terça-feira, 16 de setembro de 2025

Cinema - Faça Ela Voltar (Bring Her Back)

De: Danny e Michael Philippou. Com Sally Hawkins, Billy Barratt, Jonah Wren Phillips e Sora Wong. Terror / Drama, Austrália / EUA, 2025, 104 minutos.

[ATENÇÃO: TEXTO COM SPOILERS] 

Da lenda egípcia de Osíris, passando por livros como Cemitério Maldito, de Stephen King, ou mesmo filmes como Hereditário (2018), de Ari Aster, não foram poucas as obras de arte que se ocuparam do tema dos mortos que "retornam" à vida. Ou de vivos que, diante de um contexto de luto, se empenharão em trazer de volta aqueles que tenham partido para uma melhor. Em muitos casos, essa acaba sendo uma boa desculpa para trabalhos que examinam traumas que emergem de cenários de perda, e quais os caminhos para a superação. No caso do recente Faça Ela Voltar (Bring Her Back) a coisa não parece assim tão profunda do ponto de vista psicológico - ainda que, aqui e ali, a obra dirigida pelos irmãos Danny e Michael Philippou espalhe alguns símbolos que nos ajudam a compreender as motivações de Laura (Sally Hawkins), a mãe enlutada que parece disposta a qualquer coisa pra trazer a falecida filha de volta à vida.

O filme inicia com uma experiência um tanto traumática para Andy (Billy Barratt) e sua meia-irmã, a jovem Piper (Sora Wong) - que tem um severo problema de visão que lhe permite ver apenas vultos e sombras -, que encontram o próprio pai morto, no chuveiro. Aparentemente ele tratava um câncer (ou não, vai saber). Após uma conversa com a assistente social, a dupla é enviada para morar com uma ex-conselheira da Instituição - seu nome é Laura (Sally Hawkins), uma excêntrica mãe também enlutada (ela perdeu a própria filha após um trágico afogamento, na piscina de casa) -, que também abriga um outro menino, no caso Oliver (o ótimo Jonah Wren Phillips). Oliver parece estranho e taciturno - seu olhar é fundo, meio denso, mas ao mesmo tempo disperso. O que combina com o cenário como um todo: uma casinha isolada no meio do nada, rodeada por uma floresta (um ethos inevitavelmente óbvio).

 

 

Como não poderia deixar de ser, tudo começa mais ou menos bem naquele ambiente. Andy estranha um pouco o carinho desmedido de Laura com Piper - talvez o fato de ela também ter perdido uma filha que, curiosamente, era cega. E tinha mais ou menos a mesma idade. A mesma altura, tudo. E, bom, não precisa ser nenhum adivinho para saber que, dali pra frente, coisas estranhas começarão a acontecer naquele ambiente. Especialmente por Laura, reiteradamente, colocar para rodar um vídeo que parece explicar uma espécie de ritual satânico, em que uma pessoa morta é trazida de volta à vida, com o uso de um hospedeiro (que meio que suga a alma do vivo, para depositá-la no morto, fazendo-o despertar). Sim, é tudo um tanto bizarro e a coisa vai escalando conforme a loucura de Laura (e de Oliver, que não compreendemos bem as motivações, inicialmente), avançam.

Em linhas gerais trata-se de uma obra tensa, sombria e que se utiliza, em alguma medida, do horror físico - que ficam evidenciadas nas impactantes transformações corporais de Oliver. Que sai de um menino que, de forma um tanto esquisita, resolve morder uma faca, até chegar em alguém que come mesas, objetos e a própria carne se for preciso. Tudo para saciar a fome de algo que parece estar parasitando, de forma oculta, seu pequeno corpo. Seu ser. Há no contexto uma ambiguidade sobre o que pode ter ocorrido, de fato, com a filha de Laura e isso nunca fica claro - sendo parte do mistério geral. Mas o caso é que trata-se de uma experiência que alterna momentos mais contemplativos, com outros um tanto movimentados e que traz o elementos sobrenatural como metáfora para a superação da dor. 

Nota: 8,0

 

segunda-feira, 15 de setembro de 2025

Novidades em Streaming - O Esquema Fenício (The Phoenician Scheme)

De: Wes Anderson. Com Benicio Del Toro, Mia Threapleton, Michael Cera, Riz Ahmed e Tom Hanks. Comédia / Drama, EUA / Alemanha, 2025, 101 minutos.

Quem acompanha a carreira do Wes Anderson sabe que, meio que sempre, o seu cinema terá as mesmas características. Aliás, poucas vezes será tão fácil encontrar uma assinatura tão particular em filmes, como no caso do realizador - com sua paleta de cores invariavelmente vibrante, simetria geometricamente organizada, travellings hotizontais que nos levam de um personagem à outro e uma certa teatralidade no todo. Bom, e pra que o troço não se torne cansativo demais, repetitivo demais - aquela coisa da estética pela estética, sem um propósito mais claro -, restam, claro, as boas histórias. E se não é sempre que o diretor acerta, como no caso do recente Asteroid City (2023), com O Esquema Fenício (The Phoenician Scheme) é possível afirmar que temos um grande filme. Tragicômico na medida certa e com aqueles personagens adoráveis e imperfeitos, em suas famílias disfuncionais.

Aqui, a comédia bobagenta e irônica tem como pano de fundo uma trama de espionagem, que envolve o industriário Anatole Zsa-Zsa Korda (Benicio Del Toro), um traficante de armas que pretende ampliar o seu império, mas que se vê em maus lençois quando o Governo, em uma manobra pra tentar conter as ambições do megaempresário, aumenta artificialmente os tributos de materiais utilizados na construção. O caso é que Korda é um trambiqueiro de marca maior e os agentes do Estado estão, de toda a forma, tentando barrá-lo. Aliás, na primeira sequência do filme, o sujeito escapa da morte após uma explosão em um de seus aviões - em uma tentativa de sabotagem. Preocupado com os rumos de seus negócios, o protagonista se (re)aproxima de sua única filha, a noviça Liesl (Mia Threapleton). A ideia é fazer com que ela abandone a Igreja e siga o projeto de expansão com a construção de uma série de projetos de engenharia.

 


Ao mesmo tempo, desesperado pelo aumento do preço de parafusos e roldanas, Korda empenhará uma complexa jornada pelo deserto, na intenção de visitar cada uma das obras - de túneis, hidrelétricas e vias fluviais -, na intenção de tentar diluir as futuras dívidas entre outros investidores. E, bom, não será preciso ser nenhum adivinho para perceber como esse microcosmo, em alguma medida, reflete justamente o macro, com suas ambições políticas, mesquinharias e práticas nem sempre éticas - o que pode ser percebido pela diversidade de sujeitos extravagantes que ele encontra pelo caminho, casos do príncipe fenício Farouk (Riz Ahmed), o investidor Leland (Tom Hanks), o revolucionário comunista Sergio (Richard Ayoade) e o gângster dono de uma boate Marseille Bob (Mathieu Amalric). Todos surgindo como motivos para uma série de piadas que quase parecem saídas de algum programa de humor dos anos 90.

Em uma delas, Korda é instigado a decidir o futuro das taxas (com suas fraudes e chantagens) em uma partida de basquete com Farouk e Leland e mais o desconfiado irmão e parceiro de negócios deste último, o mal-humorado Reagan (Bryan Cranston) - e talvez não sejam por acaso esses nomes de personagens, que aludem a figuras reais ou fictícias de um passado não tão distante (aliás, a trama se passa nos anos 50). Como se não bastassem as "duras" negociações de Korda, ele ainda precisa lidar com uma série de problemas familiares. Há os mal tratados filhos adotivos e um possível caso de adultériio, que envolveria o próprio irmão Nubar (Benedict Cumberbatch), que o teria traído com sua própria esposa, o que o teria levado, talvez, a assassina-la. O que gera uma desconfiança permanente em Liesl.

 

 

Com piadas que aludem a clássicos como Dr. Fantástico (1964) - em certa negociação, os envolvidos trocam armas de guerra, como bombas e granadas, como se fossem meros objetos domésticos -, e instantes que dobram a aposta na bizarrice da violência moderna, como no momento em que Maresille Bob ameaça se explodir em um atentado, caso as partes não concordem sobre as questões orçamentárias, esta é aquela obra que condensa suas críticas a toda a estrutura do capitalismo, com suas ambições, truculência e individualismo atroz. Repleto de grandes estrelas - ainda há os não citadas Scarlett Johansson (como a prima Hilda), Michael Cera (o tutor de Liesl), Rupert Friend (o agente do Governo Excalibur, que está empenhado em destruir o império de Korda) e, como não poderia deixar de ser, Bill Murray (que encarna, óbvio, Deus), esse é aquele projeto que diverte para além do aparato estético. Há alguma substância aqui. Em um conjunto que faz valer a pena. 

Nota: 8,0 

terça-feira, 9 de setembro de 2025

Pitaquinho Musical - CMAT (Euro-Country)

Já faz umas três temporadas que sempre que a CMAT lança um novo disco, ele vai imediatamente pras cabeças, Ninguém por aqui deu muita bola quando ela entregou, em 2022, o absolutamente imperdível If My Wife New I'd Be Dead - nosso segundo colocado na relação daquele ano -, mas agora, com Euro-Country, tá com cara de que ela finalmente (e com justiça) vai furar a bolha. Até porque na lista de melhores artistas da última semana que ninguém ouviu (mas já deveriam ter ouvido), poucos terão a capacidade única de unir letras debochadas - pontuadas por uma série de críticas e comentários sociais e políticos ácidos e quase cínicos -, com violões country e arranjos pop perfeitos como Ciara Mary Alice Thompson. Como em seus registros anteriores, esse é um disco de dor e de humor, que ri de si, mas que também examina as crises atuais com sincera confiança.

 


Um bom exemplo dessa mistura pode ser percebido no sofisticado single Take A Sexy Picture of Me, que discute imagem e aceitação, a partir de uma experiência pessoal, em que a irlandesa sofreu uma onda de hate após um vídeo publicado no Instagram da BBC Radio 1, ano passado. "Nunca achei que fosse obesa e agora deveria ser presa por ter uma bunda grande e gorda", debochou à época, após ser surpreendida pela chuva de comentários atacando sua aparência. E a real é que essa é a habilidade de CMAT: a de pegar temas espinhosos para convertê-los em grandes canções, cheias de versos irônicos e de refrãos pegajosos. Político mas cintilante, reflexivo mas agridoce, esse é um álbum que parece se expandir a cada nova audição. O que faz com que ótimas músicas como When a Good Man Cries (sobre fazer um parceiro sofrer, mesmo que ele não tenha feito nada de errado) ou Running/Planning (a respeito de pressões sociais e planos conformistas) se tornem melhores a cada repetição!

Nota: 9,0 

segunda-feira, 8 de setembro de 2025

Novidades em Streaming - Sol de Inverno (Boku no Ohisama)

De: Hiroshi Okuyama. Com Keitatsu Koshiyama, Sosuke Ikematsu e Kiara Nakanishi. Drama, Japão / França, 2024, 90 minutos.

Existe uma cena bastante singela ainda no início de Sol de Inverno (Boku no Ohisama) e que, em alguma medida, resume o encantamento daquilo que acompanharemos na obra do diretor Hiroshi Okuyama. Nela, o pequeno Takuya (Keitatsu Koshiyama) fica hipnotizado enquanto assiste a um grupo de meninas praticando patinação no gelo. A estação mais gelada do ano chegou, e o jovem troca o beisebol dos dias primaveris, pelo hóquei congelante, em que ele não parece se adaptar muito bem. Como goleiro - que é o que sobra pra quem não tem muita habilidade em qualquer esporte coletivo -, ele acaba levando uma dolorida "bolada" (ou discada, vá lá), que lhe dá um vergão junto às costelas. A real é que ele abomina com todas as forças o hóquei sobre o gelo. E o interesse pelas patinadoras não envolve necessariamente as meninas em si e, sim, a delicadeza do esporte que ele observa. Com seus gestos majestoso e elegância única.

Sim, como se fosse o menino apaixonado por balé clássico de Billy Elliot (2000), aqui temos um garoto que sonha em ser patinador artístico. Algo que ele nem entende direito por quê gosta. "Um esporte de garotas", debocha uma das meninas quando percebe Takuya - que, de quebra, sofre uma gagueira que lhe rende o apelido de Tata - ensaiando os primeiros (e um tanto desajeitados) passos. Só que no canto do rinque, o protagonista também é espionado pelo professor Arakawa (Sosuke Ikematsu), que fica comovido com as tentativas do menino, com suas repetidas quedas e jeito meio desengonçado. "Os patins de hóquei não servem para isso", explica o instrutor à Takuya, enquanto lhe estende um par ideal para a prática. "Considere isso um empréstimo", afirma. O que dá início a uma parceria e também a uma amizade entre treinador e aluno.

 


Claro que, diferentemente do que ocorre em filmes hollywoodianos, aqui não teremos um exame do preconceito e da homofobia tão acentuados, tão escancarados. As coisas ocorrem meio que pelas frestas, evoluindo com sutileza, assim como se espalham de forma econômica, mas vigorosa, os raios de luz que entram no complexo esportivo em que boa parte da ação ocorre. Como filme oriental, muito do que se diz é o não dito. Os silêncios são longos, assim como as sequências cheias de carisma em que a dupla celebra qualquer evolução. Tudo sempre meio na encolha pra não chamar a atenção. Incluído entre as garotas, Takuya passa a fazer dupla com a patinadora Sakura (Kiara Nakanishi), uma atleta bastante técnica, que será justamente o ponto de desequilíbrio. Ela parece nutrir uma certa paixão pelo professor, que mostra uma afetuosa (no melhor sentido) atenção ao seu novo pupilo. Além do fato de o instrutor ser gay - ele tem um namorado que reside com ele. 

Em alguma medida, esse é um filme nunca exagerado. Como se emulasse a passagem das estações, aqui o que vale é o exercício de paciência. As sequências em que a família é envolvida surgem envoltas em uma aura enigmática, quase incerta. Há uma beleza onírica que se percebe já na primeira sequência do longa, quando um Takuya paralisado, percebe a queda dos primeiros flocos de neve que evidenciam a chegada da nova estação. O inverno ali naquela ilha japonesa será invariavelmente gelado, mas o sol será uma figura onipresente, mostrando que há calor em cada fragmento - o que é reforçado pela fotografia levemente granulada, de tons amarelados. Há uma maravilhosa sequência de treino em um lago congelado - cenário que retornará mais adiante -, com um outro sentido. Não há nada definitivo aqui. Apenas um exame sobre liberdade de fazer o que se ama. E de como isso pode ser fundamental na nossa formação como sujeitos.

Nota: 8,0 

 

Cinema - A Vida de Chuck (The Life of Chuck)

De: Mike Flanagan. Com Tom Hiddleston, Chiwetel Ejiofor, Mark Hamill, Karen Gillan e Jacob Tremblay. Drama / Fantasia, EUA, 2025, 111 minutos.

Uma jovem artista de rua toca bateria em uma esquina qualquer. As pessoas passam, não dão muita bola, seguem suas vidas. Aquilo que a gente meio que vê nas grandes cidades, cotidianamente. Até o momento em que um sujeito bem vestido - com um terno bem cortado -, de pasta na mão, cruza por ela. E, de forma inesperada, para. Para, ouve, começa a absorver aquele ritmo cadenciado e inicia uma dança. Que começa econômica, mas evolui de forma expansiva, chamando a atenção de outros. Uma outra mulher é convidada pelo homem a dançar com ele, se propondo a conduzi-la. O que formará um conjunto belo e envolvente, e que talvez dê conta do caráter aleatório da existência. A gente nunca sabe onde está exatamente a linha de chegada, quem deixará marcas em nossas vidas, quais memórias teremos. Ou mesmo dores, desejos, arrependimentos. É meio óbvio que tudo isso nos percorra. E ao mesmo tempo muito lindo como A Vida de Chuck (The Life of Chuck) lida com todas essas questões.

A etapa em que o homem dança com a mulher, ao som de uma baterista em um dia tranquilo faz parte do segundo ato da obra de Mike Flanagan, inspirada em um conto recente de Stephen King (aliás, uma das especialidades do realizador, adaptar obras do autor de livros de mistério). Esse segmento - seu título é Artistas de Rua Para Sempre -, é meio que fundamental para a compreensão daquelas que parecem ser algumas das ideias centrais da produção. A de que não somos absolutamente nada e ninguém "na fila do pão", mas que ao mesmo tempo somos capazes de coisas maravilhosas. Chuck (Tom Hiddleston na fase adulta), o homem que dança, é apenas um contador que deixou o sonho de ser artista pelo caminho. Mas que reaviva esse ideal, justamente no momento em que encontra Taylor (Taylor Gordon), a baterista. Chuck ainda não sabe, mas tem apenas nove meses de vida pela frente. Ou vai ver talvez ele saiba e sinta isso. E não queira desperdiçar nenhuma oportunidade.

 


Importante que se diga que nenhuma análise que se faça desse belo projeto poderá ser definitiva. Essa é uma obra bastante aberta e cheia de possibilidades de interpretação. Chuck é alguém que morre com apenas 39 anos e, quando o filme começa, no exato instante em que o ocaso de sua existência parece em curso, ao mesmo tempo o nosso planeta parece ir pelo mesmo caminho. No ato 3, chamado de Obrigado, Chuck - sim, a coisa vai de trás pra frente, tornando tudo mais formidável - temos o professor de Ensino Médio, Marty Anderson (Chiwetel Ejiofor). Que parece enfastiado com os rumos da educação, ao mesmo tempo em que se depara com o caos ambiental que se instala - com grandes tsunamis, queimadas, vulcões e crateras que afetam sua vida e os demais -, que resulta na queda da internet, na perda de serviços telefônicos, da luz e da esperança como um todo. Desesperado, ele tenta ir ao encontro de sua ex-esposa Felicia (Karen Gillan), enquanto tudo o que enxerga são placas, outdoors e mensagens oficiais na TV, saudando a existência de um certo Chuck. Que parece ser ao mesmo tempo o último meme, e algum tipo de esperança que conecta todos ali ao espaço material. 

Já na primeira parte, Eu Contenho Multidões, viajaremos para infância e para a juventude de Chuck, com suas memórias embotadas pela perda precoce dos pais em um acidente de carro, com ele sendo criado pela afável avó Sarah (Mia Sara) - que é quem estimula o protagonista a dançar - e pelo taciturno avô Albie (Mark Hamill), que se torna alcoólatra após a perda do filho. Na casa dos avós, permanece um mistério que envolve um quarto no sótão: a recomendação é de que ele nunca seja aberto. Sob hipótese alguma. Na juventude, os dissabores e as complexidades do crescer, com suas paixões gerais e incertezas, colidem com certo idealismo capaz de superar fantasmas literais, ou reais, que rondam a vida do menino. Fantasioso, eventualmente onírico, repleto de simbolismos e de metáforas sobre dor, perdas, memória, luto e amadurecimento e futuro, essa é uma das grandes obras da temporada e que nunca se fecha simplesmente, quando sobem os créditos. Somos uma partícula minúscula dentro da teoria do Calendário Cósmico - nos lembra o professor Marty em certa altura. E ainda assim, repletos de vida, de contradições e de experiências extraordinárias. 

Nota: 9,0 

 

quinta-feira, 28 de agosto de 2025

Novidades em Streaming - Memórias de Um Caracol (Memoirs of a Snail)

De: Adam Elliot. Com Sarah Snook, Jacki Weaver, Kodi Smit-Mcphee e Eric Bana. Animação / Drama, Austrália, 2024, 95 minutos.

Vamos combinar que em tempos de inteligência artificial e de consumo rápido, um filme em stop motion como Memórias de Um Caracol (Memoirs of a Snail) - um dos indicados ao Oscar na categoria Animação na edição desse ano - se torna ainda mais relevante. E bastam os primeiros minutos da obra dirigida por Adam Elliot - do igualmente ótimo Mary e Max: Uma Amizade Diferente (2009) - para que sejamos impactados pelo visual (e isso que um amontoado de entulho, em muitos casos, não parece ter assim tanta "beleza"). Mas esse é um projeto que se deleita em sua complexidade do ponto de vista técnico, ao mesmo tempo em que entrega uma narrativa simples e trágica sobre dois irmãos gêmeos que perdem a mãe durante o parto e, mais adiante, veem o próprio, que sofre de um quadro severo de apneia do sono, também padecer.

Sim, apesar de essa ser uma animação, é importante que se diga que não há nada de infantil aqui. Aliás, a própria classificação indicativa do projeto - voltado à maiores de 17 anos ou menores acompanhados dos pais -, deixa claro o fato de esta ser uma produção para adultos. Com temas complexos como luto e solidão e até fanatismo religioso, problemas de saúde e fetiches sexuais, surgindo aqui e ali como parte da narrativa. Na trama, a protagonista Grace (Charlotte Belsey na versão criança e Sarah Snook, na adulta) é quem conta a história - que tem como ponto de partida a trágica morte de Pinky (Jacki Weaver), uma ex dançarina de bordel e leitora compulsiva, que se torna uma espécie de amiga involuntária da jovem. Em seu leito de morte, Pinky grita um inesperado "potatoes" - como se fosse algum tipo de Rosebud dos novos tempos -, deixando uma pulga na orelha sobre o significado daquilo. O que é só uma desculpinha pra uma volta no tempo para que toda a história seja rememorada.

 


De forma divertida, Grace solta no jardim um de seus caracois - seu nome é Sylvia - e mais adiante entenderemos como ela se tornaria uma colecionadora desse tipo de molusco. Na volta no tempo, a protagonista narra como sofria bullying em sua juventude por conta de uma cicatriz acima de sua boca, resultado de uma operação de lábio leporino, e de como o seu irmão Gilbert (Mason Litsos na infância e Kodi Smit-Mcphee na fase adulta), a defendia de seus colegas provocadores. Aliás, a defendia a ponto de se oferecer para uma transfusão de sangue comovente durante sua cirurgia - o que lhe levaria a crer que morreria. São pequenos instantes que emocionam e que ajudam a construir a história, inspirada em eventos reais da própria juventude de Elliot, cheia de adversidades, que ajudariam na formação e no amadurecimento de Grace.

Em sua trajetória, Grace descreve desde o auxílio e um sem teto de quem se torna amiga - um magistrado de nome James (Eric Bana), que é destituído do cargo por se masturbar em público -, e de como viria a ser adotada por um excêntrico casal de swingers (sim, de troca de casais). Já Gilbert, um piromaníaco de carteirinha, acaba enviado à casa de uma família de fanáticos religiosos, que utiliza a sua intolerância para oprimir. O que gera uma série de instantes tragicômicos. A chegada de Pinky à vida de Grace também é descrita com riqueza de detalhes - sendo ela uma senhora de hábitos curiosos, que teve uma série de empregos, perdeu dois maridos, teve o dedo mindinho decepado e frequenta praias de nudismo. Já o candidato a namorado da protagonista, se insere na trama como um jovem provavelmente fetichista, que se aproveita dela pelo seu fascínio por "gordinhas". Esquisito, mas esperançoso, soturno mas cheio de humanidade, esse é um filme que une técnica e roteiro de forma inequivocamente honesta. O que faz valer cada segundo.

Nota: 8,5

 

terça-feira, 26 de agosto de 2025

Pitaquinho Musical - Lorde (Virgin)

Quando Lorde lançou o Solar Power (2021), a opinião da crítica e do público foi meio que unânime: o terceiro disco da neozelandesa, por melhores que fossem as suas intenções, parecia meio deslocado do seu tempo. O mundo recém saía de uma pandemia, uma série de tensões perto em vias de ebulição e o álbum parecia um convite quase ingênuo a uma dança psicodélica de maturidade forçada. Bom, o fato é que não emplacou. Ainda mais depois do impacto de Melodrama (2017), nosso primeiro colocado na lista internacional daquele ano, que permanece, com seu apelo à dança solitária e frenética no escuro, como um dos registros mais importantes da década anterior. E, bom, passado todo esse tempo - e é quase inacreditável que a artista já esteja com doze anos de carreira -, chegamos à Virgin que é, com seus sintetizadores sombrios e letras bastante confessionais, um retorno às origens. Por mais batido que possa parecer esse conceito.

 


E esse tipo de renascimento observado nas canções - cheias daquela melancolia movimentada, que funciona com fones de ouvido na madrugada do quarto, mas também em danças hipnóticas nos inferninhos da vida -, também dialoga com uma série de aspectos da vida pessoal, de Lorde e que vão desde um término de relacionamento, passando por um transtorno disfórico pré-menstrual que ocorreria após ela parar de tomar anticoncepcional, até chegar às cobranças relacionadas à imagem pessoal e ligadas às exigências da indústria. O resultado é uma colação de canções que já nascem com aquela cara de hino com refrãos pegajosos, como no caso de Man of The Year (que investiga às complexidades de gênero), Favourite Daughter (sobre medos decorrentes da fama inesperada e a necessidade de aprovação) e Broken Glass (a respeito do impacto dos distúrbios alimentares). Visceral, sexy, adulto, mundano e totalmente conectado com os dilemas contemporâneos. Lorde sendo Lorde era só o que precisávamos nesse 2025.

Nota: 9,0 

Cinema - Amores Materialistas (Materialists)

De: Celine Song. Com Dakota Johnson, Pedro Pascal, Chris Evans e Zoe Winters. Drama / Romance, EUA / Finlândia, 2025, 116 minutos.

Vamos combinar que parte do magnetismo do cinema de Celine Song talvez esteja em sua capacidade de subverter pequenas lógicas. Ainda mais quando o assunto é o cinema e as expectativas criadas em relação ao que assistimos. No ótimo e elogiado Vidas Passadas (2023), por exemplo, ela brincou com as expectativas relacionadas ao primeiro amor. Do que poderia ter sido e nunca foi. E de como essas memórias ligadas às nossas paixões juvenis, muitas vezes podem surgir como um borrão idealizado. Como uma fantasia romantizada de uma outra época e que, verdade seja dita, muito provavelmente não existe mais. Afinal de contas as pessoas mudam e, que bom que é assim. Em seu novo projeto, Amores Materislistas (Materialists), a realizadora traz de volta um ethos meio batido, mas que costuma render em comédias românticas ou dramas de época: o casamento deve ser por amor ou por dinheiro?

Sim, a gente já viu essa história milhares de vezes e em tempos tão individualistas e de apelo à certas tradições o assunto parece receber uma injeção de oxigênio. Na trama, Dakota Johnson é Lucy, uma profissional que trabalha como casamenteira - meio que como um Tinder em forma de ser humano, que planilha candidatos solteiros, faz um levantamento de suas preferências em termos de idade, altura e condição financeira e tenta unir possíveis almas gêmeas. Um negócio que parece ser lucrativo junto à burguesia de Nova York, tanto que ela está prestes a celebrar a nona união entre pombinhos que não se conheciam e que agora estão prestes a seguir para o altar. E é justamente durante a festa de casamento de sua mais recente cliente, que ela conhece o charmosíssimo e elegante Harry (Pedro Pascal), um sujeito agradável que, nas impressões da profissional, é uma espécie de pão quente para os seus negócios. Solteiro, bem resolvido, com grana, é garantia de sucesso com suas clientes mais exaustas de tudo.

 


Só que, como nas tradições que envolvem obras do gênero, Harry não parece interessado em alguma das mulheres do catálogo de Lucy. O que ele deseja é a própria, com quem ensaia uma dança sensual que vai quase para além do simbólico. E como as coisas não costumam ser assim tão óbvias, há na vida de Lucy um terceiro integrante: no caso o garçom John (Chris Evans), um ator em meio período que luta para vencer na vida, enquanto as dívidas se acumulam (e as frustrações também). Por trafegar em um ambiente de tanta pompa e elegância, Lucy parece desejar ser parte daquele contexto de eventos chiques, gastronomia farta e bebidas sofisticadas. Harry, por mais que Lucy negue, tem o potencial para oferecer isso. Ao passo que o esforçado John, em meio ao desespero de um amor que nunca se resolve financeiramente, aparecerá em flashbacks bastante francos, encarnando o ex quebrado que calcula até os centavos na hora de oferecer um almoço de aniversário à protagonista ("não é que eu te odeie por ser pobre, mas nesse momento te odeio justamente por isso", afirma Lucy com uma franqueza atroz).

Para quem acredita que o amor possa superar todas as adversidades, inclusive as que envolvem a falta de dinheiro, a honestidade com que Lucy lê o mundo pode ser quase dolorida (ainda que a obra de Song possa preparar, aqui e ali, as suas ciladas). "Casamento é um negócio e sempre foi assim", "o jeito que você paga a conta de desconcerta", "um dia, sem motivo algum, vocês vão passar a se odiar, parar de fazer sexo, se trair", são algumas das frases práticas e quase niilistas que a protagonista desferirá com uma honestidade assombrosa, em meio a cenários luxuosos e que reforçam o prazer intelectual que é assistir pessoas tão bonitas, com discursos tão ambíguos e realistas, mas que denotam de forma vibrante a complexidade dos relacionamentos, com suas frustrações, vulnerabilidades, medos e incertezas. É, ao cabo, uma obra gostosa de ver e talvez não tão completa como Vidas Passadas. Mas tem uma beleza que foge daquele escopo óbvio de começo, meio e fim redondinho de comédia romântica mais previsível. Ainda que não seja necessariamente surpreendente. Ah, detalhe que não pode passar batido: a trilha sonora de nomes como The Ronettes, Cat Power, Harry Nilsson e Françoise Hardy é a cereja do bolo.

Nota: 8,0