Ao analisar a nossa condição de humanos, e ignorando o eventual aspecto reducionista desta constatação, seria possível dizer que somos constituídos por duas "partes". Uma delas seria aquela que é visível - nosso corpo, cor da pele e dos olhos, formato do rosto, tipo de cabelo. A outra seria a que está no nosso íntimo e que apenas nós somos capazes de lidar: nossos medos, angústias, frustrações, desejos, temores, fetiches, preconceitos, alegrias. Aquilo que pensamos e que só pode ser expresso por meio raciocínio, do gesto, da fala. Em geral é o que não vemos, ao menos de saída. É o que sentimos. E que pode fluir no campo das ideias, do imaginário, do fluxo de pensamento. Transformar este turbilhão que nos inunda em algo "palpável", a partir do ponto de vista de uma pessoa cega, é simplesmente o maior achado deste verdadeiro Tesouro Cinéfilo que é a produção norueguesa Blind.
Nessa pequena obra-prima do cinema contemporâneo somos apresentados a personagem Ingrid (Ellen Dorrit Petersen), que, por conta de uma doença degenerativa, está perdendo a visão. A abertura do filme já a mostra em seu apartamento, com suas divagações a respeito do antes e depois do mal que lhe acometeu a possibilidade de enxergar o mundo e de como ela vai tentando lidar com a situação, que ainda é nova. Não demora para que sejamos apresentados a outros personagens, entre eles a solitária mãe solteira Elin (Vera Vitali), que parece ter como único propósito de vida as visitas de seu filho de 12 anos nos finais de semana, além do introspectivo Einar (Marius Kolbenstvedt) que, com a dificuldade de se relacionar com as pessoas no "mundo real", passa os seus dias se masturbando enquanto assiste vídeos pornográficos fetichistas na internet.
Mas o que se tem por "mundo real" também parece ser um universo de incertezas em Blind. Ingrid tem dificuldades em sair do apartamento. Se sente insegura e, por isso, se imagina, a partir dos barulhos que ouve em casas ao lado, nos corredores e nas ruas - e que parecem ser DENTRO de sua sala - visitada por seu marido, Morten (Henrik Rafaelsen), as escondidas, como se este quisesse lhe provocar ou pregar algum tipo de peça. Estaria ele brincando com ela? Ficando mais frio ou distante? Não demora muito para que compreendamos o fato de que, no filme, os acontecimentos de verdade se mesclam com aqueles que são fruto da imaginação fértil da protagonista. As interações entre Morten, Elin e Einar são verdadeiras? Ou não passam de devaneios de Ingrid?
Magistral em utilizar a mise-en-scéne, a fotografia e a edição e a mixagem de som para, propositalmente, confundir o espectador - seja por meio de planos detalhe claustrofóbicos ou por meio da trilha diegética sufocante -, o diretor Eskil Vogt ainda ganha muitos pontos por tratar a sua protagonista como uma pessoa como qualquer outra, cheia de inseguranças, vontades, sonhos (e não como uma "pobre coitada" que deixou de ver). É um ponto que guarda semelhança com o tocante filme nacional Hoje Eu Quero Voltar Sozinho, também lançado em 2014. Nesse sentido, o distanciamento do marido no que diz respeito ao ponto de vista sexual seria algo de fato, ou também resultado de um processo que delimita a capacidade de a protagonista enxergar, que seja, a expressão de seu companheiro? São perguntas que ficam.
Rico em detalhes, complexo em alguns pontos, lento em sua fluidez, mas, ainda assim, absolutamente tocante, Blind oferece ao espectador uma verdadeira experiência sensorial cinematográfica que foge da lógica estabelecida pelo mercado e da qual estamos acostumados, com começo meio e fim bem definidos, assim como "mocinhos", "bandidos" e tudo o mais. Isso sem contar as interpretações elegantes e cheias de potência e versatilidade e o roteiro intrigante - que resultou em premiações em Berlim e Sundance. Não é um filme de fácil "digestão", mas é daqueles que nos faz pensar (e muito) sobre aquilo que vimos. E que, muito provavelmente, resultará em mais perguntas do que respostas ao seu final - que ainda é capaz de reservar uma divertida surpresa, quando da "libertação" de sua principal personagem.
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