terça-feira, 25 de novembro de 2025

Novidades em Streaming - Depois da Caçada (After the Hunt)

De: Luca Guadagnino. Com Julia Roberts, Ayo Edebiri, Andrew Garfield, Chloë Sevigny e Michael Stuhlbarg. Drama / Suspense, EUA / Itália, 2025, 141 minutos.

"Se é verdade pra você, então é verdade". Mas será que é verdade mesmo? Acho que dá pra encarar o ousado Depois da Caçada (After the Hunt), de algumas formas distintas. Em um primeiro olhar, o novo projeto do diretor Luca Guadagnino - dos recentes Rivais (2024), que é ótimo, e Queer (2024), que é fraco -, parece um filme conservador que acena para uma Geração X atualmente cansada e meio saudosista de algum tipo de passado, em que certas liberdades meio exageradas, inclusive no que diz respeito à preconceitos e abusos de poder em geral, eram mais naturalizadas. Meio que entranhadas na sociedade. Por outro lado, e meio que conectando a coisa, a obra soa pretensiosamente moderna em um estilo meio Tár (2022) ao apontar certo cansaço da era do cancelamento, e que muitas vezes envolve millenials com pautas relevantes debaixo do braço, mas meio incapazes de encampar lutas efetivas, que deem resultado.

A galera mais apressada, diante desse cenário, tratou logo de dar uma semicancelada no diretor que, ao não ser necessariamente maniqueísta em sua abordagem, pode ter perdido uma ótima oportunidade de aprofundar o debate sobre o ainda existente cenário de misoginia e de racismo - especialmente no meio acadêmico. Sim, esse é um caso. Quantas mulheres negras diretoras de centros universitários ou doutoras vemos por aí? Sim, é legítimo que isso seja questionado e seria muito cômodo para Guadagnino jogar pra torcida, colocando Maggie (Ayo Edebiri) como a mocinha injustiçada (e abusada) por um professor mais velho, porque simplesmente a vida é assim. Mas aqui o diretor opta por adicionar algumas camadas, com nem tudo sendo assim tão oito ou oitenta. Maggie pode ter plagiado a sua tese e estaria chantageando o professor que ousou questioná-la a respeito? Talvez. Não sei. Acho que ninguém sabe.

 


E talvez esteja aí parte da magia de Depois da Caçada que, sim, como o título sugere, tenta tratar, à sua maneira, do que acontece após uma denúncia de abuso - infundada ou não. No caso do professor universitário Hank Gibson (Andrew Garfield), ele se torna uma espécie de pária entre seus pares. De sujeito respeitado, que participa de jantares sofisticados e de diálogos pedantes, se torna um desempregado do dia para a noite, após as (gravíssimas) denúncias de Maggie. Com tudo se tornando ainda mais avassalador em um período de #MeToo (a trama se passa em 2019). Maggie espera contar com o suporte, também emocional, de sua mentora intelectual Alma (Julia Roberts), uma respeitada professora de filosofia que está retornando à vida acadêmica após um tratamento de saúde - que, ainda lhe afeta. A denúncia da violência praticada por Hank, que garante ter havido consentimento no ato (sem nunca negá-lo), abala a relação de amizade dos dois. Com tudo piorando frente a um gritante conflito de interesses, já que ambos pleiteiam a mesma vaga de professor titular de Yale, no departamento de Humanas.

Em geral, o público parece ter torcido o nariz para essa trama em que não há certeza de nada e que muito do que se vê ali fica nas entrelinhas. Enquanto assistia à obra, me lembrei de outros filmes modernos, que abordam o tema, como os esplêndidos Dúvida (2008) e A Caça (2012) e, em ambos os casos, também não temos meio que certeza de nada. Aqui, muita coisa fica nas entrelinhas, ou mesmo nos diálogos de todos ali - Aristóteles era um xenófobo? Nietzsche era um nazista? Freud era misógino? Devemos cancelá-los retroativamente? Ou é possível estudá-los separando a obra do autor? Conceitos como o do panóptico de Foucault, e que serve bem à uma sociedade em permanente vigilância, ou da Ética das Virtudes, de Aristóteles se espalham pela narrativa, pretendendo dar algum estofo para as discussões (o que talvez até possa confundir, ao invés de ajudar). Há excesso de vitimização hoje em dia? De mimimi? As pessoas tendem a julgar e a condenar sem necessariamente haver provas mais contundentes? Ou as pautas seguem atualíssimas e devem ser mais discutidas do que nunca em tempos em que ainda nos deparamos com violências diversas contra pessoas mais vulneráveis? São muitas questões e eu, particularmente, tendo a concordar com essa última ideia. Mas não ignoro a experiência com um filme que expande as questões, e que coloca outros pontos como centrais no debate.

Nota: 8,0 

 

segunda-feira, 24 de novembro de 2025

Novidades em Streaming - Belén: Uma História de Injustiça (Belén)

De: Dolores Fonzi. Com Dolores Fonzi, Camila Plaate, Julieta Cardinali e Laura Paredes. Drama / Policial, Argentina, 2015, 109 minutos.

"Em plena democracia em um hospital público Belén foi acusada, torturada e condenada na mesma noite.

Vamos combinar que, nos tempos políticos atuais, talvez não haja assunto mais divisivo do que o direito ao aborto. Se por um lado, a extrema direita fanatizada e de Bíblia debaixo do braço, quer, sob a desculpa da valorização incondicional da vida, obrigar até mesmo gestações resultantes de violências sexuais diversas - aliás, pouco importando se a vítima for uma adolescente ou, pior ainda, uma criança -, de outro, o campo progressista luta para que as mulheres possam ter meio que o básico. No caso o direito ao aborto minimamente em casos já previstos em lei - como em estupros ou aqueles que envolvem riscos médicos. A decisão, ao cabo deveria ser da dona do corpo - uma coisa tão óbvia que chega até a ser meio bizarro estar discutindo isso às portas de 2026. Esperávamos carros voadores nesse ano? Não, temos de brigar com a tal da bancada evangélica, preocupadíssima com os bebês - mas apenas quando eles estão nas barrigas das futuras mamães. Depois disso, que se explodam, né?

E é nesse contexto que entra Belén: Uma História de Injustiça (Belén) - o enviado ao Oscar 2026 pela Argentina, que está disponível na Amazon. Inspirado em eventos reais ocorridos em 2014, o filme de estreia na direção da atriz Dolores Fonzi narra o bizarro episódio ocorrido com a jovem Julieta (Camila Plaate) que, depois de dar entrada no hospital com fortes dores estomacais, é presa preventivamente, acusada de ter, deliberadamente, praticado um aborto. Levada pela polícia, ela aguarda durante dois anos por um julgamento pelo suposto crime de "homicídio agravado por parentesco" - tudo isso acontecendo após uma sequência revoltante em que policiais, como sempre investidos de certa síndrome do pequeno poder, invadem a ala hospitalar em que Julieta está, para lhe colocar algumas em plena maca do hospital. Sim, ela ainda está sangrando, com dor, agredida física e moralmente e está sendo presa. Sem provas, ainda por cima.

 


Após um salto no tempo entra em cena a destemida advogada Soledad Deza (a própria Dolores Fonzi), que promete auxiliar a garota, após descobrir que o caso teria uma série de incongruências - o que envolve a participação de uma defensora pública inescrupulosa, daquelas que prefere tomar decisões carregando uma cruz a tiracolo (e não a Constituição). Julieta está condenada a oito anos de prisão e o desenrolar da trama resultará em uma série de sequências de tribunal, com ótimos diálogos e um clima de tensão geral extremamente bem construído - que faz com que o espectador se conecte solidamente com a história. Em linhas gerais, o que a trama evidencia é que, quanto mais conservadora e provinciana for a cidade ou a região, mais complicado será evoluir em temas como este - e não demora para que a própria Deza passe a ser perseguida e intimidada, após seu nome chegar à imprensa (o que envolve uma participação em um programa sensacionalista e altamente cringe de TV, que tenta humilhá-la de todas as formas).

Nesse sentido e não por acaso, Julieta entra em uma espécie de conflito em relação ao fato de os motivos de sua prisão - que permanecem em sigilo -, chegarem à esfera pública, com movimentos coletivos ganhando força nas ruas e exigindo a anulação da sentença. E mesmo sofrendo uma grande injustiça ela teme represálias - como no caso do receio de que seus pais percam o emprego, ao descobrirem que sua filha teve um aborto. A sensação de certa desorientação, aliás, é ampliada com uma sequência de alucinações envolvendo sangue - como nas cenas do chuveiro (com a água funcionando como uma alegoria para a limpeza moral tão desejada). Sem ter vergonha de defender com clareza seu lado, mas sem soar excessivamente panfletária, Dolores consegue conferir complexidade às suas personagens. Ainda assim o que fica claro é que, mesmo em um cenário de democracia e de avanços sociais, políticos e culturais pontuais, esse é um tema que exige vigilância permanente para que não haja retrocessos. Especialmente frente à governos autoritários, ligados à extrema direita reacionária.

Nota: 8,0 

 

Novidades em Streaming - O Filho de Mil Homens

De: Daniel Rezende. Com Rodrigo Santoro, Miguel Martines, Johnny Massaro e Rebeca Jamir. Drama / Fantasia, Brasil, 2025, 126 minutos.

Quem leu O Filho de Mil Homens, do português Valter Hugo Mãe, já tinha o conhecimento de que se trata de uma obra um tanto poética e lírica, que parte de uma premissa bastante simples - sobre um pescador solitário que nunca conseguiu concretizar o sonho de ser pai -, para uma análise de temas como pertencimento, autoaceitação, família e respeito às diferenças. Em linhas gerais poderia ser meio difícil transportar esse caráter quase onírico e eventualmente existencialista da narrativa do autor para as telas, mas, verdade seja dita, Daniel Rezende (Bingo: O Rei das Manhãs, 2017) conseguiu - e muito. Com uma abordagem delicada, envolta em sutilezas, o diretor converte a obra em uma experiência de fluidez meio ondulante - assim como é o próprio vai e vem do mar -, com tudo ocorrendo sem muita pressa e com uma aposta muito maior em silêncios e em olhares do que em excessos didáticos.

Porque por mais que a narração de Zezé Motta surja, aqui e ali, para conectar certos pontos da história, ela nunca soa invasiva demais ou mesmo desnecessária. No livro de Mãe o protagonista Crisóstomo (Rodrigo Santoro) é apresentado como um sujeito fraturado que, a beira dos 40 anos, vive "pela metade", com seus amores frustrados e uma vida permeada por traumas. O filho desejado se converte numa alegoria bastante concreta - que é representada por um boneco de pano do tamanho de uma criança. Um boneco que é cuidado pelo pescador com esmero, afeto e dedicação. Só que em uma obra tão mágica, quase no limite do realismo fantástico, a criança real não demora a se materializar - como que enviada pela própria natureza (o que é reforçado peças sequências de Crisóstomo colocando uma concha no ouvido ou mesmo deitado na areia luminosa, em uma conversa interna particular).

 


A chegada de Camilo (Miguel Martines), um menino órfão que acaba de perder o seu avô emprestado, transforma a vida do pescador. No cotidiano, estabelecem rapidamente uma relação de pai e filho - com direito a jogos de bola e parceria tanto na hora de comer geleia de jabuticaba, como na hora da pesca. Só que a dupla não está sozinha. Camilo sonha em ter também uma mãe - já que, como descobriremos mais adiante, ele perdeu a própria durante o seu parto. Aliás, sua mãe, Francisca (Juliana Caldas), era uma anã que, por conta de sua condição, sofria todo o tipo de preconceito na comunidade. Menos dos homens, os mais diversos, com quem ela "deitava", pelo visto - o que exaspera um trio de vizinhas enxeridas, que funciona como alívio cômico. Aliás, a discriminação se espalha por toda a parte, atingindo também o jovem gay Antonino (Johnny Massaro), que é forçado a se casar com Isaura (Rebeca Jamir), num arranjo feito pela mãe extremamente religiosa do rapaz, para tentar conter o falatório na região.

Sim, o filme salta de lá para cá e, por vezes, as histórias parecem todas meio desconectadas. Mas, mais adiante fica mais simples de compreender como a obra se converte em um elogio ao conceito atual de família escolhida - e de como podemos encontrar amor em companhia, amizade e afeto de pessoas que, não necessariamente, possuem laços de sangue conosco. Ao cabo, o quarteto central vira uma família improvisada - tida como desajustada pelos cidadãos do vilarejo. Como assim Antonino vai morar com Crisóstomo e Camilo, deixando a sua mãe verdadeira para trás? E, ainda por cima, acompanhado de Isaura? O clima de vigilância é ampliado, quando se toma por base os dogmas religiosos - o que torna ainda mais escancarado o fato de o cidadão de bem médio ter extrema dificuldade em aceitar o diferente. Aquele que não segue um padrão. [SPOILERZINHO] Crisóstomo cresce sozinho, mas alcança o objetivo de formar uma família, ao final. Aliás, as últimas sequências são daquelas de derrubar rios de lágrimas. É difícil sair ileso.

Nota: 8,0 

 

quarta-feira, 19 de novembro de 2025

Pitaquinho Musical - Rosalía (LUX)

Vamos combinar que, assim como ocorreu com o BRAT, em 2024, nesse ano o evento musical mais aguardado, comentado, viralizado foi o LUX, da Rosalía. Mas, preciso ser honesto com vocês: talvez o quarto registro de inéditas da artista espanhola não tenha o mesmo potencial de difusão rede afora, como no caso do disco da Charli XCX, mas, musicalmente, meus amigos, aí é AULAS! Porque, aqui, não temos apenas música pop contemporânea. É multiplicidade de gêneros, de estilos, de ideias, de culturas e até de mundos - físico e espiritual, terreno e divino, concreto e abstrato (numa dualidade que parece estar no conceito). Um pouco ópera ao piano (algo meio Tori Amos hispânica), um tanto de cordas épicas e elevadas. Uma pitada de flamenco, outra de rap japonês, uma dose de uma eletrônica meio mística, que se junta a orquestração da música clássica. Tudo no limite entre o divino e o profano, a fé e a carne. Quase como um ritual onde a música é muito mais trajetória do que chegada.

 


Sim, honestamente é até difícil resumir, que não seja no modo "apenas ouça pra entender". Talvez um bom começo seja pelo single Reliquia, uma canção fragmentada, de geografia espalhada, que soa espiritual e sacra inicialmente, para mais adiante emergir eletronicamente fria, como em alguns dos melhores momentos de MOTOMAMI (2022). Isso sem falar a letra sobre a formação da personalidade ampla e de como, ao cabo, somos formados pela nossa bagagem (Somos golfinhos pulando / Pra dentro e pra fora / Do aro escarlate / E brilhante do tempo). Mas isso é uma canção. Um ato. Há todo um conjunto. Cantado em treze línguas distintas, com participação de Orquestra Sinfônica de Londres - o que torna tudo maior, mais revolucionário, mais único. E é importante dizer que essa congregação de referências nunca torna o registro hermético. O que pode ser comprovado em momentos acessíveis, como no caso da divertidíssima La Perla (talvez a música do ano).

Nota: 9,5 

terça-feira, 18 de novembro de 2025

Pitaquinho Musical - Joy Crookes (Junipero)

Acho que o disco que mais me impactou na lista daqueles que ninguém ouviu em 2025 foi esse Junipero da Joy Crookes. Sabe aquele álbum que é exatamente aquilo que você precisa em certo momento? Que conecta imediatamente com, sei lá, a alma? Foi o que me ocorreu quando ouvi esse desfile de canções sofisticadas, que fundem R&B, jazz e pop adulto contemporâneo, com um pezinho no trip hop. Tudo empacotado pela voz aconchegante da artista, que parece ficar perfeita não apenas como trilha sonora noturna, daquelas que percorre os bares mais interessantes, mas também para o dia levemente ensolarado, talvez à beira de uma piscina, com um drink à mão. Britânica de Londres, mas filha de mãe bengali e de pai irlandês, a artista parece incorporar toda uma mescla de influências que vão de Marvin Gaye e Macy Gray, até chegar a Amy Winehouse e Lily Allen.

 


O resultado são verdadeiras obras-primas da música moderna, como a irresistível e acetinada Pass the Salt, feita em parceria com Vince Staples. Já a deliciosa Carmen, interpola Bennie & The Jets, do Elton John, na construção de uma melodia poderosa ao piano, com efeitos levemente oníricos. Com tudo culminando em um refrão pegajoso, que combina perfeitamente com a letra sobre os cada vez mais altos - e muitas vezes excludentes, especialmente em relação às mulheres negras - padrões de beleza na sociedade (Morena europeia com meu olhar londrino / Eu fico com inveja desse tipo baunilha / Você é clássica como Coco Chanel / É errado eu querer isso pra mim?). Mas, sinceramente, pessoal, aqui é até difícil falar de músicas em específico, porque tudo é perfeito demais. First Last Dance, Somebody to You, Mathamatics, House With a Pool, Mother, enfim, é até difícil selecionar aquela que se destaca. Tudo é destaque, afinal. Só dê o play. De nada.

Nota: 10 

segunda-feira, 17 de novembro de 2025

Cinema - O Agente Secreto

De: Kleber Mendonça Filho. Com Wagner Moura, Tânia Maria, Carlos Francisco e Maria Fernanda Cândido. Drama / Policial, Brasil / França / Alemanha / Holanda, 2025, 159 minutos.

Muito provavelmente poucos filmes serão tão didáticos em evidenciar de que formas eram perseguidas pessoas que, não necessariamente, estavam conectadas ao aparato político em meio à ditadura militar, como no no ótimo O Agente Secreto - o enviado do Brasil ao Oscar, que está em cartaz no País. Professores, intelectuais, pesquisadores, jornalistas, artistas e muitos outros precisavam entrar em rota de fuga pelos motivos mais aleatórios - e que nem sempre estavam diretamente ligados ao confronto direto com os milicos ou às frentes de resistência ao regime. No caso de Marcelo (Wagner Moura), o protagonista da obra de Kleber Mendonça Filho (Aquarius, 2016 e Bacurau, 2019), ele é um professor universitário especializado em tecnologia que meio que precisa sumir do mapa - e da faculdade em que ele trabalha em São Paulo -, depois que um industriário mal intencionado (e que detém o dinheiro) se sente incomodado com aquele "comunista cabeludo", que ousou patentear uma pesquisa a respeito de baterias de lítio.

Aliás, a construção dessa tensão ambiental pode ser percebida já nas primeiras sequências da produção, quando Marcelo faz uma parada em um posto de gasolina nos arredores de Recife - um local um tanto ermo, ladeado por vastas lavouras de capim elefante -, sendo surpreendido pelo fato de, ali, no pátio do estabelecimento, jazer um corpo. "Está desde domingo aí e a polícia ainda não veio ver", resume o frentista, atribuindo a demora aos festejos de Carnaval. Quando uma patrulha da Polícia Rodoviária Federal finalmente aparece, não é para averiguar o cadáver. E sim o fusca amarelo dirigido por Marcelo. "Tu não carrega tóxico aí dentro, não, né?", inquire o agente da lei, que, investido da síndrome do pequeno poder, atua no sentido de intimidar o cidadão nesse modelo de minúsculas opressões. Marcelo claramente está desconfiado. Talvez até com medo. Os motivos compreenderemos mais tarde.

 


Em linhas gerais esse é mais um filme de fluidez lenta, que aposta nas sutilezas como forma de fortalecer os seus pontos. Não há aquele caso ostensivo de militares de botas, balas de borracha e cassetetes em punho, dispostos a levar sujeitos tidos como subversivos para cativeiros onde serão sistematicamente torturados. Aqui, Marcelo chega placidamente a uma espécie de comuna na capital pernambucana, na ideia de fugir da vigilância constante do tal Ghirotti (Luciano Chirolli), o odioso industriário da Eletrobrás que chega à universidade como convidado, mas que sai cagando regra de uma forma quase caricata, abusando de comentários preconceituosos, racistas e xenofóbicos. Recebido pela carismática Dona Sebastiana (a ótima Tânia Mara), Marcelo tentará reiniciar a vida naquele local quase idílico que abriga refugiados (na falta de outra palavra), arranjando um emprego improvisado em um órgão público meio decadente, enquanto tenta antecipar ao máximo a obtenção de um passaporte falso para ele, e para seu pequeno filho. O que pode ocorrer com um contato mais direto com figuras da resistência que circulam à sombra, como Elza (Maria Fernanda Cândido) e Arlindo (Tomás Aquino).

Nesses dias de estada no Recife, o protagonista estabelece um vínculo bastante fraterno com o seu sogro Alexandre (Carlos Francisco), pai da falecida Fátima (Alice Carvalho), que teria morrido de uma pneumonia mal curada (ainda que nunca seja possível ter certeza disso, já que descobriremos mais adiante que ela também foi alvo de perseguição da corja de Ghirotti). Em meio àqueles dias turbulentos do ano de 1977, a população recifense será impactada por um excêntrico episódio, que ocupará as manchetes dos jornais de forma recorrente: uma perna humana é encontrada no estômago de um tubarão que encalha (e morre) na orla. Ocorrência que, evidentemente, terá a ver com o misterioso sumiço de corpos, alvos de execução por milicianos ligados ao Estado - destino que poderá ser o do próprio Marcelo, se ele não conseguir empreender seu projeto de fuga do País. Com tudo piorando quando Ghirotti contrata dois capangas para persegui-lo.

 

 

Para além do roteiro em si, recheado de diálogos inteligentes e até bem humorados (principalmente aqueles que envolvem a Dona Sebastiana) - mesmo em um cenário de tensão -, o filme ainda merece elogios pela qualidade técnica, com um desenho de produção caprichoso, que recria absolutamente todo o cenário da época à perfeição (o que vai desde a arquitetura, passando pelos veículos, até chegar a objetos de decoração e figurinos). Há também um clima geral meio que de letargia do período. Uma espécie de nostalgia festiva de um Carnaval como alegoria da esperança, em um contexto político, social e econômico perto do colapso - e não deixa de ser interessante ver como o diretor une todos esses pontos de maneira quase lúdica, com instantes de devaneio que vão no limite do realismo fantástico (há uma cena com a "perna" que consegue ser assombrosa e engraçada em igual medida). O que é reforçado pela onipresença do cinema, com seus cartazes e reações do público à clássicos do terror como A Profecia (1977) ou Tubarão (1975), numa rima inevitável. A esperança e a dor se encontram em tempos de pirraça. Como numa música do Chico, tão trágica quanto envolvente.

Nota: 9,0

Novidades em Streaming - Inverno em Sokcho (Hiver a Sokcho)

De: Koya Kamura. Com Bella Kim, Roschdy Zem, Ryu Tae-Ho e Park Mi-Hyun. Drama, França, 2024, 104 minutos.

Vamos combinar que a trama do estrangeiro que visita um outro País e se encanta pela sua cultura, gastronomia, arquitetura, história e gente - em muitos casos até estabelecendo laços sólidos no local -, é meio que um lugar comum. Um clichê. Ainda mais em obras literárias ou filmes românticos. Afinal, firmar raízes em outra nação - o que abre possibilidades para novas amizades e amores -, talvez seja uma das grandes alegorias para os recomeços. Onde o passado fica para trás em prol de um futuro muitas vezes idealizado (mas que na tela sempre parece perfeito). Só que nem sempre a vida é tão óbvia como muitas vezes é no cinema - por mais paradoxal que isso seja -, e é por isso que é tão interessante o arco narrativo visto no tocante Inverno em Sokcho (Hiver a Sokcho), produção inspirada em livro da autora Elisa Shua Dusapin, que estreou recentemente na plataforma Mubi.

Aliás, o filme já começa com uma série de paisagens geladas e enevoadas que, somadas à trilha de notas tristes, já identifica aquele espaço como um local isolado, dotado de uma estética em que a melancolia geral prevalece. É nesse contexto - o da pequena Sokcho do título, uma cidadezinha pesqueira da Coreia do Sul, quase no limite coa vizinha Coreia do Norte -, que vive a jovem Sooha (Bela Kim), uma funcionária de uma pousada que tem a sua rotina alterada pela chegada do misterioso escritor Yan Kerrand (Roschdy Zem), que ocupará um dos quartos justamente nesse meio de temporada, em que a quantidade de turistas do lugar reduz drasticamente. Yan parece estar ali por certo interesse que tem a ver com seu trabalho. Talvez esteja buscando inspiração para um novo romance. "Gosto de ir a lugares movimentados, mas quando estão vazios", comenta ele em uma das caminhadas ao lado de Sooha, que funcionará como uma guia improvisada do local.

 


A protagonista inicialmente estranha certos comportamentos do estrangeiro. Ele não parece tão encantado assim com a culinária local, como deveria ser o caso - em certa altura dá preferência para um pacote de Cheetos do que para uma saborosa sopa de rabanete branco. Pior, ele parece sempre disposto a recusar qualquer tentativa de inclusão nos hábitos do pequeno povoado - o que também tem a ver com as refeições nunca aceitas (ele prefere ir a um restaurante genérico). Sooha considera tudo um tanto enigmático, ainda que nunca enfrente uma barreira linguística, já que tem o francês como segunda língua. Seu pai, que ela nunca chegou a conhecer, era de Paris - e sua mãe (Park Mi-Hyun) não parece muito disposta a contar a história real a respeito do sujeito. E não deixa de ser curioso perceber como, quanto mais Yan parece distante e apenas conectado com seu trabalho (sempre recluso em seu cubículo), mais Sooha parecerá encantada. Talvez até apaixonada. Por um homem que, vejam bem, tem idade para ser seu pai.

Aproveitando a narrativa para uma série de outros comentários sociais - os mais aprofundados envolvendo o culto à imagem e à necessidade de, nos tempos atuais, as mulheres recorrerem a procedimentos estéticos que quase nunca precisam -, a obra de Koya Komura ainda utiliza uma série de animações tão oníricas quanto transcendentais, como forma de reforçar as suas ideias. Nesse sentido não deixa de ser comovente o instante em que o sexo é "desenhado" como uma profusão carnal de traço sofisticado, capaz de ampliar a sensação de busca por algo que talvez nunca seja alcançado (por mais bonito e interessante que seja o namorado de Sooha, um jovem modelo). Sim, há uma fantasia ali que talvez seja quase óbvia sobre a idealização de um amor que jamais se concretiza, o que não reduz a surpresa do ato final quando Yan é franco de uma forma quase dolorosa demais. Isso não é um filme, afinal. Quer dizer, até é. Mas não do jeito que estamos acostumados.

Nota: 8,0 

 

segunda-feira, 10 de novembro de 2025

Novidades em Streaming - A Melhor Mãe do Mundo

De: Anna Muylaert. Com Shirley Cruz, Seu Jorge, Luedji Luna, Rihanna Barbosa, Benin Daihler e Lourenço Mutarelli. Drama, Brasil, 2025, 105 minutos.

"Nós não vamos dormir aqui, né? Não, nós vamos acampar!" Sinceramente, não é difícil entender os motivos de o público associar o comportamento de Gal (Shirley Cruz), a protagonista de A Melhor Mãe do Mundo, com o de Guido, o trágico personagem central de A Vida é Bela (1998), que tenta esconder os horrores da guerra do filho, ao tentar converter o campo de concentração em um espaço de "aventuras". Situações diferentes, mas tristezas semelhantes em um mundo que vira as costas para as minorias - sejam os judeus vítimas dos nazistas, sejam as mulheres pretas na sociedade como um todo. Tendo de matar um leão por dia para oferecer o mínimo - e não deixa de ser comovente o instante em que Gal coloca os filhos para dormir ao ar livre, na carroça que ela utiliza como catadora de papelão, enquanto recusa uma série de ligações do marido abusador Leandro (Seu Jorge), de quem ela está fugindo.

Quando contratou Shirley para ser a sua protagonista, a diretora Anna Muylaert - do ótimo Que Horas Ela Volta? (2015) -, afirmou em entrevista ao Globo, que "ela tem uma coisa 'brava' de que gosto muito". Pode ser que esteja no olhar, ou nos movimentos do corpo, mas o caso é que a atriz é extremamente convincente em seu papel. Não apenas pelo fato de a maioria das catadoras serem negras, mas por Shirley já ter vivido na pele um abuso na vida real. "Ele passou 24 horas me estuprando e agredindo. Tinha um teste para uma novela na TV Globo, e me fez ligar para desmarcar", explicou na mesma entrevista. Nesse sentido, o resultado que se vê em tela parece muito próximo da verdade. Algo quase documental - do início em uma delegacia, encontrando pouco apoio após a abertura de um BO, ao final, quase esperançoso, em um ambiente de apoio e sororidade.

 


No meio do caminho, após a fuga de casa com as crianças à tiracolo - no caso os pequenos Rihanna (Rihanna Barbosa) e Benin (Benin Daihler) -, encontros com um sem fim de pessoas, bem ou mal intencionadas, em uma jornada que foi apelidada em alguns veículos com a alcunha de road movie de carroça. O ponto final da jornada de Gal será a casa da prima, Bia (Luedji Luna, que se já não bastasse ser uma de nossas melhores cantoras da atualidade, também entrega muito na atuação), na região de Itaquera, onde deverá receber abrigo provisório. Em um dos encontros, Gal conhece Munda (Rejane Faria), uma vendedora de bandeiras de time de futebol que é cadeirante e que lhe explica de forma quase excessivamente didática, como funciona a ocupação onde ela reside.

Poética em alguma medida, a produção que chega à Netflix se ocupa em entregar momentos meio Projeto Flórida (2017) futebolístico, já que o sonho das crianças, que estão em um local muito próximo ao campo do Corinthians, é ver um jogo do Timão. Em outro instante, Gal recebe a ajuda de um certo Reginaldo (Lourenço Mutarelli), que parece disposto à auxiliá-la (ao menos até o instante em que ele revela sua verdadeira faceta). Discutindo nas entrelinhas um sem fim de temas políticos e sociais, com diálogos divertidos e curiosos (especialmente aqueles envolvendo as crianças), o filme ainda reafirma as dificuldades que envolvem se livrar de um marido abusador. Ainda mais quando este é o provedor da família - e, nesse sentido, não é por acaso que o churrasco na casa de Bia, é pago por Leandro. Que tenta uma reaproximação torta, com a conivência de todos ali. Ao final resta o banho que lava a alma de tudo. E que pode ter um significado para além do simples asseio e que versa sobre a complexidade de ser uma mãe periférica.

Nota: 8,0