terça-feira, 2 de dezembro de 2025

30 Melhores Discos Internacionais de 2025

Sério, não sei se eu que fiquei empolgado demais com esse 2025 musical, mas a meu ver talvez seja um dos melhores anos em matéria de lançamentos de discos, sei lá, da última década. O que torna a tarefa de selecionar os nossos 30 melhores - que nunca são os melhores, de fato, até porque esse é um conceito subjetivo -, ainda mais difícil. Teve um dia em que cheguei a enviar uma mensagem para um amigo, dizendo que até de bandas que não esperávamos nada, estavam entregando trabalhos de fôlego - como exemplo posso citar o caso do Lumineers, que sempre foi um grupinho meio insosso e que adicionou boa dose de qualidade ao seu folk pop com Automatic. O mesmo valendo para artistas que não davam as caras há décadas, e que retornaram não apenas para cumprir tabela, como no caso dos britânicos do Pulp, e de seu imperdível More.

 


No mais, as listas aqui do Picanha costumam se guiar muito pelo coração. Em como a música, enfim, nos toca - não apenas no que diz respeito às melodias, mas também no que se refere às letras. E, em muitos casos, pode ser um exercício um tanto complicado tirar o tempo para colocar os fones de ouvido, desconectar de todo o entorno, e ouvir o que a Rosalía ou o Nourished By Time têm a dizer (e eles têm muito, com certeza). Claro que entre artistas mais cabeçudos, como a Ethel Cain, e outros mais pop - que me perdoem os haters, mas o disco da loirinha tá um espetáculo -, o ano se encerra com aquele ar mais otimista, mesmo em meio à guerras, à crises ambientais e a uma sobrevida dessa extrema direita torpe. O que faz com que a gente possa ouvir álbuns como o ótimo Mayhem, da Lady Gaga, sem nenhuma culpa. Mas bora lá pro que interessa. Eis os nossos 30 mais...

 ...mas antes, o ano foi tão espetacular que resolvi abrir uma raríssima exceção de colocar vinte menções honrosas que, muito bem, poderia figurar na relação oficial. Até porque essa lista se modifica toda a semana, conforme vão os ventos e a vontade de ouvir este ou aquele artista. Mas vamos lá para os vinte álbuns que, por um milésimo, não estiveram no bolo final: Rochelle Jordan (Through The Wall), Sudan Archives (The BPM), Yaya Bey (Do It Afraid), Alex G (Headlights), Blood Orange (Essex Honey), Wednesday (Bleed), Lola Young (I'm Only F**king Myself), Laufey (A Matter Of Time), Cate Le Bon (Michelangelo Dying), Mamalarky (Hex Key), Quadeca (Vanisher, Horizon Scraper), Sigrid (There's Always More That I Could Say), Japanese Breakfast (For Melancholy Brunettes & Sad Women), Olivia Dean (The Art Of Loving), Addison Rae (Addison), Amaarae (BLACK STAR), Natalia Lafourcade (Cancionera), Viagra Boys (Viagra Boys), Maren Morris (D R E A M S I C L E) e Geese (Getting Killed).


 

30) The Lumineers (Automatic): Vamos combinar que nem o fã mais ardoroso da dupla Lumineers poderia imaginar que Automatic seria o melhor disco da carreira. Mas o caso é que talvez seja. Em entrevistas, a banda chegou a comentar de que as pessoas se surpreenderiam com o novo trabalho - e com o novo direcionamento, que dá as canções um maior preenchimento, um volume que não parecia tão presente no passado. Claro, não há nenhuma reinvenção da roda e sim um acréscimo de elementos que parecem dar mais cor para o folk pop do duo. Um bom exemplo pode ser percebido em Plasticine, uma canção cheia de camadas, que não faria feio em um disco do Travis da fase The Boy With No Name. Em geral, as músicas são construídas tendo como centro o refrão, que quase sempre permite ao fã cantar junto. Já os temas costumam variar de reflexões sobre rotina e vazio (Automatic), passando pela dependência emocional (Keys and the Table) até chegar as inseguranças envolvendo as relações e a aceitação das próprias falhas (Asshole). Perdas, conexões, dilemas cotidianos. A gente parece meio anestesiado. E um trabalho como esse, tão cheio de vulnerabilidade e beleza, nos ajuda a reconectar.

 

 


29) Nao (Jupiter): Basta uma olhada rápida nos títulos de algumas das faixas do quarto álbum de inéditas da britânica Nao - Happy People, Light Years, Better Days, We All Win -, para que tenhamos certeza: os tempos mais sombrios e desesperançosos talvez tenham ficado para trás. E não é que a artista, que faz aquela mescla sensual da R&B, pop e eletrônica, fosse excessivamente soturna antes, mas o caso é que Jupiter é mais solar do que nunca. É como uma luz no fim do túnel. Diagnosticada com Síndrome da Fadiga Crônica e sofrendo com um rompimento amoroso na época de Saturn (2018), a cantora ainda teve de reunir forças para lançar And Then Life Was Beautiful (2021), na esteira da pandemia. Nesse sentido, o recente registro mira (e acerta) na esperança. Nostálgico e cheio de personalidade, o trabalho de essência dançante aposta em sintetizadores divertidos e batidas iluminadas, que servem de base para canções eufóricas, como Wildflowers, além da já citada Happy People, que bebe na fonte do afrobeat, enquanto versa sobre o valor do senso de comunidade e a respeito de conexões com aqueles que importam (Eu encontrei meu povo / Vivendo como pessoas felizes). Sério, vale a pena prestar atenção.

 

 


28) Ethel Cain (Willoughby Tucker, I'll Always Love You): Vamos combinar que existem alguns discos que demoram pra ser absorvidos em sua totalidade. Que exigem mais de uma audição - em muitos casos cinco, seis, oito repetições. Até mais. E, ainda assim, a cada novo encontro será uma descoberta. É algo que vai meio que na contramão do consumo moderno de música, pautado por canções curtas que possam render dancinhas viralizantes no Tik Tok. E esse é justamente o caso de Ethel Cain com esse panegírico intitulado Willoughby Tucker, I'll Always Love YouFuncionando como uma continuação de Preacher's Daughter (2022), Willoughby adota o mesmo estilo elegíaco, quase etéreo, ao contar uma história ficcional e trágica de amor, que percorre cada fragmento do álbum. Alternando momentos de versos profundamente emocionais e de grande vulnerabilidade, como em Nettles, com instantes de puro deleite instrumental, caso de Radio Towers, Cain entrega um registro flutuante, cru e vertiginoso sobre a sensação nauseante de se apaixonar. É um disco de vibrações sombrias que emergem de cordas e pianos atmosféricos. Mas também de estranho acolhimento em meio à dor. 

 

 


27) Lily Allen (West End Girl): De Mariah Carey, com Butterfly (1997) à Beyoncé, com Lemonade (2016), passando, claro, pela Taylor Swift, com Red (2012), não foram poucas as artistas que buscaram uma espécie de catarse emocional em formato de disco, na hora de lidar com términos, traições ou relações turbulentas. E, vamos combinar que, se não for um trabalho bem pensado, o resultado pode ser apenas cringe - o que, definitivamente, não é o caso da Lily Allen, com o espetacular West End Girl. Aqui, a artista não apenas utiliza seus versos cheios de ironia e deboche como uma forma de exorcismo em relação ao tumultuado relacionamento com o ator David Harbour (sim, o policial de Stranger Things), como ainda converte a experiência em uma verdadeira coletânea de música pop vibrante, magnética e calorosa - como no caso de Ruminating ou Tennis. Aliás, essa última uma faixa sobre algo muito mais íntimo do que o sexo em si - onde já viu jogar tênis com a outra? Com uma capacidade única de tornar bela a dor, Allen abusa de duplos sentidos e de frases de impacto em canções como Relapse (que poderia ser sobre vícios ou relacionamentos) e Pussy Palace que, com seu inacreditável e autoexplicativo título, é uma experiência onírica, quase celestial sobre um sujeito viciado em sexo. Sério, é tudo muito bom.

 

 


26) Dijon (Baby): Se tem uma coisa que nunca deixa de impressionar no segundo disco de inéditas do compositor, produtor e multi-instrumentista Dijon, é o quanto o registro parece de expandir a cada nova audição - ao mesmo tempo em que também se apresenta como um trabalho bastante íntimo, caseiro e carregado de afeto. Aliás, o título Baby não é por acaso, já que o álbum tem a ver sim com as mudanças em sua própria vida pessoal com a paternidade e, consequentemente, com as novas responsabilidades da vida doméstica - o que já pode ser percebido na sinuosa faixa título, em que ele entoa os versos num estilo vocal que soa como um Lenny Kravitz do mundo alternativo (Então eu toco sua barriga / Cerca de um milhão de vezes / Quanto tempo até você chegar?). O expediente se repete em outros momentos onde o cantor consegue soar experimental e pop em igual medida, nunca tornando suas melodias óbvias. O resultado é uma sonoridade que empurra o R&B e o soul para os limites da distorção, alternando momentos de vulnerabilidade (HIGHER!), sensualidade (Freak It) e de temores em relação ao futuro (Rewind). Dijon constroi aqui uma tapeçaria ruidosa mas sofisticada, íntima porém universal - ao mesmo tempo de impulsiva, prazerosa e intensa (como na ótima Yamaha).

 

 

 

25) Little Simz (Lotus): Vamos combinar que o título do sexto disco de inéditas da britânica Little Simz, meio que dá a dica, já que a flor de lótus costuma estar associada ao renascimento e à renovação. E, após um período turbulento que envolveu não apenas de certa fadiga criativa, mas também a ruptura com o produtor Inflo - seu colaborador de longa data -, a alegoria dessa planta resiliente, que desabrocha até mesmo em locais inóspitos, parece mais do que perfeita. O que pode ser percebido na ferocidade das melodias, dos versos e do vocal cheio de intensidade - que convertem dor, frustração e sentimento de traição, em arte. Nesse sentido, canções como a inaugural Thief (Me fazendo sentir que eu era a convidada / Mas fui eu quem pagou pelo gato) e a sequência com Flood (Não confie em todas as mãos que você aperta) funcionam como uma espécie de carta de apresentação que expressa com absoluta sinceridade sentimentos como raiva e indignação. Misturando hip hop, jazz, soul, funk e R&B, a artista converte Lotus em uma experiência catártica tão vulnerável quanto esperançosa - o que pode ser percebido em momentos aconchegantes, como na sequência que envolve Peace e Free (esta última uma joia sofisticada a respeito do poder do amor como caminho para a libertação).

 

 


24) Sam Fender (People Watching): Em uma passada rápida em fóruns de discussão online sobre a obra do britânico Sam Fender, não é incomum encontrar comentários no estilo "essa é a melhor música do Bruce Springsteen já feita". Em linhas gerais essa análise poderia minimizar o impacto do artista, mas a verdade é que se trata de um grande elogio. Afinal, replicar o Boss naquilo que ele tem de melhor, que é trazer o cidadão comum pro centro da narrativa, com suas lutas diárias, dificuldades econômicas, aspirações frustradas e uma falta de esperança meio generalizada, e ainda fazer tudo isso com uma dose cavalar de personalidade, não é pra qualquer um. Em seu terceiro disco de inéditas, Fender pareceu condensar todas essas angústias da era moderna - com guerras, crises migratórias, tecnologia desenfreada e avanço da extrema direita -, em um registro quase cinematográfico da pequena cidade, tudo com aquela pegada de rock mais direto, de guitarras limpas e um tom épico meio geral (pra todo mundo cantar junto). O resultado são verdadeiros hinos políticos, como, por exemplo, a linda Crumbling Empire, que utiliza a imagem de uma cidade decadente, como uma alegoria para os anos privatizantes e de cortes do governo Thatcher, que até hoje massacram as classes mais baixas. Essencial.

 

 


23) Perfume Genius (Glory): Aparentemente a "temporada da feiura" ficou pra trás. Ao menos em tese, já que o sétimo registro de inéditas de Mike Hadreas como Perfume Genius, pouco lembra o hermético e pouco palatável Ugly Season, de 2022 - e que interromperia, ao menos de forma momentânea, a gradual aproximação do artista de uma sonoridade mais acessível, nostálgica e primaveril. É claro que neste trabalho os temas recorrentes do compositor - medos pós pandêmicos, isolamento e identidade queer - surgem iluminados por sintetizadores suaves e um certo minimalismo no todo, que parecem jogar algum tipo de luz sobre a escuridão. Um bom exemplo nesse sentido pode ser percebido justamente na inaugural It's a Mirror, que abre o registro. "Essa é uma canção sobre se sentir sobrecarregado, ou se sentir verdadeiramente mortal ou frágil" resumiu à Stereogum. Em outras faixas, como no single Clean Heart, o medo das mudanças e o senso de finitude dão o tom (O tempo, ele faz um coração limpo / Quando você está a quilômetros de distância de tudo). Soturno, delicado, melancólico, sobrenatural, grandioso. O Perfume Genius segue colocando beleza na esquisitice do mundo. 

 

 


22) TOPS (Bury the Key): Vamos combinar que esse ano foi tão impressionante do ponto de vista musical, que até aquelas bandas que não chamam muito a atenção, pareciam empenhadas em entregar o seu melhor lançamento em anos. E foi justamente esse o caso do TOPS e de seu quinto registro de inéditas. A capa, de tintas meio sombrias, pode até enganar os ouvintes desavisados, mas o que o grupo capitaneado por Jane Penny faz, aqui, é arredondar ainda mais o seu sophisti-pop etéreo, deixando-o ainda mais limpo, mais acessível. Claro que os trabalhos anteriores nunca foram aquele exemplar de som garageiro, mas aqui temos uma banda tão iluminada, que singles como ICU2 não fariam feio em algum disco do The New Pornographers. Em linhas gerais é até meio divertido ver canções de títulos potentes como Falling on My Sword - que parece saída de algum disco de love metal dos anos 80 -, fazendo de conta que há um peso a mais de guitarra, que nunca chega a se converter em um abalo roqueiro de fato. Até mesmo porque a natureza do TOPS sempre foram as canções pegajosas, de sintetizadores primaveris e guitarras arejadas, como no caso de Chlorine e Mean Streak.

 

 


21) Bon Iver (SABLE, fABLE): Desde que entregou ao mundo o elogiado Bon Iver, Bon Iver (2011), Justin Vernon estabeleceu sua sonoridade como uma espécie de sinônimo para melodias invernais (mas calorosas), de tintas introspectivas, delicadas, que pareciam crescer mesmo em um cenário minimalista. Elogiado pela crítica, o artista se viu estimulado a expandir sua música para além dos limites do folk econômico, que parecia saído de uma temporada de solidão no meio da floresta. O que não mudou? O desejo de construir canções sofisticadas, de arranjos sublimes e letras repletas de divagações fantasmagóricas, que nem sempre são facilmente compreensíveis. Talvez um pouco mais expansivo do que em outros trabalhos, o artista conecta pontos geográficos, estradas e espaços para uma série de reflexões sobre a necessidade de aceitar mudanças (AWARDS SEASON), a respeito da alegria de estar vivo (Everything Is Peaceful of Love) ou mesmo sobre o simples fato de chegar em casa e ter alguém pra amar (Walk Home). Há um aconchego no todo, mesmo quando há alguma estranheza. O peso emocional e a vulnerabilidade seguem como marcas. Mas há espaço para que os raios de sol apareçam. 

 

 

20) The Beaches (No Hard Feelings): Vamos combinar que, até pra fazer música bobinha, é preciso ter personalidade. Sim, porque se relacionamentos falhos, incertezas românticas ou paixões arrependidas costumam ser a matéria-prima ideal para uma banda de power pop festivo ainda na flor da idade, não tem porque ela ser apenas óbvia. Afinal, a gente pode até já ter ouvido essa guitarrinha acelerada antes, a bateria urgente e o estilo vocal meio Sleater Kinney tomando uma ducha de doçura, mas em 2025 ainda dá pra ser descolado, divertido e levemente anárquico dentro do estilo - como comprovam as meninas do The Beaches em seu terceiro registro de inéditas.Talvez esse seja mais um disco que não recebeu a devida atenção nesse ano. Mas quem se aventurar, dificilmente não abrirá um sorriso nostálgico frente a músicas envolventes e cheias de refrãos, como, Fine, Let's Get Married, Touch Myself ou Can I Call You In the Morning? - está última uma peça mal humorada, mas engraçadíssima, a respeito de uma relação tóxica em que os sentimentos de amor e ódio parecem andar lado a lado (Eu gostava da sua antiga banda, mas não das novas músicas / Devemos terminar então?).

 

 

19) Amber Mark (Pretty Idea): Em seu segundo registro de inéditas depois do espetacular Three Dimensions Deep, nosso primeiro colocado na lista de 2022, Amber Mark retorna com certa confiança suave, que só quem já entendeu os próprios limites (da era e do corpo) consegue entregar. O disco parece caminhar numa linha tênue entre o hedonismo das pistas e a introspecção do fim da noite, sem nunca deixar a sensação de que há algo profundamente humano costurando tudo. É pop, R&B e soul dançante, com tudo soando como um abraço daqueles que a gente aceita sem pensar muito. O que mais chama a atenção aqui é o modo como a artista organiza texturas: batidas elegantes, linhas de baixo que serpenteiam e uma produção que nunca tenta se impor. Faixas essenciais como Let Me Love You, Sweet Serotonin e ooo (a melhor do registro) fluem sem pressa, entre o calor e o aconchego. Há sempre um detalhe, seja um vocal sussurrado ou um sintetizador que entra só na metade, que segura o ouvido e acende aquele sorriso discreto de quem percebe que está ouvindo alguém no auge criativo. No fim, Pretty Idea é justamente isso: uma ideia bonita que se transforma em carne, ritmo e corpo. Um disco que não tem medo de ser delicado, mas também não teme o brilho. 

 

 

18) The Loft (Evertything Changes Everything Stays the Same): Vamos combinar que a gente chegou num ponto do consumo cultural que é tanta oferta que se torna meio que impossível não pensar que estamos deixando escapar algo. Sim, da série hypada ou da trend do Tik Tok do momento, passando pelo disco mais aguardado da estrela pop, muita coisa fica pelo caminho - e acho que esse é justamente o caso dessa estreia (!) carismática dos britânicos do The Loft, que me encantaram com as guitarrinhas perfumadas, os refrãos grudentos e as letras bem humoradas e irônicas, num estilo que mais parece uma mistura de Spoon com Real Estate. Apesar de serem anteriores a esses - o grupo existe há mais de quatro décadas e, sabe-se lá por quê, nunca tinha tido um álbum pra chamar de seu (e vai ver em 1985 isso aqui pareceria meio deslocado mesmo). Bom, o álbum chega anos depois em um período em que toda a música do planeta já parece ter sido feita. Nesse sentido, como emergir da bolhazinha alternativa para alcançar um nicho maior? Talvez o The Loft nem saiba direito. Mas enquanto isso, eles nos divertem com essa sonoridade pop retrô, primaveril e grudenta que embala as candidatas a hit Feel Good Now, Dr. Clarke, Somersaults e The Elephant. Vale o play.

 

 

17) Annahstasia (Tether): "Talvez eu seja uma moralista / Uma anticapitalista / Que vende seus sonhos por grana / Pra comprar seda e veludo". Pesquisando um pouco sobre a história da Annahstasia eu achei curioso que, próxima dos 30 anos de idade, e com essa voz de veludo de Tracy Chapman moderna, ela estivesse lançando apenas o seu primeiro disco. Mas as coisas logo ficaram claras: assim que surgiu para o mundo ainda adolescente, ensaiando as primeiras canções, não demorou para que um grupo de empresários quisesse transformá-la meio que na marra na mais nova estrela da temporada. Uma daquelas cantoras de pop e R&B insípidas, que existem a rodo por aí, ideais para o consumo rápido - e para o esquecimento idem. Mas a artista tinha outros objetivos. Que parecem ficar evidentes nas letras bastante íntimas e quase explícitas, como no caso da ótima Silk and Velvet, que abre esse pequeno texto. Bater de frente teve seu ônus, mas também seu bônus, como parece ficar evidente na audição de Tether. Esse é um daqueles discos com alma, que pega o folk e o rock e converte-o em algo quase espiritual, meio místico.  Para colocar no repeat. E ir absorvendo aos poucos. 

 


16) Blondshell (If You Asked for a Picture): Admito, pra eu gostar de um disco de arrancada, preciso me conectar rápido. Duas ou três audições e já tem que surgir algo - um refrão pegajoso, uma letra certeira, uma melodia que cola. Talvez por isso o debut autointitulado da Blondshell não tenha me fisgado de imediato. Não que fosse fraco, como provam faixas ótimas como Salad e Sepsis, mas Sabrina Teitelbaum ainda parecia acuada e menos feroz, marcada pelos anos pós-pandemia e por traumas que carregava. Bom, o tempo passou e com If You Asked for a Picture, é como se a artista tivesse, enfim, desabrochado, soando mais madura, mais segura, o que reflete na sonoridade que se abre para além daquele rock country noventista. A cantora continua afiada ao falar de sexo, relacionamentos, pressões sociais e misoginia, mas com agora com mais estrada, como quem finalmente se reconhece no processo, cria essa ponte imediata com quem a escuta. Nesse sentido, músicas como What's Fair, Two Times - que parecem uma mescla de Best Coast com Cranberries - e, especialmente, 23's A Baby exalam personalidade com sua poesia torta e provocativa, que parecem sutis apenas nas aparências. Riqueza pura.

 

 


15) Pulp (More): Só o Pulp pra lançar um disco tão... Pulp em pleno 2025. E eu confesso que eu não estava preparado pra simplesmente gostar do álbum. Sabe aquele retorno que tu nem ouviu e já não gostou? A minha energia tava meio que nessas até o momento de ouvir More a primeira vez. A segunda. A terceira. Nesse momento eu já tava cantando junto o refrão grudento de Grown Ups, uma canção longa e gloriosa sobre amadurecimento, cheia de citações culturais e uma poesia que faz a gente navegar diretamente praquele climinha brit pop 90. Vinte e quatro anos se passaram desde o último registro de Jarvis Cocker e companhia e, bem, eles soam como se estivessem nisso há décadas (e a real é que estão). Mesclando a possibilidade de dar uns passinhos animados nos inferninhos alternativos, mas sem deixar de lado as letras provocativas e cheias de ironias sobre temas sérios como fanatismo religioso (Slow Jam), ou mundanos como amores platônicos e perturbados (Tina), a banda constroi um disco que surpreende pela vitalidade. Aliás, Got to Have Love tem uma das melhores frases do trabalho: Sem amor você está apenas se masturbando dentro de outra pessoa. O homem sabe das coisas.

 

 

14) Lorde (Virgin): Quando Lorde lançou o Solar Power (2021), a opinião da crítica e do público foi meio que unânime: o terceiro disco da neozelandesa parecia deslocado do seu tempo. Ainda mais depois do impacto de Melodrama (2017), nosso primeiro colocado na lista daquele ano, que permanece, com seu apelo à dança solitária e frenética no escuro, como um dos registros mais importantes da década anterior. E, bom, passado todo esse tempo chegamos à Virgin que é, com seus sintetizadores sombrios e letras bastante confessionais, um retorno às origens. Por mais batido que possa parecer esse conceito. E esse tipo de renascimento observado nas canções - cheias daquela melancolia movimentada, que funciona com fones de ouvido na madrugada do quarto, mas também em danças hipnóticas nos inferninhos da vida -, também dialoga com uma série de aspectos da vida pessoal da artista. O resultado é uma coleção de canções que já nascem com aquela cara de hino com refrãos pegajosos, como no caso de Man of The Year,  Favourite Daughter e Broken Glass. Visceral, sexy, adulto, mundano e totalmente conectado com os dilemas contemporâneos. Lorde sendo Lorde era só o que precisávamos nesse 2025.

 

 


13) tUnE-yArDs (Better Dreaming): Talvez um pouquinho menos agitado como no anterior sketchy. (2021), mas ainda o Tune-Yards que conhecemos bem. Aliás, taí uma banda que faz o seu trabalho direitinho e, em muitos casos, acaba passando meio fora do radar, sempre mesclando folk psicodélico e pop experimental, com influências de afrobeat, hip hop e eletrônica. Tudo a serviço das letras políticas, eventualmente alegóricas, em que os temas mais íntimos servem como metáfora para questões mais amplas. O que pode ser comprovado no ótimo single Limelight, canção de letra ambígua (O bebê está bem, as crianças estão bem), que conduz o ouvinte em meio a uma sonoridade sessentista, funky e quente, com batidas hipnóticas, vocais em loop e percussão pontuada por barulhinhos bem encaixados. Aliás, esse contraste entre as melodias festivas, primaveris e os versos potentes é uma marca registrada, como comprovam outros momentos de brilho no registro, casos de Heartbreak e Get Through, forte candidata a ser uma das músicas do ano. Provavelmente Better Dreaming passará batido em outras listas de final de ano. Mas faça um favor a você mesmo: não o ignore.

 

 

12) Taylor Swift (The Life of a Showgirl): Apenas por curiosidade resolvi abrir alguns fóruns online pra ver o que os ouvintes estavam falando sobre o décimo segundo disco da Taylor e confesso a vocês que fiquei impactado em como as pessoas levam a sério o trabalho da loirinha! De comentários maldosos sobre ela estar sendo uma paródia de si própria, passando por discursos moralistas a respeito das letras tardiamente safadas da artista (como em Honey) e críticas a um certo cansaço da imagem, até chegar ao auge de alguém dizer que ela só faz música pra atender o seu público, não seguindo seu coração, aparentemente tudo está em julgamento. Com o público, aparentemente, esperando que a artista seja uma espécie de baluarte da salvação da música em 2025. Mas, vamos combinar que talvez ela só esteja feliz, convertendo essa alegria de um novo amor em um disco cheio de petardos brilhosos pra cantar junto, como as ótimas Opalite, Father Figure e The Fate of Ophelia (esta última com citações à Shakespeare, pra quem tá sedento por profundidade). Não é todo o dia que a gente precisa de uma dissertação de Mestrado musical. Às vezes só queremos boa música pra lavar a louça em paz. É é o que temos aqui. 

 

 

11) Wolf Alice (The Clearing): Vamos combinar que, quando o assunto é a música alternativa, existem algumas bandas que são apostas certeiras. Daquelas que praticamente não têm como dar errado. E esse é justamente o caso dos ingleses do Wolf Alice. Mais maduros e, consequentemente mais preocupados com questões que dizem respeito aos trinta mais, o grupo capitaneado por Ellie Rowsell, nunca soou tão limpo. É como se o seu soft rock psicodélico, antes diluído em algum tipo de plasma que o deixava mais garageiro, mais sujo, agora tivesse passado por um polimento. Uma vontade pessoal de se aproximar de um público mais amplo? Talvez. Um bom exemplo desse expediente pode ser percebido na pegajosa Just Two Girls, que não apenas tem aquela pegada mais setentista e estrutura clássica de  estrofe e refrão, como ainda possui uma letra comovente sobre amizade entre duas mulheres, ecoando sentimentos de vulnerabilidade, julgamentos e inseguranças (Apenas duas garotas / Como duas crianças no parque / Aqui está o palco, você é a estrela). Mas há outros instantes de brilho, como em Play It Out Thorns, Bloom Baby Bloom ou White Horses, que crescem a cada audição.

 

 


10) FKA Twigs (EUSEXUA): Pode parecer meio estranho pensar que na mesma semana em que FKA Twigs recebeu a indicação ao Framboesa de Ouro por sua participação na releitura cinematográfica de O Corvo, ela lançou um dos melhores discos do ano - e que ambas as obras estão conectadas de alguma forma. Afinal, foi durante as filmagens da obra em Praga, que a artista passou a frequentar casas noturnas da capital da República Tcheca, com a vida da madrugada servindo de inspiração para um disco etéreo e hipnótico, com uma mistura moderníssima, enigmática e sensual de techno, trip hop, psicodelia, R&B e popEusexua, de acordo com a cantora, é um neologismo que descreve uma sensação de euforia tão intensa que transcenderia a forma humana. Estado de espírito palpável seja nas letras ambíguas e excitantes, como em Girl Feels Good (Quando uma garota se sente bem / Isso faz o mundo girar), nos vocais sussurrados e arfantes (Striptease) ou na produção limpíssima. Ao cabo, é sempre bom ouvir artistas que fogem do óbvio. E que não tem vergonha de misturar sexo, niilismo, vagabundagem, diversão, Ray of Light, Björk e violência no mesmo conjunto. É tesão, suor e lágrimas enquanto o mundo se despedaça.  

 

 

9) Billy Woods (GOLLIWOG): Uma espécie de "estética do desconforto", que visa tensionar questões de identidade, diáspora, trauma e sobrevivência - estabelecendo, ainda, diálogo direto com a herança colonial e com o uso de representações racistas como instrumento de poder, violência simbólica e apagamento cultural. Se fosse possível resumir (e não é) o denso trabalho do enigmático rapper Billy Woods ele iria mais ou menos por esse caminho. - e não é diferente com Golliwog, o nono disco de estúdio do artista. Como se fosse uma espécie de conto cinematográfico e surrealista ao mesmo tempo de horror e de humor, o álbum funciona como uma metáfora mais do que certeira do olhar distorcido que a sociedade projeta sobre corpos negros. Em resumo, uma crítica incisiva ao modo como esses estereótipos persistem nos tempos atuais - de avanço da extrema direita -, mesmo que de formas sutis. Violência doméstica (Waterproof Mascara, que ecoa o som de uma mulher chorando), distopias religiosas (Corinthians), afrofuturismo (Jumpscare) e tantos outros temas explodem em uma sonoridade fantasmagórica e sombria, com os versos espalhados surgindo lentos, mas cheios de potência. Tente ficar alheio à profusão de sentimentos evocados por STAR87. Difícil sair ileso.

 

 

8) Big Thief (Double Infinity): "Essa música surgiu como tantas outras, sem pensar muito". Vamos combinar que se fosse outra artista falando essa frase, que não a Adrianne Lenker, e ela poderia soar apenas presunçosa. Mas não é o caso da vocalista do Big Thief, porque é impressionante a capacidade dela - e de sua banda - de simplesmente produzirem grandes canções, sem que haja um grande esforço. Com o resultado sempre sendo uma coleção impecável de discos, que tem por marca aquele indie folk encharcado, meio diluído em névoa, que se torna gigante não pelo grande aparato tecnológico, mas sim pela sua total discrição. Tudo soa moderado, mas rigoroso. "É uma canção espiritual sobre fazer amor. É sobre tirar essa vergonha dos nossos corpos, do nosso sexo, da nossa cultura", comentou ao site inglês INews, a respeito de All Night All Day, a tal canção feita sem "muito pensar", que integra o Double Infinity. Ainda assim, é importante reiterar que simplicidade, nunca significa falta de brilho ou personalidade, como comprovam a ótima Incomprehensible (sobre o medo de envelhecer e a efemeridade da juventude) e a melodiosa Grandmother, que fica mais poética com a presença da cítara. 

 

 

7) Kali Uchis (Sincerely,): Sinceramente, Kali Uchis, te amamos. Acho que não há nada mais pra falar quando uma artista produz tanto e tão bem. Lançado um ano e meio depois do ótimo Orquídeas - nosso 12º colocado na relação de grandes discos de 2024 -, Sincerely, se apresenta como uma experiência evocativa, entre o cósmico, o onírico e o primaveril, numa mistura cheia de personalidade em que o R&B nunca parece óbvio, o soul é permanentemente sofisticado, o pop oitentista é refrescante e as tintas latinas se espalham pelas franjas com economia. Tudo executado com uma produção soberba, limpa, que se aproveita do vocal celestial de Uchis, para levar suas canções a um patamar mais alto, como se cantadas de cima, gerando uma sensação de conforto poucas vezes experimentada. Uchis foi mãe recentemente. E perdeu a sua própria mãe no começo desse ano, num desses paradoxos que parecem ideias para a arte. Nesse sentido, os temas de memória, dores, amores e incertezas existenciais se convertem na matéria-prima perfeita para um álbum que soa meditativo, e que vai crescendo a cada nova audição, como comprovam às belíssimas Heaven is Home..., Territorial, All I Can Say ou ILYSMIH

 

 

6) CMAT (Euro-Country): Já faz umas três temporadas que sempre que a CMAT lança um novo disco, ele vai imediatamente pras cabeças. Ninguém por aqui deu muita bola quando ela entregou, em 2022, o segundo melhor álbum daquele ano, mas agora tá com cara de que ela furou a bolha. Até porque na lista de melhores artistas da última semana que ninguém ouviu (mas já deveriam ter ouvido), poucos terão a capacidade única de unir letras debochadas - pontuadas por uma série de críticas e comentários sociais e políticos ácidos e cínicos -, com violões country e arranjos pop perfeitos como ela. Como em seus registros anteriores, esse é um disco de dor e de humor, que ri de si, mas que também examina as crises atuais com sincera confiança. Um bom exemplo dessa mistura pode ser percebido no sofisticado single Take A Sexy Picture of Me, que discute imagem e aceitação, a partir de uma experiência pessoal, em que a irlandesa sofreu uma onda de hate após um vídeo. Político mas cintilante, reflexivo mas agridoce, esse é um álbum que parece se expandir a cada nova audição. O que faz com que ótimas músicas como When a Good Man Cries ou  Running/Planning se tornem melhores a cada repetição! 

 

 

5) Lady Gaga (MAYHEM): Um disco de inéditas que mais parece uma coletânea que condensa tudo aquilo que a Lady Gaga entregou para os fãs ao longo de sua carreira: assim pode ser resumida a experiência com esse sensacional MAYHEM. Sim, a gente sabe que na era do "sou fã quero service" é meio chato o público ficar meio que ditando aquilo que o artista deve ou não fazer, mas o caso é que basta chegar na metade do hipnótico single Abracadadra, para nos sentirmos diante da Lady Gaga raiz. Gaga, que se apresentou no Brasil em maio, sabe fazer música pop dançante como ninguém afinal. Só que é importante dizer: esse aceno ao passado jamais significa obviedade. A artista nos convida pra dança, mas mostra a personalidade de sempre em faixas que flertam como outros estilos e subgêneros como o grunge eletrônico (Perfect Celebrity), o rock das rrriot girls (Garden of Eden), o funk de levada noventista (Killah), a inspiração na Taylor (How Bad do U Want Me, a minha preferida), o gótico (The Beast), a baladona romântica (Blade of Grass). Empoderado e celebratório, é um registro que só cresce conforme o ano se aproxima do final.

 

 


4) Benjamin Booker (Lower): Alguns discos são tão prazerosos de se ouvir, que mais parecem um abraço de alguém que a gente gosta. É uma sensação de conforto. De acalento. E essa pluralidade de sentimentos é exatamente o que ocorre quando escutamos o lindo Lower. Ao cabo, tudo é perfeito nesse trabalho, que inicialmente se destaca pelo estilo vocal sedutor e aveludado do artista - que funcionará como uma espécie de fio condutor de canções que se espalham em histórias suburbanas (e violentas), devaneios existencialistas e alegorias desconfortáveis e cômicas de uma forma meio torta. Sim, cômicas, como no caso de Rebecca Latimer Felton Takes a BBC, canção sobre sexualidade e racismo, que coloca o dedo na ferida da hipocrisia dos conservadores. Em linhas gerais as entrevistas de Booker e as próprias explicações sobre o significado de suas canções são pontuadas por tiradas bem humoradas, ainda que jamais ignorem a complexidade do fazer artístico - como no caso da perfeita Same Kind of Lonely, que é meio que a melhor canção do ano sobre solidão e o desejo de recomeçar em um outro lugar Neo soul, psicodelia sessentista, art rock e até bedroom pop. Está tudo lá, redondinho e irresistível.

 

 

3) Rosalía (LUX): Vamos combinar que, assim como ocorreu com o BRAT, em 2024, nesse ano o evento musical mais aguardado, comentado, viralizado foi o LUX, da Rosalía. Mas, preciso ser honesto com vocês: talvez o quarto registro de inéditas da artista espanhola não tenha o mesmo potencial de difusão rede afora, como no caso do disco da Charli XCX, mas, musicalmente, meus amigos, aí é AULAS! Porque, aqui, não temos apenas música pop contemporânea. É multiplicidade de gêneros, de estilos, de ideias, de culturas e até de mundos - físico e espiritual, terreno e divino, concreto e abstrato (numa dualidade que parece estar no conceito). Um pouco ópera ao piano, um tanto de cordas épicas e elevadas. Uma pitada de flamenco, outra de rap japonês, uma dose de uma eletrônica meio mística, que se junta a orquestração da música clássica - com todo esse conjunto funcionando muito bem no single Reliquia. Tudo no limite entre o divino e o profano, a fé e a carne. Quase como um ritual onde a música é muito mais trajetória do que chegada. Sim, honestamente é até difícil resumir, que não seja no modo "apenas ouça pra entender". Na dúvida comece pela divertidíssima La Perla, talvez a melhor música do ano.

 

 

2) Nourished By Time (The Passionate Ones): Paixão, fé, revolta política, falta de dinheiro, guerra, consumismo, lavagem cerebral. Vamos combinar que poucos artistas da atualidade mesclam tão bem as experiências pessoais - que envolvem dificuldades financeiras, incertezas sobre o futuro e até a análise do poder transformador da arte -, com questões mais amplas sobre as falhas do capitalismo tardio e sobre ser uma minoria nos Estados Unidos, como o Nourished by Time. Com um elogiado disco de estreia na bagagem, Erotic Probiotic 2 (2023), Marcus Brown evolui ainda mais na coesão entre R&B experimental, bedroom pop e neo soul, em um projeto cheio de vigor, com seu vocal espectral se mesclando à sintetizadores sedutores, pianos levemente caóticos e cordas estranhas. Em linhas gerais é um tipo de som até meio difícil de definir. A um amigo, comentei que a coisa toda lembrava uma junção do TV on the Radio com o Jamie XX - especialmente no componente da estranheza, com melodias que olham para o futuro, mas também honram o passado, como no caso da sofisticada 9 2 5, que tem um quê meio Chaka Khan. Enfim, um discaço de um artista com alma, que veio para ficar.

 

 

1) Joy Crookes (Junipero): Acho que o disco que mais me impactou na lista daqueles que ninguém ouviu em 2025 foi esse Junipero da Joy Crookes. Sabe aquele álbum que é exatamente aquilo que você precisa em certo momento? Que conecta imediatamente com, sei lá, a alma? Foi o que me ocorreu quando ouvi esse desfile de canções sofisticadas, que fundem R&B, jazz e pop adulto contemporâneo, com um pezinho no trip hop. Tudo empacotado pela voz aconchegante da artista, que parece ficar perfeita não apenas como trilha sonora noturna, daquelas que percorre os bares mais interessantes, mas também para o dia levemente ensolarado, talvez à beira de uma piscina, com um drink à mão. O resultado são verdadeiras obras-primas da música moderna, como a irresistível e acetinada Pass the Salt, feita em parceria com Vince Staples. Já a deliciosa Carmen, interpola Bennie & The Jets, do Elton John. Mas, sinceramente, pessoal, aqui é até difícil falar de músicas em específico, porque tudo é perfeito demais. First Last Dance, Somebody to You, Mathematics, House With a Pool, Mother, enfim, é até complicado selecionar aquela que se destaca. Tudo é destaque, afinal. Só dê o play. De nada. 

segunda-feira, 1 de dezembro de 2025

Novidades em Streaming - Sonhos de Trem (Train Dreams)

De: Clint Bentley. Com Joel Edgerton, Felicity Jones, William H. Macy e Clifton Collins Jr. Drama, EUA, 2025, 103 minutos

[TEXTINHO COM SPOILERS DE LEVE

Sonhos de Trem (Train Dreams) é aquele tipo de filme que consegue extrair poesia em meio à brutalidade. Que pode ser afetuoso, mas dolorido. Plácido, mas duro. Aliás, mais ou menos como é o mundo. E, talvez, mais ainda como era o mundo no passado, na época da expansão dos Estados Unidos para o Oeste, com suas construções, ferrovias, trabalhadores braçais e guerras. Sim, não é de hoje que o capitalismo dita as regras e sufoca famílias mundo afora, como comprova a obra do diretor Clint Bentley - e que é inspirada na novela do autor Denis Johnson - e que está disponível na Netflix. Sem esconder as inspirações no cinema de Terrence Mallick, com sua câmera baixa em travellings lentos e narrações em off suntuosas, Bentley narra a história do operário Robert Grainier (Joel Edgerton) que, por trabalhar em uma empresa de construção de trilhos de trem, tem uma vida meio nômade, o que o faz se manter inevitavelmente afastado da esposa Gladys (Felicity Jones) e da pequena filha Kate.

Na trama, Robert perde os pais ainda jovem, abandona a escola e conhece Gladys durante uma festa. Apaixonada, a dupla constroi uma simpática cabana às margens de um rio, onde vivem uma vida simples. Só que o ano é 1917 e o consumo de madeira parece não ter limites - o que exige do protagonista uma série de idas e vindas a trabalho, serrando madeira infinitamente para os grandes proprietários. O que o faz presenciar também a dor e a tragédia do mundo, não apenas no que se refere a acidentes de trabalho (com galhos e tocos de árvores caindo nas cabeças dos empregados), mas também à perseguições xenofóbicas em relação à asiáticos, pretos e outros povos. Aliás, é justamente a morte de um colega chinês, que é capturado e arremessado de uma ponte, que perturbará a existência de Robert dali pra frente - com a culpa o atormentando em sonhos ou visões, o que é reforçado pela onipresença da religião no combo.

 


Em meio às dificuldades, Robert toma a decisão de abandonar a empresa para, junto da esposa, construir um moinho próprio. Mas como as exigências financeiras são altas, o homem parte para uma última missão de extração para, na volta, se deparar com uma tragédia: a cabana e todo o entorno foram consumidos por um enorme incêndio florestal. Não há notícias de Gladys e Kate. Ninguém sabe de seu paradeiro. Se estão vivas ou não. E, claro, como se a desgraça pouca não fosse bobagem, Robert será eternamente importunado pelo sentimento de culpa. Se ele tivesse por ali, ao invés de estar trabalhando, poderia ter sido diferente? Elas poderiam ter sobrevivido? Ou será que elas conseguiram sobreviver? Migraram? Sem respostas, o protagonista resolve recomeçar a sua vida no mesmo local, mantendo o firme propósito de que sua amada possa retornar para ali. Algum dia.

Em linhas gerais esse pode ser um filme bastante triste para aqueles que estão acostumados com começos, meio e fins mais convencionais - ou com finais felizes acima de tudo. Mas o caso é que o que a obra busca evidenciar é a complexidade do mundo em meio à avanços - tecnológicos, políticos, sociais -, e de como esses acontecimentos podem se impor no microcosmo. Tudo que Robert queria era poder ser sua filha crescer e viver uma vida idílica com Gladys - o que é reforçado por instantes oníricos, quase elegíacos, de quando estão juntos. Como um casal apaixonadamente romântico. Mas o problema está no mundo e em sua brutalidade. Na ganância, na cobiça, na busca desenfreada por lucro. Ao cabo, o que temos aqui é uma experiência meditativa sobre o sonho americano, com suas figuras ao mesmo tempo lendárias, mas demasiadamente humanas. É simples, bonito e doloroso em igual medida.

Nota: 7,5

 

quinta-feira, 27 de novembro de 2025

Novidades em Streaming - Quando Chega o Outono (Quand Vient L'automne)

De: François Ozon. Com Hélène Vincent, Ludivine Sagnier, Garlan Erlos e Pierre Lottin. Drama, França, 2024, 102 minutos.

Quem acompanha a carreira do diretor François Ozon sabe que ele não é apenas altamente prolífico - com uma produção média de quase um filme por ano -, mas também é muito versátil. O que o faz ser capaz de trafegar pelos mais variados estilos - indo da farsa policial no ótimo 8 Mulheres (2002), passando pelo suspense no, injustamente, pouco lembrado Swimming Pool: À Beira da Piscina (2003), até chegar ao drama familiar em Dentro da Casa (2012), à comédia em Potiche: Esposa Troféu (2010) e mesmo à fantasia no bobinho Ricky (2009). Em resumo, o realizador não se apega a nenhum gênero específico, o que faz com que cada uma de suas obras reserve boas surpresas, já que quase nunca temos certeza de para onde seremos levados. E, em alguma medida, é possível dizer que isso se repete no recente Quando o Outono Chega (Quand Vient L'automne), que está disponível para aluguel nas plataformas.

Aqui, temos um certo retorno ao drama familiar por excelência - mas, verdade seja dita, sem nunca apelar para o óbvio. Quando Valérie (Ludivine Sagnier) chega a casa de sua mãe Michelle (Hélène Vincent) com o filho Lucas (Garlan Erlos) à tiracolo pra uma visita, a gente meio que não entende muito a flagrante má vontade da mulher. Michelle, afinal, parece aquela avó afetuosa que, à beira dos 80 anos, aguarda com ansiedade pela visita do neto - a ponto de se maquiar e de caprichar na colheita de cogumelos selvagens, que servirão para a refeição em família. Cogumelos, que aliás, são obtidos em companhia da melhor amiga Marie-Claude (Josiane Balasko), sua parceira de caminhada pelas matas do entorno do pequeno vilarejo em que vivem. Ambas solitárias idosas, encontram algum tipo de amparo uma na outra. Marie-Claude sofre com a prisão do filho em circunstâncias nunca claras. Já Michelle preserva a solidão resiliente, com o afastamento da filha sendo motivado por eventos passados.

 

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Só que algo sai errado quando da janta envolvendo Valérie, Lucas e Michelle. Valérie passa mal após consumir os cogumelos do mato - que, muito provavelmente, eram de uma variedade tóxica. Lucas não come porque odeia a iguaria - como muitas crianças. E a idosa não comeu porque, enfim, estava sem fome. Valérie sobrevive, mas fica furiosa com a mãe - acredita que ela tenha, deliberadamente, tentado envenená-la. Mais do que isso, Lucas, que passaria o final de semana em companhia da avó para uma série de atividades, acaba apartado desta. Consumida pelo remorso e até pelo receio de estar ficando demente, Michelle encontra companhia da forma mais inusitada possível, quando o filho de Marie-Claude, Vincent (Pierre Lottin), é libertado da prisão. Com ela o convidando para trabalhar com ela, fazendo o manejo da horta, cuidando do jardim e realizando outras atividades como podas, colheitas, revolvimento do solo e outros. Parece o ideal, ao menos em partes. 

Bucólico e extremamente sutil - o que é reforçado pela fotografia terrosa e verdejante -, esse é aquele tipo de projeto agradável de se assistir, não porque haja grandes acontecimentos ou reviravoltas, mas pelas cargas emocionais contidas mas que se expandem, nos fazendo abrir pequenos sorrisos. [SPOILERZINHO] A revelação de que tanto Michelle quanto Marie-Claude eram garotas de programa no passado - aliás, tema pouquíssimo explorado pelas artes em geral -, funciona como câmara de eco para preconceitos, que se espalham pelas gerações seguintes. Lucas sofre com os valentões da escola que zombam da profissão pretérita de sua avó, ainda que Vincent esteja lá para dar uma enquadrada nos abobados dali. Em linhas gerais, após a ocorrência de uma tragédia, o filme ainda explora as possibilidades de novas configurações de famílias e de amizades, com pessoas fraturadas das mais variadas idades, se aproximando para tentar recolher os cacos. Somos muito mais do que o estereótipo, afinal.

Nota: 7,5 

  

terça-feira, 25 de novembro de 2025

Novidades em Streaming - Depois da Caçada (After the Hunt)

De: Luca Guadagnino. Com Julia Roberts, Ayo Edebiri, Andrew Garfield, Chloë Sevigny e Michael Stuhlbarg. Drama / Suspense, EUA / Itália, 2025, 141 minutos.

"Se é verdade pra você, então é verdade". Mas será que é verdade mesmo? Acho que dá pra encarar o ousado Depois da Caçada (After the Hunt), de algumas formas distintas. Em um primeiro olhar, o novo projeto do diretor Luca Guadagnino - dos recentes Rivais (2024), que é ótimo, e Queer (2024), que é fraco -, parece um filme conservador que acena para uma Geração X atualmente cansada e meio saudosista de algum tipo de passado, em que certas liberdades meio exageradas, inclusive no que diz respeito à preconceitos e abusos de poder em geral, eram mais naturalizadas. Meio que entranhadas na sociedade. Por outro lado, e meio que conectando a coisa, a obra soa pretensiosamente moderna em um estilo meio Tár (2022) ao apontar certo cansaço da era do cancelamento, e que muitas vezes envolve millenials com pautas relevantes debaixo do braço, mas meio incapazes de encampar lutas efetivas, que deem resultado.

A galera mais apressada, diante desse cenário, tratou logo de dar uma semicancelada no diretor que, ao não ser necessariamente maniqueísta em sua abordagem, pode ter perdido uma ótima oportunidade de aprofundar o debate sobre o ainda existente cenário de misoginia e de racismo - especialmente no meio acadêmico. Sim, esse é um caso. Quantas mulheres negras diretoras de centros universitários ou doutoras vemos por aí? Sim, é legítimo que isso seja questionado e seria muito cômodo para Guadagnino jogar pra torcida, colocando Maggie (Ayo Edebiri) como a mocinha injustiçada (e abusada) por um professor mais velho, porque simplesmente a vida é assim. Mas aqui o diretor opta por adicionar algumas camadas, com nem tudo sendo assim tão oito ou oitenta. Maggie pode ter plagiado a sua tese e estaria chantageando o professor que ousou questioná-la a respeito? Talvez. Não sei. Acho que ninguém sabe.

 


E talvez esteja aí parte da magia de Depois da Caçada que, sim, como o título sugere, tenta tratar, à sua maneira, do que acontece após uma denúncia de abuso - infundada ou não. No caso do professor universitário Hank Gibson (Andrew Garfield), ele se torna uma espécie de pária entre seus pares. De sujeito respeitado, que participa de jantares sofisticados e de diálogos pedantes, se torna um desempregado do dia para a noite, após as (gravíssimas) denúncias de Maggie. Com tudo se tornando ainda mais avassalador em um período de #MeToo (a trama se passa em 2019). Maggie espera contar com o suporte, também emocional, de sua mentora intelectual Alma (Julia Roberts), uma respeitada professora de filosofia que está retornando à vida acadêmica após um tratamento de saúde - que, ainda lhe afeta. A denúncia da violência praticada por Hank, que garante ter havido consentimento no ato (sem nunca negá-lo), abala a relação de amizade dos dois. Com tudo piorando frente a um gritante conflito de interesses, já que ambos pleiteiam a mesma vaga de professor titular de Yale, no departamento de Humanas.

Em geral, o público parece ter torcido o nariz para essa trama em que não há certeza de nada e que muito do que se vê ali fica nas entrelinhas. Enquanto assistia à obra, me lembrei de outros filmes modernos, que abordam o tema, como os esplêndidos Dúvida (2008) e A Caça (2012) e, em ambos os casos, também não temos meio que certeza de nada. Aqui, muita coisa fica nas entrelinhas, ou mesmo nos diálogos de todos ali - Aristóteles era um xenófobo? Nietzsche era um nazista? Freud era misógino? Devemos cancelá-los retroativamente? Ou é possível estudá-los separando a obra do autor? Conceitos como o do panóptico de Foucault, e que serve bem à uma sociedade em permanente vigilância, ou da Ética das Virtudes, de Aristóteles se espalham pela narrativa, pretendendo dar algum estofo para as discussões (o que talvez até possa confundir, ao invés de ajudar). Há excesso de vitimização hoje em dia? De mimimi? As pessoas tendem a julgar e a condenar sem necessariamente haver provas mais contundentes? Ou as pautas seguem atualíssimas e devem ser mais discutidas do que nunca em tempos em que ainda nos deparamos com violências diversas contra pessoas mais vulneráveis? São muitas questões e eu, particularmente, tendo a concordar com essa última ideia. Mas não ignoro a experiência com um filme que expande as questões, e que coloca outros pontos como centrais no debate.

Nota: 8,0 

 

segunda-feira, 24 de novembro de 2025

Novidades em Streaming - Belén: Uma História de Injustiça (Belén)

De: Dolores Fonzi. Com Dolores Fonzi, Camila Plaate, Julieta Cardinali e Laura Paredes. Drama / Policial, Argentina, 2015, 109 minutos.

"Em plena democracia em um hospital público Belén foi acusada, torturada e condenada na mesma noite.

Vamos combinar que, nos tempos políticos atuais, talvez não haja assunto mais divisivo do que o direito ao aborto. Se por um lado, a extrema direita fanatizada e de Bíblia debaixo do braço, quer, sob a desculpa da valorização incondicional da vida, obrigar até mesmo gestações resultantes de violências sexuais diversas - aliás, pouco importando se a vítima for uma adolescente ou, pior ainda, uma criança -, de outro, o campo progressista luta para que as mulheres possam ter meio que o básico. No caso o direito ao aborto minimamente em casos já previstos em lei - como em estupros ou aqueles que envolvem riscos médicos. A decisão, ao cabo deveria ser da dona do corpo - uma coisa tão óbvia que chega até a ser meio bizarro estar discutindo isso às portas de 2026. Esperávamos carros voadores nesse ano? Não, temos de brigar com a tal da bancada evangélica, preocupadíssima com os bebês - mas apenas quando eles estão nas barrigas das futuras mamães. Depois disso, que se explodam, né?

E é nesse contexto que entra Belén: Uma História de Injustiça (Belén) - o enviado ao Oscar 2026 pela Argentina, que está disponível na Amazon. Inspirado em eventos reais ocorridos em 2014, o filme de estreia na direção da atriz Dolores Fonzi narra o bizarro episódio ocorrido com a jovem Julieta (Camila Plaate) que, depois de dar entrada no hospital com fortes dores estomacais, é presa preventivamente, acusada de ter, deliberadamente, praticado um aborto. Levada pela polícia, ela aguarda durante dois anos por um julgamento pelo suposto crime de "homicídio agravado por parentesco" - tudo isso acontecendo após uma sequência revoltante em que policiais, como sempre investidos de certa síndrome do pequeno poder, invadem a ala hospitalar em que Julieta está, para lhe colocar algumas em plena maca do hospital. Sim, ela ainda está sangrando, com dor, agredida física e moralmente e está sendo presa. Sem provas, ainda por cima.

 


Após um salto no tempo entra em cena a destemida advogada Soledad Deza (a própria Dolores Fonzi), que promete auxiliar a garota, após descobrir que o caso teria uma série de incongruências - o que envolve a participação de uma defensora pública inescrupulosa, daquelas que prefere tomar decisões carregando uma cruz a tiracolo (e não a Constituição). Julieta está condenada a oito anos de prisão e o desenrolar da trama resultará em uma série de sequências de tribunal, com ótimos diálogos e um clima de tensão geral extremamente bem construído - que faz com que o espectador se conecte solidamente com a história. Em linhas gerais, o que a trama evidencia é que, quanto mais conservadora e provinciana for a cidade ou a região, mais complicado será evoluir em temas como este - e não demora para que a própria Deza passe a ser perseguida e intimidada, após seu nome chegar à imprensa (o que envolve uma participação em um programa sensacionalista e altamente cringe de TV, que tenta humilhá-la de todas as formas).

Nesse sentido e não por acaso, Julieta entra em uma espécie de conflito em relação ao fato de os motivos de sua prisão - que permanecem em sigilo -, chegarem à esfera pública, com movimentos coletivos ganhando força nas ruas e exigindo a anulação da sentença. E mesmo sofrendo uma grande injustiça ela teme represálias - como no caso do receio de que seus pais percam o emprego, ao descobrirem que sua filha teve um aborto. A sensação de certa desorientação, aliás, é ampliada com uma sequência de alucinações envolvendo sangue - como nas cenas do chuveiro (com a água funcionando como uma alegoria para a limpeza moral tão desejada). Sem ter vergonha de defender com clareza seu lado, mas sem soar excessivamente panfletária, Dolores consegue conferir complexidade às suas personagens. Ainda assim o que fica claro é que, mesmo em um cenário de democracia e de avanços sociais, políticos e culturais pontuais, esse é um tema que exige vigilância permanente para que não haja retrocessos. Especialmente frente à governos autoritários, ligados à extrema direita reacionária.

Nota: 8,0 

 

Novidades em Streaming - O Filho de Mil Homens

De: Daniel Rezende. Com Rodrigo Santoro, Miguel Martines, Johnny Massaro e Rebeca Jamir. Drama / Fantasia, Brasil, 2025, 126 minutos.

Quem leu O Filho de Mil Homens, do português Valter Hugo Mãe, já tinha o conhecimento de que se trata de uma obra um tanto poética e lírica, que parte de uma premissa bastante simples - sobre um pescador solitário que nunca conseguiu concretizar o sonho de ser pai -, para uma análise de temas como pertencimento, autoaceitação, família e respeito às diferenças. Em linhas gerais poderia ser meio difícil transportar esse caráter quase onírico e eventualmente existencialista da narrativa do autor para as telas, mas, verdade seja dita, Daniel Rezende (Bingo: O Rei das Manhãs, 2017) conseguiu - e muito. Com uma abordagem delicada, envolta em sutilezas, o diretor converte a obra em uma experiência de fluidez meio ondulante - assim como é o próprio vai e vem do mar -, com tudo ocorrendo sem muita pressa e com uma aposta muito maior em silêncios e em olhares do que em excessos didáticos.

Porque por mais que a narração de Zezé Motta surja, aqui e ali, para conectar certos pontos da história, ela nunca soa invasiva demais ou mesmo desnecessária. No livro de Mãe o protagonista Crisóstomo (Rodrigo Santoro) é apresentado como um sujeito fraturado que, a beira dos 40 anos, vive "pela metade", com seus amores frustrados e uma vida permeada por traumas. O filho desejado se converte numa alegoria bastante concreta - que é representada por um boneco de pano do tamanho de uma criança. Um boneco que é cuidado pelo pescador com esmero, afeto e dedicação. Só que em uma obra tão mágica, quase no limite do realismo fantástico, a criança real não demora a se materializar - como que enviada pela própria natureza (o que é reforçado peças sequências de Crisóstomo colocando uma concha no ouvido ou mesmo deitado na areia luminosa, em uma conversa interna particular).

 


A chegada de Camilo (Miguel Martines), um menino órfão que acaba de perder o seu avô emprestado, transforma a vida do pescador. No cotidiano, estabelecem rapidamente uma relação de pai e filho - com direito a jogos de bola e parceria tanto na hora de comer geleia de jabuticaba, como na hora da pesca. Só que a dupla não está sozinha. Camilo sonha em ter também uma mãe - já que, como descobriremos mais adiante, ele perdeu a própria durante o seu parto. Aliás, sua mãe, Francisca (Juliana Caldas), era uma anã que, por conta de sua condição, sofria todo o tipo de preconceito na comunidade. Menos dos homens, os mais diversos, com quem ela "deitava", pelo visto - o que exaspera um trio de vizinhas enxeridas, que funciona como alívio cômico. Aliás, a discriminação se espalha por toda a parte, atingindo também o jovem gay Antonino (Johnny Massaro), que é forçado a se casar com Isaura (Rebeca Jamir), num arranjo feito pela mãe extremamente religiosa do rapaz, para tentar conter o falatório na região.

Sim, o filme salta de lá para cá e, por vezes, as histórias parecem todas meio desconectadas. Mas, mais adiante fica mais simples de compreender como a obra se converte em um elogio ao conceito atual de família escolhida - e de como podemos encontrar amor em companhia, amizade e afeto de pessoas que, não necessariamente, possuem laços de sangue conosco. Ao cabo, o quarteto central vira uma família improvisada - tida como desajustada pelos cidadãos do vilarejo. Como assim Antonino vai morar com Crisóstomo e Camilo, deixando a sua mãe verdadeira para trás? E, ainda por cima, acompanhado de Isaura? O clima de vigilância é ampliado, quando se toma por base os dogmas religiosos - o que torna ainda mais escancarado o fato de o cidadão de bem médio ter extrema dificuldade em aceitar o diferente. Aquele que não segue um padrão. [SPOILERZINHO] Crisóstomo cresce sozinho, mas alcança o objetivo de formar uma família, ao final. Aliás, as últimas sequências são daquelas de derrubar rios de lágrimas. É difícil sair ileso.

Nota: 8,0