terça-feira, 18 de outubro de 2016

Cine Baú - A Classe Operária Vai ao Paraíso (La Classe Operaia Va In Paradiso)

De: Elio Petri. Com Gian Maria Volonte, Mariangela Melato, Salvo Rondone e Mietta Albertini. Drama / Itália, 1971, 126 minutos.

Existe uma frase atribuída a escritora, filósofa e ativista política Simone de Beauvoir que se aplica bem ao contexto apresentado na obra-prima do cinema italiano A Classe Operária Vai ao Paraíso (La Classe Operaia Va In Paradiso). Afirmava ela que o opressor não seria tão forte se não tivesse cúmplices entre os próprios oprimidos. Sim, vocês bem sabem que tal sentença se mantém mais do que atual, especialmente no nosso País que assiste a uma verdadeira caçada a direitos e conquistas sociais, que são vilipendiados diariamente por um Governo ilegítimo. E o que é pior, corroborando a tese de Simone: sou o aplauso e a bateção de panela da turba da camiseta da CBF. Da família de bem que parece conviver com uma espécie de Síndrome de Estocolmo política em que é capaz de encontrar regozijo por ser saqueado, invadido, subtraído. "Dormia, a nossa Pátria tão distraída" já dizia Chico Buarque. Vai passar, esperamos.

Pois na Itália do final dos anos 60 e início dos 70 - período que veio a ser conhecido mais tarde como Outono Quente, por conta da série de protestos, greves e outras agitações sociais que chacoalharam o País que, alinhado ao Plano Marshall americano, experimentava um crescimento econômico desenfreado - a frase de Simone também encontra pouso. Encontra pouso em Lulu (Gian Maria Volonte), o protagonista. Lulu é o que pode ser chamado de "operário-padrão" pra usar um jargão do meio. É dedicado e admirado pelos seus chefes pelo trabalho que desempenha, com muito esforço e suor, em uma indústria metalúrgica. Ao lado de outros empregados, passa os seus dias operando máquinas que produzirão roldanas, porcas, parafusos e correias de transmissão que, sabe-se lá onde vão parar e para que uso serão aplicadas. Mas serão, certamente, assim imaginam os colaboradores.


Apesar das condições absolutamente insalubres de trabalho, em um ambiente úmido, escuro e barulhento, em que os empregados, que sequer podem sentar durante suas atividades, ainda convivem com metas altíssimas, Lulu se mantém alheio a qualquer manifesto contra a visível opressão a que são submetidos os operários. Enquanto sindicalistas, jovens colegas e estudantes - oras, sempre esses estudantes "vagabundos" querendo "incomodar" (quem sabe se o Governo italiano tivesse congelado os investimentos em Educação durante 20 anos?) - distribuem panfletos em frente a fábrica, conclamando os trabalhadores para greves que poderão resultar em cargas horárias mais justas, salários mais adequados e melhores condições gerais, Lulu se mantém em seu mundinho particular. Mundinho em que recebe tapinhas nas costas dos superiores por desenvolver sistemas que aumentam a produtividade. E que servem apenas para jogar mais pressão nos colegas de trabalho, já que o salário de ninguém, a não ser dos donos, aumenta. Aliás, os colegas não gostam de Lulu, que se sente patrão. Tem o sonho de consumo da classe média, seus carros e televisores. Mas quando volta pra sua casa minúscula e excruciantemente quente está tão exausto que sequer consegue ter um convívio familiar razoável, com o problema se estendendo até mesmo para a parte sexual.

Digamos que a ficha cai - lembram da ficha do Laerte, que ainda esperamos que caia por aqui? - para Lulu quando, num dia de trabalho exaustivo, ele perde um dedo. Desassistido pelo Plano de Saúde ocupacional, que lhe fornece o mínimo dos mínimos, Lulu resolve que é hora de se engajar, aderindo ao pleito do sindicato, que organiza uma greve que faz com que as operações da fábrica fiquem paralizadas por duas horas. Mas as conquistas dos grupos sociais e revolucionários ainda que impactantes para o período acabam insuficientes em relação a vida particular de Lulu, que perde o emprego logo após retornar de sua licença sob a desculpa de que, sem um dedo, sua produtividade se torna muito menor. Sim, os tapinhas nas costas dão lugar ao pé na bunda. Tudo isso em um arco dramático que poucas vezes foi tão contundente no chamado "cinema político" e na abordagem da relação patrão-operário que, pode-se dizer, iniciou, ainda que de maneira mais tímida, durante o neorrealismo italiano de filmes como Ladrões de Bicicletas.


Elio Petri constrói o seu filme não sem injetar uma boa dose de melancolia, apresentando a classe operária como uma massa ignorante do ponto de vista político, capaz de se glorificar apenas ao assistir a TV a noite, com suas novelas e programas de auditório repletos de personagens exuberantes. E é por meio desse "espelho" que ela sonha com a ascensão social, alienada ao mundo e devota a um contexto que, de maneira quase invisível, lhe consome o corpo e a alma. (e não é por acaso que, em dado momento, sequer nos surpreendemos com a revelação do protagonista que diz ter apenas 31 anos, apesar de aparentar 50) "Vocês não seriam nada sem os patrões" brada a namorada de Lulu em determinado momento, deixando aflorar um indelével caráter reacionário. Todas essas questões abordadas na película - ganhadora da Palma de Ouro de Cannes em 1972 -, que não tem vergonha de tomar partido no debate, culminam em um dos finais mais acachapantes da história do cinema (spoiler!), em que o grupo de operários, como que vivendo uma espécie de transe coletivo, trafega entre a loucura da rotina e a realidade da repetição mecânica de suas tarefas (bem ao modo de Chaplin em Tempos Modernos), bradando uma série de frases sem sentido. Tudo embalado pela ostensiva trilha sonora de Ennio Morricone. Fundamental.

4 comentários:

  1. Imperdível. Resenha excelente. Quem ler, verá.

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Bacana, Bonine! Bom ter conseguido honrar nas palavras esse grande filme. Obrigado pelo recado!

      Excluir
  2. Mui bueno. Contexto que hoje com a chamada modernidade liquida da escravatura do capital, torna-se mais cruel ainda, regressora das conquistas sonhadas e conquistadas pela politização d'outrora da classe trabalhadora.

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Nesse sentido, filme atualíssimo mestre Lauro. Valeu pelo registro do comentário!

      Excluir