sexta-feira, 19 de dezembro de 2025

30 Grandes Filmes de 2025

Tenho a impressão - e pode ser apenas impressão mesmo - de que, diferentemente do que ocorreu com a música, o ano do cinema como um todo, não foi tão bom assim. Ok, vocês poderão argumentar lembrando da grande fase que vive o Brasil nesse campo, com a vitória no Oscar e boas perspectivas para a temporada de premiações que se aproxima. Mas ainda assim parece pouco. Filmes em que havia grande expectativa se tornaram experiências frustrantes (aliás, se me animar ainda faço uma relação com as grandes decepções de 2025), e obras consideradas boas foram apenas isso mesmo, boas. Claro, ainda há toda uma quantidade de produções que deverão estar nas premiações do ano que vem - especialmente o Oscar -, casos de Foi Apenas Um Acidente, Valor Sentimental e No Other Choice, muitos deles chegando nos cinemas em dezembro. Mas, ainda assim, quando olhamos para o Termômetro ou para a bolsa de apostas e vemos que Pecadores e Uma Batalha Após a Outra seguem sendo os grandes da temporada - e que obras medianas como Sonhos de Trem, Bugônia ou Casa de Dinamite aparecem como possibilidades até mesmo para Melhor Filme, temos a impressão de que a nossa tese se confirma. 

 


 

Obviamente que o Oscar passado e os filmes que chegaram por aqui no primeiro semestre do ano, seja na telona ou no streaming, ajudam a alavancar e até mesmo diversificar o nosso levantamento. Que, aliás, vocês já sabem não costuma se guiar apenas por Hollywood. Na real nesses mais de 10 anos de Picanha Cultural, sempre acreditei que a nossa lista pudesse ser uma forma de falar mais de variedade do que de cinema estadunidense. De obras europeias, asiáticas e sulamericanas, algumas que só chegaram neste ano no streaming e que faço questão de destacar. Como um pequeno recorte daquilo que foi possível conferir nessa vida sempre tão corrida. Acho que nesse ano também assisti a menos filmes do que gostaria. Teve isso também - o que pode ser percebido pelo número de postagens menor, a cada semana, aqui na página. De qualquer forma, fazemos o que está ao alcance. E, verdade seja dita, sempre nos orgulhamos do resultado. Esse site contabiliza cerca de 30 mil visitantes por mês. Um ato meio que de resistência da escrita em meio a um cenário de vídeos cada vez mais curtos e de paciência mínima da audiência (e talvez eu que seja só um tiozão nesse rolê). Mas seguimos. Eis os nossos 30 Grandes Filmes de 2025.

 

 

 

30) Amores Materialistas (Materialists): Parte do magnetismo do cinema de Celine Song está na forma como a diretora subverte pequenas lógicas. Em Amores Materialistas ela revisita um tema clássico: casamento por amor ou por dinheiro? Dakota Johnson é Lucy, casamenteira profissional em Nova York, que organiza encontros entre solteiros ricos e bem resolvidos. Durante a festa de uma cliente, conhece Harry, um Pedro Pascal charmoso, elegante e bem-sucedido, que parece interessado justamente nela, e não nas suas clientes. Mas nem tudo é simples: John, garçom e ator em meio período, surge como contraponto, representando a luta contra dívidas e a frustração de amores que não se resolvem financeiramente. Entre flashbacks e encontros luxuosos, Lucy observa o mundo com uma honestidade quase cruel, refletindo sobre como relacionamentos envolvem poder, dinheiro, vulnerabilidade e frustrações. Song constrói uma comédia romântica que foge da previsibilidade: não há começo, meio e fim óbvios. A narrativa flui entre diálogos práticos e niilistas, observações sobre traições, ciúmes e desilusões, sempre envolta em cenários sofisticados e prazerosos de assistir. A trilha sonora - com The Ronettes, Cat Power, Harry Nilsson e Françoise Hardy - completa o charme, tornando a experiência leve, divertida e reflexiva. Leia a resenha completa.

 

 


29) Vermiglio: A Noiva da Montanha (Vermiglio): Guerras, fanatismo, patriarcado e autoritarismo. É nessa atmosfera opressiva da Itália dos anos 40 que se passa Vermiglio: A Noiva da Montanha, da diretora Maura Delpero. A rotina cotidiana de ordenhar vacas, buscar lenha e água é interrompida pela chegada de Pietro, um soldado taciturno em fuga da guerra. Seu ato heroico de salvar Attilio desperta admiração e vergonha entre os moradores, e também o interesse de Lucia, que se vê dividida entre o amor e os limites impostos pela comunidade. O filme segue um ritmo contemplativo, com silêncios extensos, planos longos e uma neve que oprime, enquanto o espectador monta o quebra-cabeças do que se passa. Entre cenas de delicadeza e brutalidade, Delpero constrói um retrato sutil de hierarquias, misoginia e expectativas sufocantes para mulheres e meninas. Ada, por exemplo, sofre por não poder expressar seu amor pela amiga Virginia, enquanto sua educação termina abruptamente apesar do talento e esforço. Mesmo com tragédias, nascimentos e limitações impostas pela rigidez patriarcal, pequenas réstias de esperança surgem: um olhar, uma conversa sobre ser ouvido, um gesto de afeto. Triste, gélido e contemplativo, Vermiglio não é apenas um filme sobre guerra, mas sobre os silêncios, regras e desejos contidos nas entrelinhas da vida em comunidade. Leia a resenha completa.

 

 


 

28) Você é o Universo (Ти – Космос): Será ficção científica, alegoria existencialista ou só um lembrete de como a solidão na era digital pode ser devastadora? Você é o Universo, do ucraniano Pawlo Ostrikow, mistura catástrofe espacial com reflexão sobre isolamento e conexões humanas, e está disponível na Reserva Imovision. Andriy é um transportador de resíduos nucleares que cruza o espaço em missões de dois anos rumo a Calisto, satélite de Júpiter. Quando a Terra explode em circunstâncias meio confusas, ele se vê condenado a vagar sozinho, entretendo-se com discos de vinil, comida e conversas com o robô Maxim, que mistura o humor estranho de tiozão com inteligência artificial. O isolamento parece absoluto até que surge Catherine, que alega estar numa estação espacial perto de Saturno. As mensagens levam horas para chegar, mas a comunicação cria uma relação delicada e poética, incluindo tentativas de Andriy de recriar o rosto da amiga com massa de modelar. A narrativa espacial funciona como metáfora: guerras, pandemias, crises e isolamento refletem o que a humanidade enfrenta na Terra, enquanto a busca por conexão se mostra vital. Entre humor, absurdos e melancolia, Você é o Universo emociona ao lembrar que, mesmo em distâncias impossíveis, laços humanos e empatia permanecem o que nos define. Leia a resenha completa.

 

 


27) Dahomey: Dirigido por Mati Diop, o documentário acompanha a devolução de obras de arte saqueadas ao Benin, refletindo sobre o impacto cultural, histórico e simbólico desse gesto. Em linhas gerais o filme foge do caminho tradicional de especialistas comentando o tema e propõe uma experiência sensorial e poética, dando voz aos objetos como se fossem testemunhas de um passado marcado pela violência colonial, pelo apagamento cultural e pelo desenraizamento de um povo. A narrativa segue o trajeto dos tesouros - cuidadosamente embalados, transportados por avião e monitorados a cada passo - até o retorno ao país de origem, mesclando imagens de museus, caixotes e procedimentos técnicos com uma narração em off que ecoa como lamento e memória viva. Entre rituais, danças e debates públicos sobre ancestralidade, reparação e autodeterminação, o filme provoca uma reflexão sobre o peso da colonização, o direito à memória e o papel da arte na resistência cultural. Em pouco mais de uma hora, Dahomey consegue transformar um gesto político e simbólico em reflexão profunda, lembrando que a devolução de objetos roubados não é apenas histórica: é uma forma de reconhecer vidas, histórias e direitos que foram interrompidos, resgatando fragmentos de um passado que se recusa a ser esquecido. Leia a resenha completa.

 

 


 

26) Meu Bolo Favorito (Keyk-e Mahbub-e Man): Meu Bolo Favorito é uma obra iraniana delicada e subversiva que aborda solidão na terceira idade, invisibilidade dos idosos e o desejo de amor em um contexto moralista e restritivo. Mahin, viúva há 30 anos, enfrenta o silêncio da casa grande e vazia após seus filhos partirem para a Europa, lidando com a saudade e as lembranças de uma vida marcada por normas rígidas, perseguições e restrições. Dirigido com sensibilidade por Behtash Sanaeeha e Maryam Moghadam, o filme combina humor e poesia para mostrar Mahin decidida a buscar companhia e afeto novamente. Em um restaurante frequentado por veteranos, ela conhece o taxista Faramarz, outro solitário em busca de conexão. A conversa fluirá no seu próprio tempo - econômica, jamais invasiva. A forma será educada, convidativa, como poucas vezes se vê nos dias de hoje, sempre tão apressados, tão urgentes. Toda a maldade que percorre as ruas dessa Teerã tão conservadora quanto patriarcal ficará do lado de fora. Entre jardinagem, música, dança e conversas suaves, surge uma relação que resiste às barreiras do conservadorismo iraniano. Premiado pela Federação dos Críticos do Festival de Berlim, o longa é delicado, comovente e nos lembra que, mesmo cercados de regras e limitações, a vida e o amor encontram espaço para florescer. Leia a resenha completa.

 

 


25) O Reformatório Nickel (Nickel Boys): O Reformatório Nickel mergulha no racismo estrutural dos Estados Unidos dos anos 60 ao acompanhar Elwood Curtis, um jovem negro enviado injustamente a um reformatório. Ao lado do carismático Turner, ele enfrenta violência física e psicológica em uma instituição que reflete o desprezo e a segregação racial da época. Cada espancamento, cada humilhação, cada olhar discriminatório é uma lembrança do sistema que o oprime. Dirigido por RaMell Ross, o filme usa uma câmera subjetiva que coloca o espectador dentro da experiência de Elwood e Turner, tornando a violência e a injustiça ainda mais tangíveis. Entre momentos alegóricos e simbólicos - discursos de Martin Luther King na televisão, filmes de Sidney Poitier e objetos cotidianos que parecem instrumentos de tortura - a obra alterna suavidade e brutalidade, esperança e desespero, lembrando-nos que, mesmo em um ambiente hostil, a humanidade persiste. A relação de Elwood com sua avó amorosa, suas reflexões sobre identidade e cor da pele e os laços que cria com Turner e outros jovens revelam resiliência diante da injustiça. Comovente, inquietante e reflexivo, O Reformatório Nickel é daqueles projetos que permanecem na memória depois que os créditos sobem, lembrando que a luta por dignidade e igualdade ainda ecoa hoje. Leia a resenha completa.

 

 


24) O Bom Professor (Pas de Vagues): Quem assistiu ao ótimo dinamarquês A Caça, de Thomas Vinterberg, lembra do sentimento de revolta diante de uma acusação de crime sexual aparentemente infundada. Em O Bom Professor, a situação é semelhante: Julien, professor do primeiro grau e homossexual, vê sua reputação desmoronar após uma brincadeira em sala de aula ser interpretada como assédio. A diferença é que, além de lidar com a acusação, ele enfrenta o preconceito e a homofobia, que amplificam a tensão. Tudo começa com um elogio feito a uma aluna introspectiva, seu nome é Leslie, que apresenta uma carta à diretoria alegando comportamentos inapropriados do professor. Situações corriqueiras e comentários ambíguos são transformados em provas de uma suposta culpa, enquanto a escola, os colegas e a própria comunidade contribuem para criar um clima de julgamento coletivo. Quando um vídeo íntimo de Julien com seu namorado é divulgado, a pressão aumenta. Inspirado em fatos reais, o filme de Teddy Lussi-Modeste é um retrato cruel e necessário do impacto da homofobia e do linchamento moral sobre a vida de educadores, mostrando que a defesa da dignidade profissional ainda é um desafio urgente. Leia a resenha completa.

 

 


 

23) Flow (Straume): Um gatinho em fuga, uma enchente inesperada e uma floresta que mais parece saída de um jogo de videogame: assim começa Flow, animação letã de Gints Zilbalodis, que venceu o Oscar e o Globo de Ouro em sua categoria, neste ano. Sem diálogos, mas repleta de simbolismos, a obra explora a importância da coletividade, do respeito às diferenças e o impacto do homem sobre o meio ambiente - tudo através da jornada do pequeno protagonista em busca de sobrevivência. Ao longo da narrativa, o gato cruza com outros animais - um labrador, uma capivara, um lêmure e um pássaro gigante, todos de personalidades distintas - e, juntos, enfrentam uma gigantesca inundação, aprendendo que a união é essencial diante do caos. Minimalista, contemplativa e visualmente impressionante, a animação utiliza recursos modestos de forma magistral - o total gasto foi de US$ 3,7 milhões, usando um software livre (a ferramenta Blender) -, lembrando que até os menores gestos de solidariedade podem fazer diferença em um mundo à beira do colapso. O gosto pode ser meio amargo ao final, mas quando pensamos sobre futuro, a obra funciona, inclusive, como um alerta. Leia a resenha completa.

 

 


22) Em Rumo a Uma Terra Desconhecida (To a Land Unknown):De certa forma é uma espécie de destino dos palestinos não terminar onde começaram, mas em algum lugar inesperado e distante.” A frase dita pelo já falecido intelectual Edward Said e que abre Em Rumo a Uma Terra Desconhecida, de Mahdi Fleifel, resume à perfeição a jornada de refugiados que vivem em deslocamento constante, sem nunca encontrar pertencimento. No centro da narrativa, os primos Chatila e Reda tentam sobreviver em uma Atenas urbana e agitada, entre pequenos golpes e desafios cotidianos, sonhando com um futuro na Alemanha, onde aguardam familiares. E, quem sabe, um pouco de estabilidade. O filme acompanha também a tentativa de ajudar o adolescente Malik, fugindo da Faixa de Gaza, numa travessia marcada por planos arriscados, contrabandistas e improvisos desesperados. Fleifel evita o maniqueísmo: seus protagonistas não são mártires nem vilões, mas seres humanos complexos, com medos, sonhos e contradições. Entre furtos, conflitos e decisões éticas complicadas, a obra expõe a violência estrutural que os cerca, enquanto cada pequeno instante de luz só reforça o peso do desespero. Trágico, cru e profundamente comovente, é um filme que permanece na memória muito depois dos créditos finais. Leia a resenha completa.

 

 


21) Diamante Bruto (Diamant Brut): Eu já me decidi. Vou ficar famosa e vou ter dinheiro”. Essa frase, dita por Liane, protagonista de Diamante Bruto, resume o núcleo da estreia de Agathe Riedinger. A jovem influencer de 19 anos encara a vida com uma urgência quase desesperada: busca validação, atenção e, acima de tudo, reconhecimento, mesmo que seja às custas do próprio corpo. Consultas sobre próteses de silicone, performances no TikTok e bicos feitos com produtos roubados são parte de um jogo de sobrevivência emocional e social que parece inevitável no universo digital em que ela está inserida. O filme acompanha Liane enquanto ela sonha com o estrelato em um reality show televisivo excêntrico, que mistura exposição extrema e exigências duvidosas. Sem nunca julgar a nossa anti-heroína, a diretora constrói uma personagem complexa, marcada pelo desejo de mudar sua vida e pela luta para ocupar espaços que parecem inalcançáveis. Em um mundo que explora corpos e, pior do que isso, corpos jovens, Liane é uma figura inegavelmente persistente, que aprende a jogar com o que o sistema oferece. E, no frame final dessa experiência onírica, nebulosa e naturalista, é impossível não torcer por ela - não por glamour, mas por força. E sobrevivência. Leia a resenha completa.

 

 


20) Memórias de Um Caracol (Memoirs of a Snail): Em tempos de consumo acelerado e inteligência artificial, um stop motion como Memórias de um Caracol soa ainda mais relevante. Indicado ao Oscar de Animação, o filme de Adam Elliot impressiona desde os primeiros minutos pelo rigor visual - mesmo quando se debruça sobre cenários feitos de entulho, feios e melancólicos por natureza. A técnica apurada serve a uma narrativa simples e profundamente trágica sobre dois irmãos gêmeos marcados pela perda precoce dos pais e por uma vida atravessada pela solidão. Apesar da forma, não há nada de infantil aqui. Classificado para adultos, o filme aborda luto, fanatismo religioso, sexualidade, fetiches e doenças com franqueza desconcertante. A história é narrada por Grace, a partir da morte de Pinky, uma ex-dançarina de bordel excêntrica que se torna sua amiga improvável. O estranho potatoes dito por Pinky no leito de morte funciona apenas como gatilho para um retorno ao passado. Nesse percurso, conhecemos a juventude difícil de Grace, alvo de bullying por conta de uma cicatriz no rosto, e a relação afetuosa com o irmão, que acaba separado dela e entregue a uma família de fanáticos religiosos. Elliot constrói uma sucessão de situações tragicômicas para compor um retrato estranho, soturno e, ainda assim, profundamente humano. Leia a resenha completa.

 

 


 

19) April (Ap'rili): Vencedor do Prêmio do Júri em Veneza, April passa longe de qualquer cartilha narrativa mais óbvia sobre seu tema. Não há tribunais, discursos edificantes ou explosões explícitas de intolerância. Para a diretora Dea Kulumbegashvili, o interesse está menos nas situações concretas e mais nas sensações - em um cinema de atmosfera, quase abstrato, que aposta no desconforto e no não dito. Não à toa, o filme se abre com a imagem de uma figura grotesca, quase monstruosa, movendo-se lentamente na escuridão, enquanto risadas e gritos infantis ecoam ao fundo. Uma alegoria que retorna sempre que a protagonista parece confrontar a si mesma. Nina leva uma vida marcada pela solidão, pela recusa de vínculos e por encontros sexuais fortuitos, atravessados por violência e risco. A personagem não é reduzida a uma caricatura: transita entre a nobreza e a inconsequência de seus atos, enquanto traumas do passado ressurgem para lembrá-la de uma monstruosidade latente que também a habita. Kulumbegashvili alterna longos planos de chuva, estradas lamacentas e dias cinzentos com campos floridos da primavera, construindo uma experiência rude e meditativa, de ritmo lento e magnetismo estranho. Um filme que vale justamente por se recusar ao óbvio - qualidade cada vez mais rara em tempos de massificação. Leia a resenha completa.

 

 


 

18) Terra Silenciosa (Cicha Ziemia): Logo na primeira cena de Terra Silenciosa pequenos ruídos se impõem: uma persiana emperrada, um zumbido incômodo, um ventilador quebrado. Nada funciona direito naquele refúgio idílico onde o casal polonês Anna e Adam passa férias em uma ilha italiana. O sol brilha, a paisagem é paradisíaca, mas há um desconforto latente, um ruído moral prestes a emergir - marca dessa ótima estreia de Aga Woszczynska, que chegou nesse ano à Reserva Imovision (e por isso enfiei na lista). A rotina é atravessada pela presença de Rahim, jovem imigrante árabe encarregado de consertar a piscina. Sua figura, suada e "fora do lugar", gera um mal-estar silencioso, sobretudo em Adam. O incômodo cresce até o momento em que Rahim sofre um acidente fatal diante do casal, que pouco faz para socorrê-lo. Para a polícia, trata-se de uma tragédia banal; para os turistas, tudo se dilui em depoimentos ambíguos e na conveniência do privilégio. É nesse silêncio que o filme encontra sua força, apostando em alegorias sobre xenofobia, desigualdade e responsabilidade moral. Ninguém parece disposto a culpar Anna e Adam, mas como seguir adiante sabendo que uma morte talvez pudesse ter sido evitada? O desfecho simbólico coroa uma obra que parte do íntimo para examinar estruturas maiores, com precisão e inquietação. Leia a resenha completa.

 

 


17) Oeste Outra Vez: Existe uma cena discretamente melancólica em Oeste Outra Vez que sintetiza bem as inquietações do filme: dois capangas do sertão goiano tentam conversar antes de dormir. Um deles admite estar meio pra baixo. O outro se dispõe a ouvir. Após alguns segundos de silêncio constrangedor, o primeiro confessa não conseguir pensar em assunto algum. A sequência, que poderia soar boba, funciona como alegoria direta de homens ainda jovens, incapazes de se comunicar - a não ser pela violência - em tempos cada vez mais niilistas. A aspereza daquele espaço ermo remete ao faroeste clássico, mas aqui não há conquista nem glória. O cenário sujo, arenoso e sem cor parece indicar um tempo morto, habitado por sujeitos sem horizonte. São homens pequenos não por circunstância física, mas por absoluta incapacidade emocional: não sabem nomear o que sentem, tampouco elaborar frustrações, especialmente as amorosas. Aqui, até a violência falha. Tiros erram o alvo, emboscadas são mal armadas e vinganças nunca se concretizam. Diferente dos caubóis clássicos, esses homens sequer são bons naquilo que acreditam dominar. Triste e esmaecido, o filme culmina em um desfecho tão errático quanto as decisões de seus personagens, dançando no vazio diante do imponderável. Leia a resenha completa.

 

 


16) Jurado N°2 (Juror #2): Pode ser apenas impressão, mas penso que se Jurado Nº 2 tivesse sido lançado nos anos 90, seria figurinha fácil no Oscar. Com o DNA dos dramas judiciais daquela década, o filme é daqueles que nos deixam absolutamente vidrados, especialmente pelo dilema moral que conduz a narrativa e pelas reflexões que suscita sobre os limites dos sistemas jurídicos e o peso dos preconceitos. A trama reconstrói a noite em que Kendall Carter morreu, após brigar com o namorado James Sythe, principal suspeito do crime. Imagens gravadas no bar mostram a discussão, a saída dos dois para a rua e Kendall caminhando sozinha pela estrada, sob chuva torrencial. Para a promotora local o caso é claro; ao defensor público resta tentar expor as lacunas do processo. A tensão aumenta quando descobrimos que o jornalista Justin Kemp esteve no local naquela noite. Ex-alcoólatra em recuperação, ele acredita ter atropelado um cervo na estrada escura — mas as “coincidências” logo se acumulam, ainda mais quando Justin é convocado para integrar o júri do caso. Conforme as peças se encaixam, Eastwood transforma um drama policial simples em algo engenhoso, repleto de ambiguidades morais. Uma obra direta, envolvente e inquieta, que lança luz sobre instituições supostamente infalíveis. É muito bom. Leia a resenha completa.

 

 


15) Tudo Que Imaginamos Como Luz (All We Imagine Is Light): Em Tudo Que Imaginamos Como Luz, a frase “você não pode escapar do seu destino” ecoa como síntese de uma realidade moldada pelo patriarcado e pelo conservadorismo. Ambientado em uma Mumbai ao mesmo tempo vibrante e opressiva, o filme acompanha Prabha e Anu, enfermeiras unidas por afeto e contraste. A primeira é rígida, resignada a um casamento arranjado e a uma espera infinita; a segunda, mais jovem, tenta driblar normas sociais em busca de desejo, intimidade e autonomia. Premiado em Cannes, o delicado trabalho de Payal Kapadia constrói uma tapeçaria urbana marcada por sororidade, desigualdade de classe, gentrificação e silêncios impostos às mulheres. A cidade surge quase onírica, tecnológica e decadente, enquanto pequenas histórias - o amor proibido de Anu, a solidão de Prabha, a luta de Parvaty contra a demolição de sua casa - se entrelaçam com naturalidade. Sem pressa ou respostas fáceis, o filme aposta na contemplação e na sensibilidade para falar de limites, escolhas e amarras invisíveis. Ao fim, Tudo Que Imaginamos Como Luz não promete rupturas grandiosas, mas sugere algo mais raro: a possibilidade de pequenos gestos de liberdade iluminarem, ainda que brevemente, um mundo endurecido. Leia a resenha completa.

 

 


14) Homem Com H: Homem com H, de Esmir Filho, é antes de tudo uma homenagem bonita e generosa - e rara, por acontecer em vida - a um dos maiores artistas brasileiros ainda em plena atividade. Falar de Ney Matogrosso como figura transgressora, iconoclasta e absolutamente única pode soar óbvio, mas em tempos como os atuais, de avanço da extrema direita e de preconceitos os mais variados, o óbvio precisa ser reafirmado. O filme entende isso e abraça a complexidade do artista: corpo livre, sexualidade dissidente, presença magnética e uma voz que atravessa gerações. Sem a pretensão de esgotar a trajetória, o longa constrói um panorama sensível que vai da infância marcada pelo pai militar às descobertas artísticas em meio à Ditadura, passando pela explosão estética dos Secos e Molhados e a consolidação solo. A encenação mistura o bucólico e o performático, natureza e lantejoula, mito e carne, sempre flertando com a alegoria. No centro de tudo está Jesuíta Barbosa, hipnótico, preenchendo a tela com intensidade e entrega, sem jamais cair na caricatura. Homem com H não é só um retrato - é um gesto político e afetivo. Em um Brasil cada vez mais reacionário, celebrar Ney Matogrosso é mais do que prazer: é uma necessidade. Leia a resenha completa.

 

 


13) Filhos (Vogter): Esse filme contundente de Gustav Möller, o mesmo diretor do ótimo Culpa (2018), dialoga diretamente com o cinema moral dos irmãos Dardenne, especialmente O Filho (2001), ao investigar culpa, luto e a possibilidade - ou não - de redenção. Com uma encenação econômica e repleta de silêncios eloquentes, o filme acompanha Eva, uma agente penitenciária que acredita genuinamente no caráter regenerativo do sistema prisional. Sua postura ética e cuidadosa com os detentos parece inabalável, ao menos até a chegada de Mikkel. O jovem preso, acusado de assassinato, carrega um peso insuportável: ele é o assassino do filho de Eva. A partir daí, o filme se constrói sobre tensões quase invisíveis, olhares prolongados e pequenas disputas que revelam um conflito interno devastador. Ao forçar sua transferência para a ala mais perigosa, Eva entra numa espiral em que justiça, vingança e autopunição se confundem. Claustrofóbico e de tensão crescente, Filhos evita respostas fáceis e aposta na ambiguidade moral. A pergunta que fica não é apenas sobre o sistema, mas sobre os limites do perdão - e se há, de fato, pessoas que não podem ser salvas. Uma frase que ecoa muito além dos créditos finais. Leia a resenha completa.

 

 


12) Apocalipse nos Trópicos: O documentário de Petra Costa, que tem boas chances de figurar em sua categoria no Oscar, parte de imagens aterradoras do 8 de janeiro de 2023 - como a dos fiéis ajoelhados e rezando dentro do STF destruído - para escancarar um Brasil em que fé, política e delírio messiânico se misturam de forma explosiva. De acordo com os extremistas não se trata mais de esquerda ou direita, mas da retórica do bem contra o mal, amplamente difundida por setores reacionários da Igreja Evangélica e absorvida por milhões de fiéis ao longo das últimas décadas. Nas trama, a diretora traça um panorama preciso da ascensão evangélica no poder institucional: da Bancada da Bíblia à eleição de Bolsonaro, passando pela indicação de um ministro “terrivelmente evangélico” ao STF. No centro está Silas Malafaia, como símbolo de um projeto político sustentado pelo pânico moral - banheiros unissex, aborto, ideologia de gênero - e pela demonização do adversário. Com vasto material de arquivo, Petra conecta esse movimento ao colonialismo teológico importado dos EUA e ao esvaziamento da Teologia da Libertação. O resultado é um documentário inquietante, melancólico e necessário, que alerta para perigos ainda latentes e que aludem à essa "cadela" que nunca dorme. Leia a resenha completa.

 

 


11) A Vida de Chuck (Life of Chuck): Uma cena aparentemente banal - uma baterista de rua e um homem de terno que para, escuta, e começa a dançar - sintetiza com delicadeza o espírito de A Vida de Chuck. O gesto inesperado transforma o cotidiano em epifania e revela o eixo da obra: a imprevisibilidade da existência, as marcas que deixamos e as que nos atravessam. Nada parece grandioso à primeira vista, mas tudo carrega potência. Esse momento pertence ao segundo ato, Artistas de Rua Para Sempre, talvez o coração emocional do filme. Chuck (Tom Hiddleston) é um contador comum que abandonou o sonho artístico, mas que o reencontra justamente quando tem pouco tempo de vida pela frente. O filme sugere que não somos nada “na fila do pão”, e ainda assim capazes de beleza, conexão e gestos que suspendem o tempo. Narrado de trás para frente, o longa amplia seu alcance ao ligar a morte de Chuck ao colapso do mundo, no segmento Obrigado, Chuck, com um professor tentando sobreviver ao fim das estruturas, enquanto mensagens celebram a existência de um homem comum (o tal Chuck do título). Já Eu Contenho Multidões revisita a infância marcada por perdas, dança, afeto e mistérios. Aberto, simbólico e profundamente humano esse belo filme de Mike Flanagan inspirado em Stephen King, lembra que somos partículas minúsculas - e, ainda assim, cheias de mundos. Leia a resenha completa.
 

 


10) Centenas de Castores (Hundreds of Beavers): Centenas de Castores é daqueles achados raros: uma obra chapada, delirante e genuinamente engraçada, que faz rir sem esforço - aliás, acho que fazia muito tempo que eu não gargalhava assistindo um filme. Com orçamento irrisório - de US$ 150 mil -, Mike Cheslik entrega uma comédia física anárquica, filmada em preto e branco, sem diálogos e cheia de intertítulos absurdos, que já nos primeiros minutos deixa claro o espírito da coisa. Na trama, acompanhamos Jean Kayak, um produtor de sidra azarado que perde tudo depois de um trágico acidente e parte numa jornada de sobrevivência tão improvável quanto nonsense. O humor é cartunesco, assumidamente artificial, com animais interpretados por adultos fantasiados, gags em cascata e uma lógica de desenho animado ao estilo Coiote e Papa-Léguas. Entre quedas, mordidas, castores vilanescos e armadilhas cada vez mais elaboradas, o filme aposta no exagero e na criatividade sem limites. Pode não agradar a todos, mas quem embarca encontra um exercício de cinema inventivo, físico e imprevisível, que dialoga com Chaplin, Monty Python e o espírito dos videogames noventistas. Um delírio feito na raça - e com personalidade de sobra. Leia a resenha completa.


 

 


 

9) A Garota da Agulha (Pigen Med Nålen): Enviado da Dinamarca para a mais recente edição do Oscar, A Garota da Agulha, de Magnus von Horn, é daqueles filmes que quase deveriam vir com um alerta de gatilho. Violento, trágico e profundamente sombrio, mas nunca gratuito, o longa usa o sofrimento como ferramenta para expor a hipocrisia moral que atravessa épocas. Ambientado no pós-Primeira Guerra, o filme dialoga de forma inquietante com o presente, lembrando que os discursos de virtude quase sempre escondem crueldades estruturais. A trajetória de Karoline (a impressionante Victoria Carmen Sonne) é uma sucessão de humilhações: despejo, exploração no trabalho, gravidez rejeitada, abandono e o retorno traumático do marido dado como morto. É nesse cenário de desolação que surge Dagmar (Trine Dyrholm), figura ambígua que oferece acolhimento e cria um vínculo tão necessário quanto perigoso. Von Horn conduz o espectador com rigor, fazendo compreender - sem necessariamente absolver - decisões extremas. A fotografia em preto e branco, a trilha perturbadora e os símbolos recorrentes reforçam o clima de desencanto. Em tempos de retrocessos, aborto criminalizado e violência contra a mulher - fortalecidos por discursos extremistas de direita - o filme é um tapão na nossa cara. E um espelho incômodo. Leia a resenha completa.

 

 


8) Bird: À primeira vista, Bird, da diretora Andrea Arnold, parece seguir o caminho conhecido do coming of age social: adolescência atravessada por pobreza, violência cotidiana, família disfuncional e poucas perspectivas. Bailey, vivida com enorme sensibilidade por Nykiya Adams, habita esse universo árido reforçado pela fotografia dessaturada e pela trilha sonora sempre precisa. Mas, à medida que o filme avança, fica claro que Arnold está menos interessada em soluções fáceis e mais em revelar como sobreviver também passa por reconhecer limites e aceitar a própria geografia emocional. A relação com o pai, Bug (o sempre excelente Barry Keoghan), é caótica, contraditória e, ainda assim, atravessada por afeto genuíno. É nesse mundo instável que surge Bird (Franz Rogowski), figura enigmática, quase saída do realismo fantástico, cuja amizade oferece a Bailey uma fresta de beleza, imaginação e esperança. Entre crença no abstrato, pequenos gestos de cuidado e uma trilha que flerta com a nostalgia, o filme recusa o cinismo e aposta no afeto como força transformadora. Sem dourar a pílula, Bird, que está disponível na Mubi, encontra poesia onde parecia não haver nada. É um filme essencialmente humano. E emociona justamente por isso. Leia a resenha completa.

 

 


7) Uma Batalha Após a Outra (One Battle After Another): Existe uma frase atribuída à Che Guevara que diz que "a revolução se faz através do homem, mas o homem tem de forjar, dia a dia, o seu espírito revolucionário". Em alguma medida é possível afirmar que tal sentença resume bem o sentimento vivido pelo personagem central de Uma Batalha Após a Outra -  uma experiência larga, grandiosa, que alterna momentos frenéticos de perseguição e de fugas espetaculares com instantes um tanto intimistas, domésticos e reflexivos. Não apenas sobre os tempos em que vivemos - de ascensão de uma extrema direita a cada dia mais radical -, mas também da persistência quase romântica em não deixar os ideais revolucionários esmorecerem. Mas como ir para além da paixão sanguínea e ideológica que move os movimentos de esquerda (ou progressistas) que lutam por justiça social e um maior equilíbrio entre quem está acima e abaixo da pirâmide? Com uma trilha sonora envolvente e uma edição ágil, mas nunca confusa, Uma Batalha Após a Outra é uma aventura política quente, exagerada, por vezes engraçada, inspirada em um conto de Thomas Pynchon, e que dialoga, inevitavelmente, com o atual contexto político. A gente mal vê as 2h40 passarem. O que não deixa de ser um mérito. Leia a resenha completa.

 

 


6) A História de Souleymane (L'histoire de Souleymane): "Qual é a sua história? A sua história de verdade?". É quase no momento final de A História de Souleymane que o protagonista desse premiado filme de Boris Lojkine é instigado por uma agente que dá assistência a refugiados (ele é um imigrante da Guiné, que trabalha como entregador, indo pra lá e pra cá de bicicleta) para que ele pare de mentir. E seja honesto com aquilo que está passando, está vivendo. E desafio qualquer espectador que assiste a essa pequena joia do cinema alternativo a não se debulhar em lágrimas naquele instante. Segurando o choro - e com a cabeça baixa, claramente envergonhado de tudo (da violência que sofre em um País estrangeiro, das dificuldades em ser reconhecido como cidadão, do trabalho precarizado que lhe fornece o mínimo), Souleymane (Abou Sangare, em performance impressionante) desaba. "Minha mãe me deu a vida. E eu só queria poder devolver a ela alguma dignidade", explica o rapaz em frente a consternada funcionária. Vamos combinar que em tempos de perseguição à imigrantes, de xenofobia, de ódio e de intolerância, uma produção como esta - dolorida, desalentadora, mas que preserva um fiapo de esperança - parece se tornar ainda mais impactante. Leia a resenha completa.

 

 


5) Código de Ética (Elfogy a Levego): Em Código de Ética, acompanhamos Ana, professora exemplar de Artes e Literatura, de reputação ilibada, em um tradicional colégio húngaro, cuja trajetória sólida entra em colapso após um gesto banal: sugerir aos alunos o filme Eclipse de Uma Paixão (1995), sobre o tórrido relacionamento entre os escritores Verlaine e Rimbaud. O que deveria ser apenas um convite extracurricular se transforma em escândalo quando um pai conservador - aquele "cidadão de bem" exemplar, que acha que se seu pobre filhinho tiver contato com produções do tipo se converterá automaticamente em um ouvinte assíduo da Lady Gaga, um seguidor de Ru Paul e suas drag races e um defensor contínuo da cultura woke e do gayzismo cultural - flagra o filho assistindo à obra e acusa a escola de “corrupção moral”. O filme expõe, com precisão incômoda, o avanço da censura travestida de zelo parental e a interferência ideológica no ambiente educacional. Atualíssimo, dialoga diretamente com debates recentes sobre controle de conteúdo, perseguição a professores e apagamento da diversidade. Sem recorrer a histrionismos, o longa revela como o medo, o moralismo e o poder econômico podem sufocar o pensamento crítico. Muda o país, mas o retrocesso é assustadoramente familiar. Leia a resenha completa.

 


4) A Semente do Fruto Sagrado ((Daneh Anjeer Moghadas): Em uma das tantas cenas incômodas do enviado da Alemanha ao último Oscar, as jovens Rezvan e Sana tentam argumentar com a sua mãe Najmeh sobre o absurdo de um regime autoritário e teocrático simplesmente impedir as mulheres de estarem nas ruas sem estar com o hijab (aquele lenço que cobre a cabeça) vestido adequadamente. Diante da TV elas se deparam com uma notícia sobre a morte de uma jovem supostamente por um AVC - ainda que, nas redes sociais, a história pareça ser bem outra e há a possibilidade de ela ter falecido após um caso brutal envolvendo a nefasta Polícia Moralidade (um órgão de governo do Irã, que consiste em patrulhas que fazem vigilância das vestes das mulheres), que teria espancado a garota até a morte em meio a protestos. Manifestações que servem como pano de fundo para a trama, que coloca em lados opostos não apenas Rezvan e Sana e sua mãe, mas também as adolescentes e o pai, Iman, um importante advogado que trabalha para o governo. Ao cabo, esse é o tipo de obra tensa e cheia de conflitos domésticos, que evidencia o problema da radicalização e de como ela é capaz de conduzir as pessoas em uma espiral de loucura, frente aquilo em que elas acreditam cegamente. Leia a resenha completa

 

 


3) O Agente Secreto: Muito provavelmente poucos filmes serão tão didáticos em evidenciar de que formas eram perseguidas pessoas que, não necessariamente, estavam conectadas ao aparato político em meio à ditadura militar, como no nosso enviado ao Oscar (e que estamos na torcida!). Professores, intelectuais, pesquisadores, jornalistas, artistas e muitos outros precisavam entrar em rota de fuga pelos motivos mais aleatórios - e que nem sempre estavam diretamente ligados ao confronto direto com os milicos ou às frentes de resistência ao regime. No caso de Marcelo (Wagner Moura), o protagonista da obra de Kleber Mendonça Filho, ele é um professor universitário especializado em tecnologia que meio que precisa sumir do mapa - e da faculdade em que ele trabalha em São Paulo -, depois que um industriário mal intencionado (e que detém o dinheiro) se sente incomodado com aquele "comunista cabeludo", que ousou patentear uma pesquisa a respeito de baterias de lítio. Em linhas gerais esse é mais um filme de fluidez lenta, que aposta nas sutilezas e em uma série de pequenos subtextos como forma de fortalecer os seus pontos. Repleta de grandes diálogos e de excelentes interpretações - não há como resistir às interações entre os personagens de Wagner e de Tânia Mara, essa é uma produção que atesta a força atual do nosso cinema, mais presente do que nunca. Leia a resenha completa.
 

 


 

2) Conclave (Conclave): É uma imagem de forte carga simbólica a da fumaça branca saindo da chaminé. Um evento que costuma mobilizar católicos no mundo todo e que, dada a sua raridade, também gera grande expectativa. A escolha de um Papa, afinal, não é algo tão simples. Aliás, é uma cerimônia ritualística, cercada de mistério e de suntuosidade, que pode levar dias para ser concluída. E que um filme recrie todos esses bastidores de uma forma tão envolvente, coesa e magnética é algo digno de nota. Afinal de contas, pensar em uma produção sobre a seleção de um novo pontífice poderia soar pouco empolgante. Mas, no microcosmo em que ocorre um conclave após a morte do atual Papa, parece importar menos a votação em si. E sim os rumos da coisa toda. As maquinações, os jogos de poder, as chantagens, as traições, as crises de fé. Afinal de contas, desejar um dos mais altos cargos do planeta, é algo que move ambições. Egos. Intenções. Gera sofrimentos. Dores. Incertezas. Ao cabo, Conclave é um filme completo em todos os seus aspectos. Impecável na parte técnica - do figurino à fotografia, passando pelo assombroso desenho de produção - e robusto em seu roteiro bem costurado e nas interpretações cheias de diálogos de impacto -, a obra ainda reserva para a sua conclusão uma das grandes surpresas da temporada. Para ver e rever. Leia a resenha completa.

 

 


 

1) Pecadores (Sinners): A maior alegoria do cinema recente sobre como se perpetua o racismo através dos tempos. Essa talvez seja uma das formas de encarar a experiência com o nosso campeão do ano. Em linhas gerais essa é uma obra que trafega por vários gêneros - indo do drama à comédia, passando pelo terror e pela ação -, sem nunca perder de vista a discussão sobre como os tentáculos podres do preconceito se espalham, mesmo em tempos em que a sociedade, supostamente, avança. Em certa altura, ainda no começo do filme dirigido por Ryan Coogler - de Pantera Negra (2018) -, um redneck que responde por Hogwood garante aos irmãos gêmeos Smoke e Stack (Michael B. Jordan em papel duplo) que a "klan não existe mais". Uma forma de tranquilizar a dupla que, no ano de 1932, está retornando ao seu Mississipi natal, interessada em instalar um bar de música, dança e bebidas para a comunidade afro do local (as famosas jukes, como era conhecidas). Tendo de lidar com um contexto de segregação racial e de preconceitos de todo o tipo. Musical, magnética, imprevisível, divertida, tensa, violenta e instigante essa é uma daquelas obras cheias de possibilidades de interpretação e que ainda faz um aceno para a literatura fantástica em seu terço final. E que ainda possui a melhor sequência do ano (vocês saberão ou até já sabem qual). Filmaço. Leia a resenha completa.

E então, pessoal, concordam, discordam? Comente, espalhem! 

sexta-feira, 12 de dezembro de 2025

30 Melhores Discos Nacionais de 2025

Vamos combinar que, se não foi fácil elaborar a lista dos discos internacionais, com os nacionais a situação não é diferente. Nossa música, afinal, nunca foi tão plural e diversificada - e eu admito que é simplesmente impossível conseguir acompanhar todos os lançamentos. Muita coisa fica fora do radar e tenho a mais absoluta certeza de que, ali adiante, vou escutar algum disco que poderia integrar essa lista (mas que não entrou a tempo porque simplesmente a coisa foi atropelada e não deu). Um levantamento desse tipo é, em muitos casos, um recorte do momento. Daquilo que foi possível. Ou que mesmo furou a bolha. 

 


Claro que, como responsável por um site sobre música e cinema, cabe a mim escavar, tentando sair do óbvio. Pesquisar bastante. Ver o que outras páginas estão comentando. Ou o que os selos nacionais estão lançando. E o caso é que, de fato, foi um ano muito bom - e talvez um dos melhores da safra recente. Foi tempo de refinamento e de indie pop mais cabeçudo (como no caso de Mateus Moura), mas também foi tempo de festa, celebração e brasilidade (sendo um dos maiores exemplos o álbum da Gaby Amarantos). Mas tem pra todos os gostos - rock, emo, R&B, MPB, jazz, rap, latinidade e até conga (você já ouviram falar do Congadar?). Enfim, a lista é longa, espero que gostem, comentem e compartilhem!

 

 

 

30) Jonas Sá (_MNSTR_): Um Jonas Sá bem menos debochado do que aquele visto, por exemplo, no divertido BLAM BLAM! (2015). Assim podemos considerar a experiência com o recente _MNSTR_, um álbum mais introspectivo, de atmosfera estranha e de maior densidade emocional. Afinal, se no registro lançado há dez anos havia toda uma energia de programa de auditório dos anos 80 - com toda uma teatralidade reforçada por um conjunto de canções pop sarcásticas, de humor cínico, com títulos que meio que entregam a proposta (Gigolô, Perdidos na Noite, Sexy Savannah e Chat Roulette) -, aqui temos um artista que aposta num tom mais direto, confessional e menos performático. Um bom exemplo nesse sentido pode ser percebido na faixa Musa, um rock soul meio gospel, de alta carga dramática, e que abre espaço para discussões de gênero de forma sensível e criativa (Eu me chamo Maria mas sou João / O meu corpo sabia / Mas eu não). Em meio a instantes existencialistas, o disco também debate política de forma mais franca, como em Quanto + Idiota Melhor, um bolero indie em que o artista critica a falta de memória do brasileiro, em meio a citações à Damares e ao Carluxo (64 está escrito e não vai se apagar / Meus filhos vão crescer sabendo em quem acreditar).

 

 

 

29) Vitoria Faria (Vacas Exaustas): "Sou mulher, muito prazer / E esse prazer é só meu / [...] Hoje ninguém vai dizer 'se apanhou mereceu'". É quase na conclusão de Vacas Exaustas, que Vitoria Faria parece condensar o conceito do seu disco de estreia - uma experiência catártica, que mistura rock, música eletrônica, jazz, tango e manguebeat. Em linhas gerais as mulheres estão cansadas. Do machismo. Da violência. Da misoginia e do controle de corpos. Da falta de reconhecimento ou de espaço. De estar onde quiser. De decidir sobre sua vida, seu corpo ou sexualidade - com o "prazer" exaltado não como alegoria, mas como grito, como verdade, o que também ocorre em Asas à Cobra (Tem coisa mais perigosa / Que a mulher que fala e goza?). Em entrevistas, a artista chegou a mencionar as dificuldades em ser mulher e imigrante em um País colonizador como Portugal, onde residiu por quatro anos. "Naquele momento eu entendi na pele a construção da sociedade patriarcal e capitalista que a gente vive", resumiu em entrevista ao site O Grito. Não por acaso, canções como Elefante pelo cano (um forró esquisito), Zap de Família, uma valsa debochada que alude à escrotidão familiar, ou a faixa título (Minhas tetas estão exaustas / Pra cada menino mal educado / Caíram meio metro quadrado), são tão corrosivas .

 

 

 

28) Viridiana (Coisas Frágeis): Uma Viridiana muito mais expansiva é o que encontramos em Coisas Frágeis, o segundo registro de inéditas da gaúcha. Se Transfusão (2021) parecia uma experiência mais econômica, aqui temos um projeto que espalha uma energia pop, dançante e oitentista que flui de forma orgânica, natural. Bebendo na fonte de artistas diversos como Marina Lima, Madonna, Rita Lee e Pet Shop Boys, a cantora encontra o equilíbrio perfeito entre as canções bem-humoradas como Final Feliz (Gato / Desculpa te falar assim / Mas é que uma moça que nem eu / Que tem algo a mais / Eu preciso de alguém / Que me satisfaz), com instantes contemplativos e de coração partido, como no caso de Você Puxou Meu Tapete (Que vontade / De te bloquear / Em tudo que é rede social). Há um clima soturno que prevalece no todo, com a dança funcionando como veículo de resistência e de pertencimento, especialmente para a comunidade LGBTQIA+. "Venho sendo DJ desde 2022 em festas queer de Porto Alegre, e observar a forma como as pessoas se movem, se olham, se apaixonam na pista, e como a música que tá tocando ali rege tudo isso, me deixou instigada pra cada vez mais me apropriar dessa música que faz mexer", resumiu em entrevista à Noize.

 

 

 

27) Seu Jorge (Baile à Baiana): Se existe alguém versátil no mundo da música essa pessoa é o Seu Jorge. Capaz de trafegar por estilos brasileiros variados, o artista jamais ignora o poder da conexão com públicos estrangeiros e as possibilidades de levar a sua arte para além dos limites geográficos do País - e basta pensar nas versões de David Bowie para a trilha sonora de A Vida Marinha com Steve Zissou (2003), para que essa certeza só aumente. Só que, ainda assim, talvez faltasse em sua discografia aquele registro que condensasse todas as possibilidades da nossa música. E que fosse capaz de representar toda a nossa diversidade e riqueza culturais. De essência festiva, mas sem ignorar as questões sociais que costumam perpassar as suas músicas, o disco se converte rapidamente em uma experiência de altíssima voltagem. A inspiração, de acordo com o artista, teria vindo depois de uma visita ao espaço cultural Galpão Cheio de Assunto, em Salvador, um local que abrigava música, exposições e outras expressões de convergência criativa. O resultado é uma mistura de soul, funk, afropop, carimbó, MPB e samba rock, que resultam em uma sonoridade harmônica e enérgica, sendo impossível resistir à joias como Sábado à Noite, Batuque, Lasqueira, Gente Boa se Atrai e Sete Prazeres

 

 


26) Raquel (Não Incendiei a Casa por Milagre): Ex-integrante do elogiado trio As Baías, Raquel não esconde as inspirações literárias e cinematográficas em sua estreia solo - o que pode ser percebido não apenas no título do trabalho, mas também em sua capa colorida, ambas influenciadas pelo livro de contos O Último Sonho, do diretor (e escritor) Pedro Almodóvar. Em linhas gerais há uma fúria teatral (no melhor sentido), que se espalha pelas sete faixas do registro - que se apoiam em um rock meio entortado, entre o indie, a MPB e o psicodélico, uma coisa meio Rita Lee com Ney Matogrosso -, pra tratar de paixões, dores e dilemas pessoais. "É um abismo, a gente fica em um limite psicológico e isso traz essas sensações de raiva, inveja e crises de comparação. Chega uma hora que da vontade de incendiar tudo. Por isso é um álbum de rock, porque só uma guitarra, uma bateria e um baixo bem rock são capazes de me esvaziar disso", explicou em entrevista à Rolling Stone. Um bom resumo desse contexto pode ser percebida na feroz Ao Vivo, um bolerão noventista sobre preconceitos, transfobia e relacionamentos "no sigilo" (Os beijos / Nas travestis são dados nos esconderijos, becos / Mas continuam ainda assim sendo deliciosos / Beijos). 

 

 


 

25) Lucas Grill (Grill o Rei do Deprê Chic): "Imagine Ziggy Stardust protagonizando a ‘Ópera do Malandro’, de Chico Buarque; adicione as noites exageradas de Cazuza; a melancolia de Cartola; o existencialismo de Belchior; a boemia de Nelson Gonçalves; as baladas de Roberto; o wild side de Lou Reed; a trova cool de Julian Casablancas, a loucura dos Beatniks; as estrelas de Oscar Wilde; a rima torta dos poetas malditos; um toque de Almodóvar, luzes de Wong Kar Wai; a praia, as noites do Rio de Janeiro, as garrafas, os cigarros e, por fim, os amores e os desamores. Pronto, temos ‘Grill O Rei o Deprê Chic’." Vamos combinar que a explicação dada pelo próprio Lucas Grill ao site Tracklist sobre o conceito de seu disco de estreia poderia soar petulante (em meio a referências nada modestas), mas ela é apenas perfeita. Da capa de tintas violeta noir às melodias soturnas e enevoadas, passando ainda pelas letras existencialistas, esperançosas e melancólicas, tristes mas festivas, iluminadas porém sombrias, tudo no álbum grita esse caldeirão que mescla pós punk, gótico, dream pop, MPB, bares e caminhadas na orla à noite. Não por acaso, canções como O Terror de Tudo, Loser, Poesia na Chuva e Moldura Quebrada passeiam com fluidez por esse ambiente onírico e um tanto cinematográfico.

 

 


24) Ebony (KM2): Quem acompanha a carreira da rapper Ebony percebe as diferenças entre seu disco de estreia, Visão Periférica (2021), e o álbum lançado nesse ano. Se naquele a artista soava comedida - talvez por tentar se enquadrar em uma caixinha que envolvia grande gravadora e mesmo incertezas sobre o futuro -, aqui ela parece muito mais solta, falando de forma íntima e livre de rótulos, a respeito daquilo que ela quer, e do jeito que ela quer. Sem medo de falar palavrões ou mesmo de ser mais explícita em relação a temas como identidade, fé, traumas do passado, sexualidade, sonhos, família, vivência periférica e outros. "Esse álbum vem da minha vontade de parar de me esconder. Não é um disco feliz. Mas também não é triste", comentou em entrevista à Rolling Stone, utilizando a metáfora do chocolate meio amargo na busca por esse equilíbrio. O resultado é uma coletânea de canções que misturam trap, R&B, jazz, funk, gospel e MPB e que versa sobre feridas do passado (Não Lembro da Minha Infância), orgulho, autoconfiança e resistência (Extraordinária), superficialidade e padrões de beleza artificiais (Festas e Manequins) e autoestima e ascensão financeira (KIA). "Eu tinha algo a dizer para além do que esperam de mim como mulher negra", comentou em bate-papo com a Rádio Quatro.

 

 


23) Guma (Virando Noite): Pode não ser tarefa fácil fazer aquele disco que tem um pé na música popular, outro no indie - e não deixa de ser interessante perceber como essa mistura flui de forma naturalmente orgânica, no trabalho do trio recifense Guma. Levemente empoeirado, mas de essência festiva, o segundo registro de inéditas da banda une tecnobrega, Jovem Guarda e sintetizadores oitentistas, com o dream pop, o jazz e o rock contemporâneo. Um bom exemplo nesse sentido, pode ser percebido na faixa Mozinho, em companhia da sempre ótima Bruna Alimonda - um roquinho de essência brega, com letra sobre encontros e desencontros amorosos e de como o afeto pode virar desapego e até certa decepção se, digamos, a coisa não bater (Se eu te descubro já não te amo, mozinho / Se você abre a boca já sofro um pouquinho / Se eu nadar nos teus olhos logo repenso, mozinho / Quando fico no raso tu é até bonitinho). A tentativa de fugir de certos sentimentos (Virando Noite), das dúvidas sobre o futuro (Tarde Demais) ou mesmo de inseguranças e desencontros (Se Eu Der Sorte) surgem aqui e ali, em disco que parece ter como lema o fato de que "amar dá trabalho, mas vale a pena". Divertida, romântica, kitsch, debochada. Essa é daquelas bandas que não tem erro.

 

 


22) Julia Mestre (Maravilhosamente Bem): "Por debaixo da pele / Sou loba, sou fera / Olhar de felina / Poder de pantera". Vamos combinar que, se ainda estivesse entre nós - ao menos do ponto de vista material (e não simbólico) -, Rita Lee estaria orgulhosa de ver onde chegou a sua "pupila". Sim, Julia Mestre nunca escondeu o fato de a ex-Mutantes ser uma das grandes inspirações de sua carreira e não são necessárias nem duas músicas do seu mais recente álbum para que adentremos novamente naquele espaço de paixões sensuais, de tesão misterioso, de desejo carnal e noturno, tão bem construído por Rita. Aliás, uma simples olhada nos títulos das canções - Vampira, Pra Lua, Veneno da Serpente, Sou Fera -, já parece evidenciar esse ideal que nunca descamba para a mera homenagem protocolar, já que a artista, ex-integrante do Bala Desejo, imprime personalidade em cada fragmento da obra. Sombrio, mas divertido, sexy mas onírico, esse é aquele tipo de registro que é direto, mas que vai crescendo a cada nova audição. Os refrãos estão lá, assim como as melodias sofisticadas, aconchegantes, havendo sempre um detalhezinho da produção polida que pode ser descoberto a cada reencontro - até mesmo pela força vocal da artista, que parece ser mais central (ainda) neste disco. 

 

 

 

21) Jadsa (Big Buraco): Vamos combinar que a figura da coisa grande, de tamanho maior (ou big), meio que funciona como um espectro onipresente no último registro da baiana Jadsa. Em meio à emanações oníricas e sofisticadas que fundem jazz, samba rock e MPB e que sempre foram marca de sua carreira, não são poucas as menções ao enorme, ao gigante - nem que seja um gigante simbólico, uma alegoria para tempos de grandes expectativas, especialmente no que diz respeito à arte e seu imediatismo. Dos títulos das canções - Big Luv, Big Bang, 1000 Sensations, Big Mama, Big Buraco (que também nomeia o disco), às letras provocativas e enigmáticas que parecem até maiores em sua simplicidade (As coisas acontecem quando querem / Quando crescem todo mundo vê / Não o caminho traçado a navalha / Mas o tamanho do bicho que é) - tudo remete a essa representação de profundidade, de intensidade. Talvez uma audição descompromissada não resulte nessa percepção de imediato, mas em meio a sopros bem encaixados, efeitos que se espalham e percussão levemente experimental, o que se tem é um trabalho caloroso, o que pode ser comprovado em faixas envolventes e brasileiríssimas como Tremedêra e Sob a Pele

 

 

 

20) Jonathan Ferr (LAR): O simbolismo do lar como um espaço de afeto, segurança e pertencimento - de memórias e de identidades pra chamar de suas - é quase óbvio no registro lançado neste ano pelo músico e pianista brasileiro Jonathan Ferr. Em entrevistas, o artista chegou a afirmar que, para ele, o conceito de lar vai para além do físico, "sendo um espaço ancestral e cultural de onde nós viemos, um local que se expande e que é feito de memórias que se formam ao longo da vida". À página Pretessências ele chegou a comentar que o álbum nasceu após a morte do seu pai, enquanto ele estava em turnê - o que intensificaria suas reflexões sobre identidade, pertencimento, perda e o que significa retornar para casa. Mas não necessariamente como um lugar, mas sim um sentimento de acolhimento e reconexão com raízes. Não é por acaso que as canções do disco - sofisticadas, minimalistas - se expandem criando uma atmosfera que vai ao encontro dessa ideia de coletividade e de afeto. Mesclando urban jazz, neosoul, hip hop e MPB, Ferr acerta ainda ao usar a sua voz, em detrimento de canções majoritariamente instrumentais, como na época do Cura (2021). O que faz com que o ouvinte se conecte mais, tornando as excelentes Tô Apaixonado, Casa e Infinito ainda melhores.

 

 


 

19) Ana Spalter (Coisas Vêm e Vão): Um registro que parece um pequeno tratado sobre vida em movimento, perda da inocência, idas e vindas emocionais e as complexidades que envolvem o ato de amadurecer. Assim pode ser percebido o primeiro registro de inéditas da cantora, arranjadora e multi-instrumentista paulista Ana Spalter. E basta um passeio pelas letras ao mesmo tempo nostálgicas, poéticas e existencialistas ("Me deixa só viver / Sou jovem vou aprender", "Ah quando eu era criança eu era tão mais velha / Dona lua aparecia sempre pra puxar conversa", "As crianças se abraçam sem saber o quão especial é viver"), para que essa impressão se amplie. Perfumado por melodias que unem jazz, samba, MPB, folk e até uma psicodelia suave, esse é um disco que estabelece uma ponte direta com o passado e com o trabalho de artistas diversos, como, Elis Regina, Aldir Blanc e Milton Nascimento, mas sem jamais parecer uma mera cópia sem personalidade. Lúdico, imaginativo, quase circense em certos momentos, o álbum tem um frescor reforçado pela voz de Ana - o que pode ser percebido em canções irresistíveis, como, Privilégio Meu, Café, Criança Poeta e Acrobata - esta última uma joia fantasiosa, descrita à perfeição pelo site Pop Fantasma como um "desenho animado musicado".

 

 

 

18) Bella e o Olmo da Bruxa (Afeto e Outros Esportes de Contato): Uma analogia perfeita entre a ternura e a luta, entre a afeição e o embate. É mais ou menos dessa forma que os gaúchos da Bella e o Olmo da Bruxa resumem a experiência com o segundo disco. Ao cabo, os "esportes de contato" podem estabelecer um paralelo direto entre as o sentimentalismo e a vulnerabilidade que emergem das relações afetivas, com a fisicalidade e a violência da queda - mais ou menos como naquele momento em que a gente se ferra emocionalmente, e precisa recolher os cacos para continuar. Mais maduros do que na estreia de 2020, o coletivo continua apostando na mistura de shoegaze, emo e indie pop, com um pouco mais de experimentação. Um bom exemplo nesse sentido, pode ser percebido em faixas como Nova Paixão, que fala de recomeços e de esperança (E eu sei / Que você vai falar / Que a gente tava mais amigo / No meio do ano passado), até mesmo como um contraste em relação à Bem no Seu Aniversário (a canção de abertura). Um outro belo instante é Mesmo Assim, em parceria com os simpáticos da Sophia Chablau e Uma Enorme Perda de Tempo, que serve como espécie de peça central no equilíbrio entre melancolia e honestidade. Ainda é uma banda nova, mas que vale conferir.

 

 

 

17) Joyce Moreno (O Mar é Mulher): A água como metáfora, como alegoria de placidez e de calmaria não parece estar apenas na capa acinzentada à beira de um cais repleto de embarcações e que marca o 44º registro da veterana Joyce Moreno. Está também nas letras inundadas - com o perdão do trocadilho - de referências sobre praias e mares e de outros elementos da natureza, que se conectam com a feminilidade de forma quase mitológica. Há uma fluidez de torrente que se espalha em faixas que unem jazz, samba e bossa nova de forma sofisticada, como que aludindo ao singrar das ondas e a sua alternância entre calmaria e tempestade, delicadeza e força. E talvez não seja por acaso que a faixa título, que abre o disco, com seu lirismo ao mesmo tempo suave e misterioso, seja justamente aquela que personifica o mar como mulher (Algum mistério pra quem se arriscar / E os que acreditam saber navegar / Podem até naufragar / O tempo dirá): refinado, cheio de camadas, evocativo. Essas ideias ressurgem em outros momentos como em Canção de Búzios, inspirada em poema de Ronaldo Bastos, com direito a recriação bucólica dos barulhos de uma praia deserta (Se eu passar por você e falar de estrelas / Não ligue não / São estrelas do mar), em um álbum recheado de participações especiais de nomes como Jards Macalé e João Donato.

 

 

 

16) Baianasystem (O Mundo Dá Voltas): O ano mal havia começado e, como se fosse uma prévia para o carnaval, o Baianasystem soltou O Mundo Dá Voltas, o quinto registro de estúdio de Russo Passapusso e companhia. Em linhas gerais, para quem acompanha de perto a carreira dos baianos, não há grandes mudanças, com a sonoridade encontrando um equilíbrio perfeito entre latinidade, batucada africana, manguebeat, reggae, samba, afoxé e dub. Um conjunto que, aliás, forma a base para as letras políticas a respeito de questões sociais, que se cruzam com temas ligados à ancestralidade, preconceitos (especialmente as raciais), lutas e identidade. Um bom exemplo dessa mescla pode ser percebido em A Laje, com participação de Emicida, em que os contrastes urbanos são, simbolicamente, vistos de cima da laje, reforçando críticas sobre desigualdade na distribuição de renda e falta de oportunidades (Quem vai vingar os oprimidos é o planeta / Sampa estampa quanta anta a pampa nessa treta / Quem leva as crianças não é o boi da cara preta, é o estado / Ouvindo: Vai pra Cuba, dos pateta). O expediente se repete em outros instantes de impacto, como Praia do Futuro, Balacobaco (com Anitta) e Porta-Retrato da Família Brasileira, levando ao limite a marca do coletivo.

 

 


15) Thiago Amud (Enseada Perdida): Quando ouvimos os acordes carnavalescos de Baía de Janeiro faixa que abre o quinto trabalho de inéditas do carioca Thiago Amud, é difícil não olhar com carinho para o passado. Para uma MPB mais esperançosa, de confete e de serpentina e de fim de ditadura, como em Vai Passar, de Chico Buarque. E isso não é por acaso, já que as referências não ficam apenas na homenagem, já que não apenas Chico gravou com o artista a festiva Cidade Possessa, como ainda Caetano Veloso participou da derradeira Cantiga de Ninar o Mar. "Aliás, foi o próprio Zeca Veloso (o filho de Caê), quem se movimentou pra que o disco acontecesse", explicou Amud no material de divulgação. E ainda que estabeleça diálogo com as tradições, a história e os ritmos brasileiros - do frevo à música ancestral, passando pelo jazz e pelo pop sofisticado -, o cantor, arranjador e compositor nunca deixa de imprimir a sua marca, a sua personalidade. O que pode ser comprovado, por exemplo, na sofisticada e bucólica Oração à Cobra Grande ou mesmo em Penteu, um samba estranho, de letra vertiginosa, inspirada na peça As Bacantes, de Eurípedes. Thiago Amud precisa furar a bolha. Esse disco pode ser o caminho.

 

 

 

14) Josyara (AVIA): Um disco sobre o mais universal dos assuntos e que nunca parece se esgotar: o amor. Assim é o terceiro registro de inéditas da sempre ótima Josyara. Sedutor, enigmático, minimalista mas intenso, esse é um álbum que trafega com naturalidade por todas as etapas da paixão, indo do fascínio inicial ao desencanto, passando no meio do caminho pelas possibilidades da solitude e, mais adiante, pelo entusiasmo de um novo amor. Nesse sentido, basta ouvir os versos que se encadeiam de forma homogênea em canções como Eu Gosto Assim (Sou bem fácil de acessar) - releitura de Anelis Assunção -, Festa Nada a Ver (Como pode me deixar / Nessa festa nada a ver), Corredeiras (Não, não preciso dessa mágoa) e De Samba em Samba (Não tem mais amor que te faça ficar / Não há mais nada que eu possa fazer), pra perceber como se estabelece esse conceito. Peça central do trabalho, a sensualíssima Seiva tem um violãozinho cadenciado, que se espalha em efeitos eletrônicos econômicos, que culminam em um dos melhores refrãos da temporada (Pra te beber em taça cheia / Aluar / Sonho teu sabor cereja / Quero provar / Dança mansa / Pé na areia / Te embalar / Me lambuzar na tua seiva / Quero gozar). Contemporâneo, mas sem perder a conexão com suas raízes ancestrais, este é um projeto que parece delicado em sua sonoridade, mas que é potente em suas entranhas. 

 

 

 

13) Gaby Amarantos (Rock Doido): "Eu vou sair para dançar / Eu vou curtir, e vou beber / Botar meu short beira cu / Um top, cropped, I love you". Vinte e duas faixas curtas, frenéticas, distribuídas em apenas 36 minutos de duração. A ordem em Rock Doido, quinto álbum de estúdio de Gaby Amarantos é direta: o negócio é curtir, farrear, se mexer até não poder mais. "Esse disco nasceu na batida frenética das periferias de Belém do Pará. É o som das festas de aparelhagem que me criaram, das batalhas de treme, da moda de quem não espera tendência, cria. É fogo, suor, brilho e cerveja voadora", resumiu a artista, no material de divulgação. O resultado é um projeto que surge meio que como uma extensão natural da trajetória de Gaby, em sua busca por explorar e valorizar suas raízes culturais, em eventos musicais de rua na região Norte. Divertido, caótico, sensual, vibrante e cheio de participações especiais (de Lauana Prado a Gang do Eletro), esse é um trabalho de celebração, e essencialmente brasileiro - sendo meio que impossível resistir à canções como Te Amo Fudido, Foguinho e Short Beira Cu (citada na abertura desse texto), que mesclam o tecnobrega, os ritmos latinos, o carimbó e as batidas eletrônicas levando o clima de rua, de suor e de paixão para o fone de ouvido. 

 

 

 

12) Mateus Moura (A Imitação do Vento): Bastam os primeiros versos de Orelha de Pau, faixa que inaugura a estreia do ex-integrante do coletivo Les Rita Pavone (que também lançou disco neste ano), para que sejamos transportados para um universo psicodélico, meditativo, folclórico, poético e existencial. Definida pelo artista como uma bossa nova um tanto mântrica, a canção de abertura parece fazer a conexão com outros ecossistemas ou ambientes, ao mesmo tempo em que presta homenagem ao pai marceneiro (Quando eu olho pra orelha de pau / Eu vejo uma invenção humana / Doce invenção humana), em uma metáfora mais do que perfeita para o violão tocado de forma plácida pelo artista. Esse é o ponto de partida de uma jornada de peregrinação de uma série de composições essencialmente poéticas, muitas delas cantadas em primeira pessoas, em um estilo musical que poderia ser chamado de MPB espiritual, dado seu apelo à memórias, infância e viagens nostálgicas. Simples mas sofisticado, o registro mistura baião celestial (Estrela D'Alva), salsa cintilante (Manhãzinha), samba cigano (Celeste) e xote ibérico (na ótima Marujo de Alto-Mar) - tudo concebido de forma coesa, com o violão, os sopros e percussão delicadas, fluindo de forma a permitir a música (e o ouvinte) o respiro.

 

 

 

11) Stefanie (BUNMI): De Mahmundi à Rodrigo Ogi, passando ainda por Daniel Ganjaman, Rashid, Luedji Luna, Emicida e Jonathan Ferr - basta uma olhada na riquíssima lista de participações do disco BUNMI, a "estreia" da rapper Stefanie, para se ter uma dimensão de sua relevância na cena. Com duas décadas de estrada, as aspas na palavra estreia não são por acaso, dada a trajetória da artista, um dos nomes mais relevantes do estilo, a potência de suas rimas e a impetuosidade de seu canto (que se alterna entre momentos de vulnerabilidade e de delicadeza, com instantes de pura crueza, visceralidade e de conexão com temas diversos, como, violência de gênero, racismo estrutural, luta de classes e desigualdades sociais). Um bom exemplo dessa tapeçaria que une rap e boom bap clássico (aquele estilo famoso nos anos 90), com algumas pitadas de soul, R&B e jazz, é o single Desconforto - um poderoso relato sobre preconceitos e violências (Nos tratam sempre como subalternos / Difícil aceitar ver um preto / Ocupando um cargo de liderança / Meu mano NP doutor / Evita usar terno no shopping / Pois sempre acham que ele é o segurança). Resistência, dor, perda, autocuidado, memórias, feridas, vitórias - tudo transformado em arte neste belo registro, que merece encontrar um público maior.

 

 


 

10) Congadar (Aprendi Com Meus Antepassados): "Dá licença sinhô / Com sua licença sinhá / Que o povo de Angola e de fé / Quer entrar na roda pra sambar / Peço pra chegar / Venho pisando devagar / Nesse terreiro de fé / Peço licença pra chegar". Como se fosse uma carta de apresentação, a comovente Dá licença, que abre o terceiro registro de inéditas dos mineiros do Congadar, resume o que encontraremos dali para frente no álbum. Espécie de manifesto cultural que une rock, psicodelia, samba e congada, a banda reforça, seja nas melodias, corais de vozes, batucadas ou nas letras, temas ligados à ancestralidade, afrofuturismo e espiritualidade. Melhor produzido do que o anterior, e mais cru, Chora N'Goma (2022), o disco valoriza as raízes negras e do terreiro, sem deixar de celebrar as conquistas. Especialmente em um cenário atual, de permanente luta e resistência. "E se a gente não pode falar, quem vai poder? É a gente que está com o microfone na mão e não é simplesmente levar um som pros outros. Não, não. A gente está com o microfone na mão para trazer todo mundo para perto", comentou Marcão Avellar em entrevista ao Scream & Yell. É música que não é só pra ouvir, mas também pra sentir - como comprovam as lindas Semente Raiz e Promessa ao Gantois.

 

 


 

9) YMA (Sentimental Palace): "Quero que as pessoas sintam o Sentimental Palace enquanto um lugar: a decadência do hotel, a umidade, as cortinas, os detalhes". A frase dita à Revista Noize pela paulistana YMA, resume o sentimento geral trazido pelo segundo registro de inéditas da artista. "É como no cinema: você está no escuro, diante de uma tela enorme, e de repente está vivendo aquela história. Por isso, penso o disco quase como uma espécie de filme sonoro", afirmaria na mesma entrevista. E basta dar play na faixa-título, que abre o álbum, para que sejamos transportados pra esse universo onírico, enfumaçado, de certa estranheza teatral - uma coisa meio de filme alternativo -, com a mistura de dream pop, psicodelia, eletrônica minimalista e rock experimental formando a imagem ideal para essa narrativa visual. Nada é óbvio aqui, com os estilos se alternando, bem como as melodias - guiadas por sopros, cordas, sintetizadores e efeitos diversos. Mágico (Fritar na Areia), suave (2001), vulnerável (Passageira S.), etéreo (Dentro de Mim), esse é aquele tipo de registro que, ao misturar Cate Le Bon, Mercury Rev, Kate Bush e David Bowie, desafia o ouvinte, ainda que fale com profunda sensibilidade de sentimentos demasiadamente humanos. 

 

 


8) Vanguart (Estação Liberdade): Vamos combinar que existem algumas bandas que nos acolhem de forma tão afetuosa, que parecem um velho amigo que já não vemos há algum tempo, mas que a gente sabe que estará ali para quando precisar. E esse parece ser o caso do Vanguart que, com mais de vinte anos de carreira, retornou após uma pausa pós-pandêmica para entregar aquilo que eles fazem melhor: uma coleção de canções pop, indie e folk de refrãos assobiáveis, unindo passado e futuro, e propondo reflexões existencialistas sobre amores (bem ou mal resolvidos), luto, amizades, recomeços, sonhos e a complexidade do dia a dia. Pode parecer simples, mas uma música como a comovente faixa-título, que abre o registro, funciona não apenas como a clássica história de paixão, dor e cura, mas como uma experiência nostálgica e primaveril sobre idas e vindas, começos e fins e chegadas e partidas (um tipo de alegoria que permeia todo o disco) - o que conecta o ouvinte de imediato, transformando feridas e inquietações em uma ponte para o movimento. O resultado são canções maduras e de títulos quase autoexplicativos, como, A Vida É Um Trem Cheio de Gente Dizendo Tchau, Rodo o Mundo Todo no Meu Quarto, Rua do Passado e Se Quiser Seguir Comigo. Todas ótimas, aliás.

 

 


 

7) Marina Sena (Coisas Naturais): Menos autotunes enfadonhos, efeitos eletrônicos previsíveis, forçação tiktoker e latinidade plastificada e mais brasilidade, mais bucolismo, mais interior e mais vida real. Vento batendo no rosto, estrelas nítidas no céu, uma varanda e o retorno às origens. Sim, desde o cru De Primeira (2021), Marina Sena nunca deixou de ser uma das mais autênticas artistas da atualidade, por mais que o trabalho seguinte, Vício Inerente (2023) parecesse um registro menos criativo. Só que qualquer incerteza se apaga no ótimo Coisas Naturais. Em entrevistas, a cantora explicou ter sentido falta dessa Marina mais sangue no olho, mais destemida, mais corajosa. Levando em conta o conceito de Florestania, cunhado por Ailton Krenak, a artista converte o disco em uma verdadeira coletânea de canções que mesclam estilos diversos, como MPB setentista, funk, reggae, brega, bedroom pop e reggaeton, preservando o contato com a natureza e com o místico. Peça central do trabalho, o single Numa Ilha, parece resumir a ideia já na abertura, com uma experiência sensorial de sonoridade misteriosa e letra calorosa (Descalça numa ilha, é tão mágico / Você dizendo que me ama / A Lua refletindo o mar, o seu cheiro / A gente junto na minha canga). Claro, há outros grandes instantes, como em Anjo, Mágico e Lua Cheia. Marina está na melhor fase.

 

 

 

6) Terno Rei (Nenhuma Estrela): Quem acompanha a carreira do Terno Rei já se acostumou com a sua música de ambientação urbana, cinzenta, de final de tarde em meio aos prédios altos e as calçadas ásperas - o tipo de sentimento palpável, que emana da sonoridade nostálgica e melancólica. Sim, a impressão que dá é a de já termos ouvido essas músicas antes - nas madrugadas das rádios alternativas ou em algum lugar na transição dos anos 80 e 90, pra quem viveu ali a juventude. As referências são quase óbvias, indo de Smiths e The Cure a Phil Collins e Radiohead -, sempre com uma guitarrinha pulsante e letras urgentes a respeito de dores cotidianas ou sofrimentos mal curados -, o que jamais significa falta de personalidade. Com um conjunto de canções perfumadas por sintetizadores enevoados, bateria frontal e refrãos nunca óbvios, o quarteto paulistano capitaneado por Ale Sater mostra maturidade e segurança neste quinto registro de inéditas, o que pode ser comprovado nas ótimas Nada Igual, Próxima Parada e Programação Normal. Já Casa Vazia brinca com a ideia por trás da solidão de um bicho de estimação - no caso um cãozinho e seu eterno estado de espera (Dessa casa vazia / Sou protetor / Isso é tudo que tenha pra dar). "Fico muito feliz em ver como nossa música consegue tocar as pessoas e acompanhar fases da vida delas", afirmou Ale. Os fãs agradecem. 

 

 


 

5) FBC (Assaltos e Batidas): "Está no ar, está no ar! A Voz da revolução!" É na quarta faixa de Assaltos e Batidas, o celebrado retorno de FBC ao rap, que parece estar parte da centralidade das ideias do disco. Sim, ainda que não haja nada em O Capital que verse sobre "realizar um boombap potente sobre luta armada, clandestinidade e resistência" a canção funciona não apenas como uma câmara de eco do atual momento político brasileiro - com a extrema direita sempre espreitando pelas frestas -, mas como uma lembrança de que as vozes marginalizadas ainda precisam brigar para serem ouvidas (Trabalhadores lutem!). As ideias sobre desigualdade social e de exploração se espalham por outros instantes do registro, e até na mesma música (A classe dominante no poder quer nos matar / Mas não vamos morrer, não vamos correr / Trabalhadores, o que vamos fazer? / Vamos tomar o poder!), com as batidas pesadas e secas, que foram marcantes na década de 90, formando a base perfeita para as rimas vigorosas e para o flow cheio de cadência. Os comentários sobre adoecimento no trabalho (Você Pra Mim É Lucro), vigilância constante (Estamos Te Vendo) e violência policial na "guerra às drogas" (Me Diga Quem Ganha) tornam o registro um manifesto urgente sobre exploração, alienação e crítica ao capitalismo.

 

 

 

4) Luedji Luna (Um Mar Pra Cada Um,): Vamos combinar que não é preciso nem concluir a audição da instrumental Gênesis - que abre o quarto disco da baiana Luedji Luna -, para que saibamos estar diante de algo que não é apenas música. A cacofonia que aparenta ser excessivamente caótica e que une de forma meio torta sopros, piano e baixo revela um paradoxo, já que reserva ao ouvinte um tipo de acolhimento - por mais estranha que a canção soe. Uma experiência sensorial que faz com que adentremos de forma lenta nesse universo complexo, sofisticado e íntimo, que nos absorverá pelos próximos quarenta e poucos minutos. "Eu percebi que o som é potente. O som mobiliza a gente de várias maneiras. Ele é transformador, ele é curativo, ele altera a consciência, ele altera a nossa psique. Ele, enfim, altera até questões mesmo físicas", explicou em entrevista para o Tenho Mais Discos Que Amigos, como que resumido o conceito do registro. O resultado são músicas preenchidas por metáforas oceânicas, aquáticas, em que memórias, encontros e lugares se espalham em instantes de vulnerabilidade, mas também de força. O que pode ser percebido em joias como Kyoto (Meu coração é uma bussola, me diz onde é que te encontro) ou na irresistível Harém (Na boca da noite o vento me trouxe notícia velha), que tem participação de Liniker. Pra colocar no repeat até dizer chega.  

 

 

 

3) Teago Oliveira (Canções do Velho Mundo): Que o Maglore é uma das melhores bandas nacionais da atualidade, não chega a ser novidade. Portanto, não há surpresa no fato de a carreira solo do vocalista Teago Oliveira preservar a capacidade de fazer música pop de qualidade, perfumada por melodias ensolaradas e um clima geral otimista. Mesmo quando as letras conectam passado e futuro, soando profundas, reflexivas, melancólicas ou nostálgicas, Canções do Velho Mundo funciona quase como um respiro em tempos tão apressados, tão tecnológicos e tão pautados por likes ou cliques. Caloroso e de sonoridade primaveril - às vezes soft rock, noutras MPB e eventualmente indie folk -, o álbum parece contemplativo em alguns instantes, como na sofisticada Desencontros, Despedidas (Diga que o tempo não volta e não dá pra parar / Diga que sente minha falta e não vai aguentar) e mais urgentes em outros, como na contemporânea e romântica Eu Nasci Pra Você (Os nossos chefes hoje são computadores / A ignorância está ficando imbatível). Há uma clara evolução em relação à estreia com Boa Sorte (2019). O leque parece mais amplo, ainda que artesanal, com o resultado sendo um sem fim de canções irresistíveis, como Spaceships, Vida de Bicho e Não Se Demore.

 

 

 

2) Negra Li (O Silêncio Que Grita): Basta uma passada de olhos não apenas na imagem de capa, mas também no título do álbum mais recente de Negra Li, para que saibamos: esse é mais um registro que busca dar voz a quem, muitas vezes, é silenciado. Aliás, esse costuma ser também parte do papel de artistas do gênero: o de ecoar vozes vulneráveis, marginalizadas, especialmente nesse caso o de mulheres pretas, pobres, de periferia. Em entrevistas, a própria paulistana afirmou que precisou se reinventar para buscar sua essência. O resultado é um conjunto de músicas de temas diversos, como, violência policial (Olha o Menino 2.0); hipocrisia e vidas de faz de conta (Fake); estupro, aborto e outros tipos de agressões sexuais (Uma Menina) e trabalho e direito ao lazer (Sambando). Claro que, para além dos assuntos políticos e sociais, o álbum também abre espaço para a celebração, como no caso de Abençoada, um afrobeat saboroso a respeito do poder da fé e da superação ou mesmo Amor Preto, essa com a participação da Liniker, e que também é embalada por ritmos africanos. Aliás, curioso notar como a segunda metade do registro é justamente aquela de tintas mais festivas, como no caso, por exemplo, de África, um reggae ondulante, de refrão pegajoso e cheio de referências culturais e de orgulho racial, que fecha com perfeição um dos grandes discos desse ano. 

 

 


1) Don L (Caro Vapor II - Qual a Forma de Pagamento?): Em entrevistas, Don L chegou à dizer que uma de suas influências é o cinema do diretor Wong Kar-Wai. E, por mais estranha que possa parecer essa referência frente a um som tão culturalmente diverso e brasileiro como o do artista, o estilo do realizador de Amores Expressos (1994) e Felizes Juntos (1997) - entre o urbano e o onírico, entre a dureza do concreto e o corre do dia em meio a sonhos cintilantes, distópicos, românticos e sensuais - parece fazer todo o sentido quando ouvimos canções engenhosas como saudade do Mar. Feita em parceria com Alice Caymmi e Iuri Rio Branco, a música evolui de forma ondulante, unindo rap com pitadas de reggae e MPB, enquanto a letra que contrasta cotidiano e desejo de fuga parece saída de algum filme exibido em festivais alternativos (A fumaça sangra pelas persianas contra a luz vermelha / Como num submarino em chamas / Entre um cabaré na estiva e a neblina de um céu alugado / Eu quero dizer te amo e no teu sonho ser canção de rádio). Recheando o registro de um sem fim de referências culturais, samples pouco conhecidos, participações, interpolações e uma energia enfumaçada, Don L constroi um mosaico tropical, que mescla samba, funk, soul e R&B de de forma inventiva, entre o profundo e o acessível, o original e o nostálgico. É música orgânica, real, um verdadeiro manifesto contra a mesmice, como atesta para Kendrick e Kanye. Pra ouvir várias vezes até conseguir assimilar tudo. De preferência com a aba "pesquisar" aberta.