trapacear parecem ser condição fundamental para a migração para a porção rica.
Pra não dizer que não falei de flores, o caso é que a primeira série brasileira da Netflix parece o tempo todo rir do fato de ser um produto realizado com escassez de recursos. E se nas ficções científicas americanas o mundo do futuro sempre é altamente tecnológico, com cores frias e asséptico, no nosso 3% os cenários são absolutamente bregas, com cores extravagantes e figurinos anacrônicos, formando um conjunto que mais parece saído da vida "altamente tecnológica" da irmã do Sr. Hulot, no clássico Meu Tio (1958). Não é por acaso que, mesmo em um universo futurista, a visualização de uma prancheta eletrônica "da pau", obrigando Ezequiel a resolver a questão na base do tapa. As próprias (e, por vezes, inexplicáveis) aparições dos conselheiros - comandados por Matheus (o veterano Sérgio Mamberti) - são curiosas, com cada integrante surgindo enfileirado em uma tela poeirenta em que, aquele que fala, é mostrado mais a frente dos demais - gerando cenas em que fica difícil controlar o riso involuntário. Não vou nem citar o aparato tecnológico que sempre parece insuficiente para localizar os integrantes da Causa. Ou mesmo as conspirações dos personagens DENTRO do universo de disputas rumo ao Lado de Lá. E o que dizer da descartável personagem Aline (Viviane Porto), que aparece para monitorar as ações de Ezequiel, mas sem uma lógica que possibilite a esse arco dramático qualquer tipo de significado. Enfim, a primeira série da nacional da Netflix ainda pode melhorar, e muito, se conseguir desenhar melhor seus personagens e se encontrar mais sentido em seu retrato de uma sociedade em que sujeitos próximos vivem em condições diferentes. Por enquanto, não passa de um produto que desperta a curiosidade. Mas decepciona, de alguma forma.
Nota: 5,3
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