"Essa música surgiu como tantas outras, sem pensar muito". Vamos combinar que se fosse outra artista falando essa frase, que não a Adrianne Lenker, e ela poderia soar apenas presunçosa. Mas não é o caso da vocalista do Big Thief, porque é simplesmente impressionante a capacidade dela - e de sua banda - de simplesmente produzirem grandes canções, sem que haja um grande esforço. Com o resultado sempre sendo uma coleção impecável de discos, que tem por marca aquele indie folk encharcado, meio diluído em névoa, que se torna gigante não pelo grande aparato tecnológico, mas sim pela sua total discrição. Tudo soa moderado, mas rigoroso. "É uma canção espiritual sobre fazer amor. É sobre tirar essa vergonha dos nossos corpos, do nosso sexo, da nossa cultura", comentou ao site inglês INews, a respeito de All Night All Day, a tal canção feita sem "muito pensar", que integra o recente Double Infinity.
Ainda assim, é importante reiterar que simplicidade - talvez pudesse ser chamado também de conforto - nunca significa negligência. Em momento algum a sonoridade soa opaca demais, sem brilho ou personalidade. Ao contrário, mesmo quando o agora trio (após a saída do baixista Max Oleartchik), formado ainda por Buck Meek e James Krivchenia, fala de temas cotidianos e nostálgicos, como no single Incomprehensible, que aborda o medo de envelhecer e a efemeridade da juventude (Daqui a dois dias vou fazer aniversário e vou fazer trinta e três / Isso realmente não importa diante da eternidade), tudo soa maior, mais estofado. Com um toquezinho de psicodelia meio mágica, reforçada pela cítara que aparece um canções como Grandmother, o álbum poético até dizer chega, é daqueles que cresce a cada audição. Evidentemente, sem que haja qualquer esforço.
De: Kathryn Bigelow. Com Rebecca Ferguson, Tracy Letts, Idris Elba, Gabriel Basso e Jared Harris. Suspense / Drama, EUA, 2025, 113 minutos.
"Então gastamos 50 bilhões de dólares para isso?". A frase dita pelo secretário de defesa Reid Baker (Jared Harris), em um dos pontos altos de Casa de Dinamite (A House of Dynamite) talvez passe batida pelo espectador mais desavisado. A ponto de ela retornar no terço final, como uma espécie de lembrete do absurdo da guerra. Será que, nos tempos atuais, naturalizamos esse tipo de aporte financeiro destinado a tanques, mísseis e outros equipamentos que incluem o aparato bélico? Vocês entenderam a dimensão disso? Cinquenta BILHÕES de dólares, na ideia de acertar uma "bala com outra bala"? E que, ainda por cima, falha na hora decisiva. Qual o propósito, afinal, disso? Qual a lógica de simplesmente aguardar o fim do mundo, enquanto um bando de burocratas fardados ou uniformizados decide sobre botões a serem apertados? E que resultarão na morte ou não de milhares de civis?
Desde a ascensão dessa extrema direita tosca - que tem na figura de Donald Trump o seu mais alto representante -, que o medo de uma possível terceira guerra mundial ronda o planeta. Se em tempos de Guerra Fria, o diretor Stanley Kubrick optou pelo deboche como ferramenta, no inesquecível Dr. Fantástico (1964), o tom sério e meio envolto por ideais sobrevivencialistas (com direito a imagens aéreas de um bunker gigantesco), não me parecem gerar o mesmo efeito. Aliás, pior, talvez só resulte em medo. E em pessoas achando que os Estados Unidos devem dobrar a aposta quando o assunto forem os confrontos que quase parecem inevitáveis, entre nações. Se for preciso gastar 50 bilhões de dólares? Que se gaste. Se dez milhões de pessoas vão morrer nos arredores de Chicago? Azar, temos de contra atacar para não sermos taxados de covardes. De fracos. Na eterna disputa por quem tem o maior pênis, em um quadro provável de micropenia coletiva, que só pode ser compensada com bazuconas.
Sim, o que o filme de Bigelow - que ganhou o Oscar por Guerra ao Terror (2009) - tenta imaginar é como os Estados Unidos reagiriam diante de uma ameaça catastrófica: um míssil nuclear lançado de algum lugar do Pacífico, sem origem identificada. E sem autoria clara. E que explodirá nos arredores de Chicago, massacrando parte da população de um dos seus principais estados. Como baratas tontas, generais, secretários de defesa, integrantes do Pentágono e o próprio presidente dos Estados Unidos, encarnado com niilismo por Idris Elba, batem cabeça para tentar decidir os próximos passos. O artefato deve colidir em 19 minutos. Não há tempo para um plano de evacuação. A tentativa de abater uma bala com uma bala falha miseravelmente (com 50 bilhões de esfarelando) e só resta o que muitos ali fazem: chorar, pensar nos seus familiares, se apegar às rotinas pacíficas, distantes desse mundo hostil.
Como eu disse, parece haver aqui e ali uma mensagem legítima antiguerra - e que talvez esteja na simples beleza da vida de cuidar de um filho doente ou de projetar pedir alguém em casamento. Mas que também aparece em discursos tolos e mesmo no comportamento idiotizado de certas figuras que deveriam tomar decisões claras - mas não tomam. Em geral o mundo está a deriva, se ficarmos nas mãos dessas figuras que são hábeis em explodir bombas atômicas, mas que são péssimas em diplomacia. Em relações institucionais. A meu ver um filme como esse pode aumentar o sentimento de paranoia. Por mais que, lá no meio, em uma criação propositadamente teatral da Guerra da Secessão, a oficial de inteligência Ana Park (Greta Lee), lembre que apenas a Batalha de Gettysburg tenha resultado em quase 50 mil mortes.
É um absurdo a guerra, né? Mas quando há tanta gente falando em tela sobre os "inimigos" de sempre - Rússia, China, Coreia do Norte e outras ameaças "comunistas" (como se estivéssemos em uma produção dos anos 80) - e repetindo toda a encenação por outros dois pontos de vista distintos, não sei se a mensagem, se é que há mensagem, cola tão bem. O primeiro terço, o que Rebecca Ferguson como a capitã Olivia Walker aparece, é bem urgente, angustiante, tenso. Depois, tudo meio que se dilui, quando a coisa migra pra outras salas e outras siglas e outras tentativas de decidir algo. Quase caindo no banal. Algo que nem as mensagens espalhadas de "pare o genocídio" em cartazes ao fundo, enquanto crianças circulam pelas ruas tranquilamente, parece amenizar.
Vamos combinar que esse ano está tão impressionante do ponto de vista musical, que até aquelas bandas que, em muitos casos, não chamam muito a atenção, parecem empenhadas em entregar o seu melhor lançamento em anos. E é justamente esse o caso do TOPS e de seu quinto registro de inéditas Bury the Key. A capa, de tintas meio sombrias, pode até enganar os ouvintes desavisados, mas o que o grupo capitaneado por Jane Penny faz, aqui, é arredondar ainda mais o seu sophisti-pop etéreo, deixando-o ainda mais limpo, mais acessível. Claro que os trabalhos anteriores nunca foram aquele exemplar de som garageiro, mas aqui temos uma banda tão iluminada e tão dedicada a uma ambientação mais aconchegante, que singles como ICU2 não fariam feio em algum disco dos conterrâneos do The New Pornographers.
Em linhas gerais é até meio divertido ver canções de títulos potentes como Falling on My Sword - que parece saída de algum disco de love metal dos anos 80 -, fazendo de conta que há um peso a mais de guitarra, que nunca chega a se converter em um abalo roqueiro de fato. Até mesmo porque a natureza do TOPS sempre foram as canções pegajosas inundadas em sintetizadores primaveris, cheios de carisma e de guitarras arejadas, como no caso da saborosa Chlorine, um esforço eficaz sobre a sensação de solidão em meio aos bares da cidade(Pare de encher meu copo com tanto amor vazio). Já Mean Streak consegue soar açucarada e metafórica, mesmo que os versos sugiram a eventual dor decorrente de um amor não correspondido ou de uma relação mais tóxica (Por quê você fica com ela, quando sempre me quis?). Enfim, mais um disco que parece pequeno nas aparências. Mas que se agiganta a nova audição.
De: Ron Howard. Com Jude Law, Ana de Armas, Siney Sweeney, Daniel Brühl e Vanessa Kirby. Suspense / Aventura, EUA / Austrália, 2025, 129 minutos.
Eu preciso ser honesto com vocês: um filme como Éden (Eden)deve ter um amontoado de inconsistências, pouca coisa deve fazer sentido do ponto de vista histórico e há uma grande chance de que não haja qualquer pé na realidade. E, ainda assim, trata-se de uma experiência cinematográfica irresistível, divertida, tensa e sexy - capaz de nos deixar meio que hipnotizados pelas mais de duas horas de duração. Dirigida por Ron Howard - que tem uma carreira irregular, marcada por clássicos modernos oscarizáveis, como, Apollo 13 (1995) e Uma Mente Brilhante (2001) e por bombas atômicas como o recente Era Uma Vez Um Sonho (2020), a obra se inspira na história real do casal Friedrich Ritter (Jude Law) e Dore Strauch (Vanessa Kirby) que fogem da Alemanha no pós Primeira Guerra, para viver na pequena Floreana, um ponto isolado da Ilha de Galápagos.
A ideia era meio que abrir mão dos valores burgueses e capitalistas que pareciam estar corroendo o tecido social, para viver uma espécie de utopia de comunhão com a natureza, em uma nova vida bem distante do mundo "civilizado" e livre de qualquer amarra moderna. Na companhia apenas dos sons da mata e da praia do entorno, Ritter, que era médico, encontrava bastante tempo para se sentar diante de sua máquina de escrever, na intenção de compor uma série de manifestos que encontrariam espaço em jornais estadunidenses e europeus. E é mais ou menos aí que iniciam-se os problemas do casal, com outras pessoas buscando esse espaço idílico, como no caso dos agricultores Margret e Heinz Wittmer (Sidney Sweeney e Daniel Brühl), que chegam ao local com o filho tuberculoso Harry (Jonathan Tittel); além da excêntrica e hedonista baronesa Eloise Wernhorn (Ana de Armas), que chega com seus servos na intenção de construir um resort de luxo no local.
Uma rápida pesquisa na internet nos permitirá saber que todas essas pessoas, de fato, existiram e, muito provavelmente, coabitaram o local ao mesmo tempo. Mas o que Howard parece desejar fazer, aqui, é nos lembrar de certos ideais um tanto niilistas, baseados em figuras como Nietzche ("quem quiser permanecer limpo entre os homens, deve aprender a banhar-se em águas sujas") ou filósofos como Sartre ("o inferno são os outros"), que são citados de forma permanente e quase presunçosa por Ritter - como uma espécie de metáfora fragmentada do todo. Porque ao final e ao cabo, o casal não consegue deixar a civilização pra trás, sem que ela o encontre. E junto com ela, todos os preconceitos, mentiras, manipulações e antagonismos. Com uns se colocando contra os outros em disputas territoriais - por água, por comida, por poder (e até por prazer) -, o que nos faz lembrar as crianças perdidas do clássico literário O Senhor das Moscas (1954).
Quando os Wittmer chegam, Ritter não acredita que eles tenham força pra permanecer. Há muitos perigos ali e uma série de exigências de sobrevivência que parecem inadequadas para forasteiros. Mas eles ficam, persistem, constroem uma boa horta e se estabelecem com muito trabalho - a despeito dos olhos sempre tristes de Margret, que descobre estar grávida na ilha (o que renderá uma das sequências mais tensas do longa). Já a baronesa é absolutamente irresistível com o seu apelo à luxúria e consumo desenfreado, como uma pequena burguesa autoritária e cheia de personalidade, que antagoniza a todos ali, especialmente ao anunciar ser meio que a dona da ilha. Como um microcosmo da própria falência do capitalismo tardio, o filme consegue ser engraçado e reflexivo ao mesmo tempo, alternando momentos de diálogos hilários (a cena do almoço ou a da tentativa de sedução à um figurão de Hollywood são imperdíveis), com outros repletos de ressentimentos e de uma quase inevitável escalada da violência. Eu tenho a impressão de que se esse filme tivesse sido lançado na década de 90, ele seria sucesso absoluto. Talvez até sendo lembrado nas premiações. Hoje em dia, as pessoas parecem menos dispostas à papagaiadas escapistas. Tudo é levado a sério. Mas quem se aventurar sem grandes pretensões, deve se divertir.
De: Kyle Edward Ball. Com Dali Rose Treteault e Lucas Paul. Terror / Fantasia, Canadá, 2023, 100 minutos.
Assistir ao estranho Skinamarink: Canção de Ninar (Skinamarink) me fez lembrar um episódio ocorrido há uns dez anos, quando fui convidado pela organização de um festival de curta-metragens local para ser jurado da competição técnica. A tarefa, verdade seja dita, era bastante ingrata: assistir a uns trezentos curtas, em um período de poucos meses, fazendo anotações e selecionando aqueles que integrariam a lista final de indicados. Só que uma categoria me chamou a atenção a ponto de quase me deprimir: a dos filmes experimentais. Aliás, fiquei surpreso em perceber o apreço de jovens diretores, muitos deles claramente estreantes, em realizar obras herméticas, impenetráveis, repletas de imagens e de sons com ausência de qualquer lógica, funcionando apenas como um exercício de estilo, eventualmente provocador. E, invariavelmente, chato. Por sinal, acho que foi a existência dos curtas experimentais que me fez desistir de participar, novamente, de qualquer outra experiência semelhante a essa.
E, Skinamarink é, assim como aqueles curta-metragens presunçosos, pretensiosos, pernósticos, um filme experimental (corram para as montanhas). Mais ou menos como uma longa instalação de 100 minutos, criada pelo Radiohead na época do Kid A - mas sem qualquer personalidade para bancar isso - o filme do diretor Kyle Edward Ball, que estreou nesta semana na Mubi, é uma sequência infinita de pequenos takes de uma casa na penumbra, colados um no outro, com fotografia granulada, sombria, como se emulando alguma coisa no estilo fita VHS dos anos 80. Não sei muito bem como funcionaram as campanhas de marketing que, a bem da verdade, acho que nem existiram frente ao orçamento minúsculo de apenas 15 mil dólares, mas o fato é que o projeto viralizou no Tik Tok e alcançou uma boa base de adeptos daquele cinema de horror estilo found footage, como A Bruxa de Blair (1999) e Atividade Paranormal (2007).
Só que diferentemente desses, aqui não acontece muita coisa. O horror deve estar mais nos efeitos psicológicos da escuridão? No medo infantil do abandono? Nas incertezas diante do desconhecido? Há algo ali que vai mais adiante, chegando no limite entre realidade e fantasia? Vida e morte? Sim, quando o filme acaba são muitas perguntas e poucas respostas e, em geral, quem acompanha o Picanha sabe que eu não tenho nenhum problema com obras menos palatáveis, desde que eu não tenha a impressão de ter sido feito de bobo durante quase duas horas. Será que foi essa a impressão? Será que é esse o cinema do futuro e eu não tô sabendo? E se for, por Deus, tô fora! O resumo que se encontra por aí fala em duas crianças de seis e quatro anos - seus nomes são Kaylee (Dali Rose Treteault) e Kevin (Lucas Paul) - que acordam no meio da madrugada e percebem que o pai desapareceu de casa sem explicação.
Só que, assim, "pai sumiu de casa sem muita explicação" é algo que o espectador vai supor, se não tiver muita informação sobre, depois de um bom tempo de takes de brinquedos lego espalhados, de tetos de casa com suas lâmpadas, de cantos da sala ostensivamente escuros, de corredores isolados, de conversas espaçadas e monossilábicas. Enquanto tentam descobrir o que ocorreu, as crianças percebem que coisas estranhas começam a acontecer no ambiente: as portas e janelas desaparecem, objetos como cadeiras e brinquedos surgem no teto ou em outros locais impossíveis e uma voz do além lhes dá instruções. A madrugada avança enquanto elas assistem desenhos animados antigos, com trilhas sonoras assustadoras e fantasiosas em igual medida. Há na internet e nos fóruns online uma série de tentativas de explicar o que se vê - e que vão de medos embotados de infância, passando por traumas domésticos, até chegar em sonhos nostálgicos.
Claro que nada vai ser definitivo e cada um é cada um. Quem nunca se assombrou ao acordar de madrugada e descobriu que aquela forma humana que está no quanto do quarto, na penumbra, é, na verdade uma pilha de roupas em cima de uma cadeira? Ou ouviu barulhos e estalidos na casa que parecem vindos de uma dimensão paralela? Parece que a ideia de Ball foi meio que essa: convidar os seguidores do seu canal de Youtube a relatarem pesadelos noturnos, na tentativa de recriar as imagens desses sonhos. Que essas imagens sejam tão escuras, tão opacas e tão assustadoramente NULAS é meio que decepcionante. A crítica e o público tem sido divisivos entre a aclamação total e a completa abominação, e anda até meio difícil de encontrar um meio termo. Talvez tenha havido boas intenções que colidem com tempos tão urgentes, tão frenéticos. Mas admito a vocês que esse foi um dos filmes recentes em que mais peguei o celular para scrollar aleatoriamente o Insta, enquanto o tempo passava. Não consegui fazer o mergulho necessário talvez? Vocês que me digam.
De: Francesco Costabile. Com Barbara Ronchi, Francesco Gheghi, Francesco Di Leva e Marco Cicalese. Drama, Itália, 2025, 125 minutos.
Talvez uma das melhores histórias da atualidade sobre o quão difícil pode ser para uma mulher - para qualquer mulher -, escapar de um ciclo sem fim de violência doméstica. Sem rede de apoio. Com nenhuma garantia de segurança por parte do Estado. E à mercê de uma sociedade incapaz de fornecer o suporte necessário em casos de agressões não apenas físicas, mas psicológicas. Isso é o que assistimos no desalentador Família (Familia), drama dirigido por Francesco Costabile e que foi o enviado da Itália para o Oscar do ano que vem. Disponível na Reserva Imovision, a obra, inspirada em eventos reais que foram relatados em um livro escrito por Luigi Celeste, acompanha a via crúcis de Licia (Barbara Ronchi), que não apenas precisa lidar com o ex-marido criminoso que, recentemente, saiu da prisão - seu nome é Franco (Francesco Di Leva) -, como, mais adiante, ainda precisa confrontar o filho Gigi (Francesco Gheghi), que começa a se aproximar perigosamente de grupos supremacistas brancos, de extrema direita.
Claro que, aqui, temos uma história complexa de como famílias absolutamente disfuncionais podem formar o embrião que gerará adultos desajustados, como no caso de Gigi, que cresce à sombra de um pai que espanca a mãe à ponto de lhe quebrar os dentes da boca, sendo, na medida do possível, tranquilizado pelo irmão mais velho Alesso (Marco Cicalese). Nesse sentido, o filme de Costabile se converte em uma experiência complexa e de escolhas e soluções nunca óbvias. O mesmo valendo para os seus personagens, que nunca surgem em tela como figuras unidimensionais, capazes de ser apenas violentas ou bondosas em tempo integral. O próprio Franco, quando reaparece para os filhos em uma das sequências iniciais, enquanto esses batem bola despreocupadamente no pátio de casa, se empenha em compensar a ausência na vida dos meninos os levando ao parque de diversões e se comportando como um pai mais ou menos dentro do normal (a despeito de sua feição pouco amigável).
Sabendo que o ex violento está prestes a sair da prisão, Licia obtém uma medida protetiva, o que a faz trocar também as chaves da fechadura da casa - o que não impede a entrada de Franco, o que ele consegue com a ajuda dos próprios filhos, o que lhe oportunizará escancarar a sua face mais violenta. E, por mais que no aniversário de Gigi os integrantes se esforcem em tornar tudo "normal", um grupo de oficiais de justiça chega com uma ordem para que não apenas Franco fique distante dos filhos e da esposa. Mas a própria Licia seja apartada dos filhos, em um dos tantos instantes comoventes da produção. E que exemplificam a complexidade desses casos. Um salto temporal nos apresentará a um Gigi que já integra uma célula neonazista, ao passo que Alesso segue com uma vida de trabalho - o que não lhe retira a amargura. Os dois já voltaram a viver com a mãe em um modesto conjunto habitacional. Mas o drama ainda tá bem longe do fim. Especialmente após Gigi esfaquear um integrante de um grupo antifa em uma briga de rua e, pior de tudo, o pai reaparecer na vida de todos ali. O que sobrecarregará ainda mais o ambiente.
Em linhas gerais essa tragédia um tanto shakespereana, de pais e filhos em conflito, pode não ter muito espaço para redenção, já que não são poucos os instantes sombrios. Gigi até deixa de lado os ideais neonazis depois de ser preso - e de se apaixonar por Giulia (Tecla Insolia), que abomina essa vida dupla em que ele se encontra. Em certo ponto, Licia confronta o filho, ao mencionar que ele lhe "faz lembrar alguém", sem nem saber que Gigi tem encontrado Franco às escondidas, porque é justamente o pai quem primeiro vai lhe visitar na cadeia (após anos preso por assalto). As idas e vindas podem ser preenchidas por cenas cheias de simbolismos, como aquela em que Gigi e Giulia entram no túnel do terror de um parque, mas o que fica é a alternância e os altos e baixos em que, de novo, as personalidades nunca são limitadas. De qualquer forma e a despeito disso, muitas coisas se sobressaem aqui. Entre elas a dificuldade de expor às autoridades os casos de violência. Que se perpetuam de forma inevitável.
Vamos combinar que, até pra fazer música bobinha, é preciso ter personalidade. Sim, porque se relacionamentos falhos, incertezas românticas ou paixões arrependidas costumam ser a matéria-prima ideal para uma banda de power pop festivo ainda na flor da idade, não tem porque ela ser apenas óbvia. Afinal, a gente pode até já ter ouvido essa guitarrinha acelerada antes, a bateria urgente e o estilo vocal meio Sleater Kinney tomando uma ducha de doçura, mas em 2025 ainda dá pra ser descolado, divertido e levemente anárquico dentro do estilo - como comprovam as meninas canadenses do The Beaches que, recentemente, lançaram No Hard Feelings, seu terceiro registro de inéditas. Um álbum cheio de canções de letras irônicas e sem rodeios, e que tem no vocal sensual mas potente, de Jordan Miller, um dos pontos altos.
Talvez esse seja mais um disco que não receberá a devida atenção em um ano tão espetacular como 2025. Mas quem se aventurar, dificilmente não abrirá um sorriso nostálgico frente a músicas envolventes e cheias de refrãos ganchudos, como, Fine, Let's Get Married, Touch Myself ou Can I Call You In the Morning? - está última uma peça mal humorada, mas engraçadíssima, a respeito de uma relação tóxica em que os sentimentos de amor e ódio parecem andar lado a lado (Eu gostava da sua antiga banda, mas não das novas músicas / Devemos terminar então?). O expediente de confissões, frustrações e de medo de ter sido excessivamente honesto sobre algo, se repete na deliciosamente sarcástica Did I Say Too Much?, sobre a luta interna que envolve se apaixonar por alguém do mesmo sexo, que deseja um relacionamento aberto. "É sobre a intensidade de compartilhar seus sentimentos mais profundos, sobre algo que é construído para não durar", afirmou em entrevista. Vale a atenção!
De: Martín Rejtman. Com Esteban Bigliardi, Manuela Oyarzun e Camila Hirane. Drama / Comédia, Argentina / Chile / Portugal, 2023, 95 minutos.
Era pra ser curioso, engraçado, excêntrico, diferente, mas foi apenas chato mesmo. Ou vai ver fui eu que não consegui embarcar - e, devo admitir que, por vezes, me dá um pouco de ranço esse cinema metido à alternativo que soa apenas presunçoso. O auge do auge nesse 2025 nem era tão indie assim - o horroroso Megalópolis (2025) -, mas tem umas outras joias nessa série B do catálogo da Mubi, que exigem uma boa dose de boa vontade do fã de cinema. E é exatamente esse o caso do recente argentino A Prática (La Práctica), do diretor Martín Rejtman. Espécie de pastiche cômico que tenta soar como um Ari Kaurismäki latino, esse é o tipo de projeto que sai do nada pra lugar algum, enquanto tenta fazer algum tipo de exame aleatório dos sofrimentos, frustrações e dores da classe média, hétero e branca. E que, ao cabo, também luta pra sobreviver.
No centro da narrativa está o professor de ioga Gustavo (Esteban Bigliardi), um sujeito de meia-idade que está se separando da esposa Vanesa (Manuela Oyarzun), que também é instrutora da mesma prática. Enquanto tentam em vão uma terapia de casal tardia para um casamento que não tem mais salvação, Gustavo busca se adaptar à nova vida depois de sair do apartamento da ex, indo morar com o ex-cunhado fumante inveterado, que convive com a esposa meio maluca. Havia uma viagem para a Índia agendada, que o casal desmarca, ao mesmo tempo em que Gustavo vai para uma espécie de retiro espiritual (e, vamos combinar, nada mais burguesia nem tão emergente do que isso). É lá naquele local meio estranho que o protagonista descobrirá uma severa lesão no menisco, que quase lhe impedirá de trabalhar.
E, aqui, a meu ver inicia essa tentativa meio desesperada do diretor em converter qualquer coisa em uma alegoria para as fraturas sociais daqueles que acompanhamos. Uma separação exige que a pessoa se reerga com suas próprias pernas, então que tal colocar uma inflamação no pé como uma metáfora pra isso? Mas há outros momentos meio constrangedores, como no caso do começo da película, instante em que um tremor leve de terra acontece. Uma aluna se lesiona na cabeça e perde a memória - aliás, aluna que parece preocupada com os excessos do instrutor em relação a ela. Assédio? Vai saber. Fica tudo mais ou menos no ar, exatamente como uma pedra flutuante completamente aleatória que aparece como um Deus ex-machina quase ao final, tentando solucionar algo que, ao cabo, é meio que insolúvel. Ver aquelas pessoas apenas aborrece. E nada mais.
Por sinal, o próprio fato de o sujeito ser um instrutor de ioga - um tipo de prática com rígido código de conduta, com exigências físicas e mentais -, aparece como uma desculpa para comentários sociais estúpidos a respeito de culturas regulamentadas. Aliás, é verdade que professores de ioga não comem alho? Ah, Gustavo também é vegetariano. E tem uma mãe controladora. O que talvez ajudasse a compreender alguns comportamentos, se lá pelas tantas a gente não tivesse meio que de saco cheio daquelas pessoas vazias, que lavam roupas como um processo de purificação. E que perambulam pra lá e pra cá sem muita lógica, em atos entorpecidos e vazios, que culminam em diálogos ocos e que parecem retirados da pior peça de teatro juvenil da história. O surgimento de novos personagens, como o jovem Matias (Giordano Rossi), que é acusado de furto por Gustavo, ou mesmo a ex-aluna e enfermeira Laura (Camila Hirane) acrescentam ZERO em termos de interesse. Em uma experiência que termina oca como a vida simplória e ordinária de todos ali.