terça-feira, 29 de abril de 2025

Novidades em Streaming - Mickey 17 (Mickey 17)

De: Bong Joon-ho. Com Robert Pattinson, Steven Yeun, Mark Ruffalo e Toni Collette. Ficção Científica / Comédia / Aventura, Coréia do Sul / EUA, 2025, 138 minutos.

"Ei, Mickey, qual a sensação de morrer?". Essa é uma pergunta que o protagonista de Mickey 17 (Mickey 17), vivido por Robert Pattinson, ouve diversas vezes no transcorrer da história. Como é esse sentimento? "Digamos, você está acostumado com isso". E, bom, esse dilema poderia marcar o ponto de partida de mais uma ficção científica com um viés mais existencialista - e que é o tipo de projeto que, em muitos casos, adoro. Aliás, não são poucos os exemplos bons de distopias do tipo - de bate-pronto lembro do ótimo Lunar (2009), que deve estar escondido em alguma plataforma de streaming e que fez sucesso antes de Black Mirror ser o que é hoje. Só que essa coisa de o mundo em 2025 operar como um grande Black Mirror em edição estendida traz também um problema: parece mais difícil sermos surpreendidos. Ou nos impressionarmos. Ainda mais ao sabermos que as consecutivas mortes de Mickey são apenas parte daquele contexto. Como é partir desta pra uma melhor? Ou, mais do que isso, como é ser simplesmente descartado? São perguntas que param no meio do caminho.

Porque o caso é de que nessa obra de Bong Joon-ho - sim, o nome por trás não apenas do oscarizado Parasita (2019), mas também de outras joias do cinema alternativo, como Expresso do Amanhã (2013) e Okja (2017) -, pouco importa a morte, a vida ou as possíveis reflexões sobre luto, memória, futuro ou passado. O capitalismo tardio é um problema de AGORA e é nele que o livro do romancista Edward Ashton, escrito em 2022, parece centrar sua força. Sim, as questões tecnológicas estão todas ali - e as operações que envolvem esses avanços podem até gerar um certo impacto (especialmente do ponto de vista do mercado, dos empregos e da substituição do homem pela máquina). Só que, nesse sentido, diferentemente do que ocorre em experiências mais metafísicas, aqui temos o exame da necessidade apenas de sobreviver. De ascender. De forma inadiável e individualista. Nem que para isso seja necessário morrer. Para viver. Num paradoxo legítimo do século.

 


Em alguma medida, esse tipo de conflito em um cenário pós-apocalíptico, com pessoas tentando sair de um espaço de vulnerabilidade a qualquer custo, já havia sido explorado no citado O Expresso do Amanhã. Aqui, Mickey é um sujeito de vida simples, um empresário do baixo escalão que, desesperado com a perseguição de um agiota com cara de poucos amigos que deseja a sua cabeça numa bandeja, resolve se inscrever em uma expedição espacial em um cargo nomeado de "dispensável" - que é o integrante da tripulação incumbido de realizar uma série de tarefas perigosíssimas no espaço e em novos planetas. Tarefas que podem resultar na sua morte, o que não chegará a ser exatamente um problema, já que ele já teve uma morte previamente induzida (de seu eu real), com sua memória sendo preservada e restaurada, o que lhe permitirá uma espécie de retorno infinito a partir de um processo de reimpressão (em que ele ressurge como um clone, com mente reimplantada e tudo). Sim, parece estranho. É. E até aí tava tudo mais ou menos interessante.

Só que não demora para que Mickey desenvolva um sentimento de paixão - algo legitimamente humano - pela agente de segurança Nasha (Naomi Ackie), que é outra viajante que está na expedição em direção do gelado planeta Niflheim. E, como dei a entender anteriormente, as coisas dentro da nave poderiam ser bastante estranhas se não fosse a vida real. Do mundo que fica pra trás pouco se sabe, que não seja o fato de o nosso planetinha ter se tornado uma espécie de Terra de ninguém. A replicação de clones não está permitida em solo terrestre, até mesmo pela controvérsia que poderia gerar (e é uma pena que não haja mais espaço para esse debate). Ainda assim o congressista Kenneth Marshall (Mark Ruffalo), que parece uma mistura de Elon Musk com Donald Trump (bem apropriada ao momento), deseja levar seu plano de colonização adiante. Arrumando uma brecha para que o procedimento da cópia humana role solta no espaço. E, bom, depois disso o filme envereda pra ação, pra perseguição, com clones dos clones em confronto, um romance torto que a gente nunca se importa inteiramente, um líder lunático tentando dominar o universo, uns bichos meio estilo Star Wars bem amigáveis e um sem fim de alegorias caóticas que poderiam ser resumidas com um "veja bem, galera, talvez pudéssemos ser melhores do que isso". Só que é um filme que morre pelo caminho. E não há clone que resolva.

Nota: 5,5 


segunda-feira, 28 de abril de 2025

Novidades em Streaming - Código de Ética (Elfogy a Levego)

De: Katatlin Moldovai. Com Ágnes Krasznahorkai, Soma Sándor, Tunde Skovran e Áron Dimény. Drama, Hungria, 2023, 104 minutos.

Ana (Ágnes Krasznahorkai) é uma professora exemplar de Artes e Literatura do Ensino Médio. Tem uma reputação ilibada, é respeitada pelos demais docentes e muito querida pelos alunos. Aliás, seus resultados são excelentes não apenas em sala de aula, local em que ela é capaz de gerar interesse genuíno dos estudantes por autores e poetas - com métodos divertidos que tornam as aulas sobre Whitman e Baudelaire mais leves -, mas também após a conclusão do terceiro ano, em vestibulares na sequência da vida acadêmica. Desde que ela começou a lecionar há mais de 10 anos no educandário húngaro Balassi é assim. Só que lá pelas tantas, Ana comete um "grave" erro. Ela resolve sugerir aos seus pupilos - um grupo de jovens na faixa de 17 anos -, uma atividade extracurricular: assistir ao filme Eclipse de Uma Paixão (1995), que conta a história dos autores dos escritores Verlaine e Baudelaire que, não apenas foram contemporâneos, mas viveram um tórrido relacionamento.

Aparentemente não há nenhum problema ou algo que impeça adolescentes próximos de atingir a maioridade assistirem a esse tipo de conteúdo, né? Esconder a homossexualidade, a diversidade das preferências sexuais ou tentar fazer com que os jovens passem ao largo de obras do tipo, simplesmente fará os gays e as lésbicas desaparecem da face da Terra, né? Claro que não. Sempre haverá um pai de família preocupadíssimo com as suas crianças - aquele "cidadão de bem" exemplar, que acha que se seu pobre filhinho tiver contato com produções como a citada acima, ele se converterá automaticamente em um ouvinte assíduo da Lady Gaga, um seguidor de Ru Paul e suas drag races e um defensor contínuo da cultura woke e do gayzismo cultural. Sim, pessoas trans usando banheiros unissex costuma ser uma preocupação permanente do conservador reacionário que adere à extrema direita. Enquanto o mundo derrete - e não apenas do ponto de vista ambiental.

 


Bom, não é preciso dizer que o ótimo Código de Ética  (Elfogy a Levego) - confesso que o título em português não me agradou muito -, é atualíssimo. Ainda mais em tempos em que pais e mães preocupadíssimos com aquilo que seus filhos consomem (mais em sala de aula do que na internet, imagino), se sentem autorizados a interferir em ementas ou conteúdos programáticos de instituições de ensino - e basta lembrar do recente caso envolvendo o ótimo livro O Avesso da Pele, de Jéferson Tenório, e toda a celeuma causada na nossa adoentada sociedade, pra percebermos que o que se vê no filme, que está disponível pra aluguel em diversas plataformas de streaming, é de um realismo atroz. É mais ou menos aquilo que encontramos no também formidável curta metragem indicado ao Oscar O ABC da Proibição dos Livros (2024) ou mesmo, de forma meio enviesada, no espetacular filme romeno Má Sorte no Sexo ou Pornô Acidental (2021).

Ana apenas indica um filme. Que os alunos sequer são obrigados a assistir. Mas Viktor (Soma Sándor), um jovem de grande sensibilidade e que tem um interesse genuíno por teatro e poesia, resolve conferir a obra no espaço privativo do seu quarto. Tudo corre mais ou menos bem até o seu pai entra no quarto e o flagra assistindo a produção. "Meu Deus, dois homens se amando?". Ok, ele não verbaliza isso. Mas pensa. E vai cobrar uma posição da escola sobre o fato de uma professora estar passando pornografia, pederastia ou o que quer que seja para os estudantes. Há um pano de fundo interessante sobre o educandário estar prestes a completar 150 anos de atividades e estar na dependência da liberação de uma linha de crédito de possíveis investidores para a sua continuidade - sendo o pai de Viktor uma pessoa influentíssima nesse sentido. "Mandei meu filho para a escola para ter uma educação adequada", esbraveja na sala da diretora esse provável seguidor apaixonado de Viktor Órban e do Escola Sem Partido. A verdade é que só muda o País. Enquanto as calotas polares derretem, a guerra comercial escala e os imigrantes são tratados como a escória humana, alguns pais acreditam em lavagens cerebrais de esquerda, em comunismo abstrato ou em ideologia de gênero. O mundo anda pra trás. E nós que lutemos.

Nota: 9,0 


quarta-feira, 23 de abril de 2025

Cine Baú - Pavor nos Bastidores (Stage Fright)

De: Alfred Hitchcock. Com Jane Wyman, Marlene Dietrich, Richard Todd e Alastair Sim. Suspense / Drama, Reino Unido, 1950, 110 minutos.

Muitas vezes tido como um filme menor de Alfred Hitchcock, Pavor nos Bastidores (Stage Fright) possui uma camada mais abaixo que parece dialogar perfeitamente com os cenários labirínticos da casa de espetáculos em que boa parte da trama se desenrola. E que envolve o poder da atuação. Da persuasão. Da arte de interpretar papeis e, em última análise, enganar o público. Filmes de suspense com triângulos amorosos, mulheres fatais, investigadores charmosos, assassinatos e motivações escusas não eram uma novidade nos anos 50 - e o próprio diretor inglês já havia encarreirado alguns clássicos no gênero. Mas aqui há uma alegoria meio óbvia sobre papeis se modificando o tempo inteiro, como no caso de Eve Gill (Jane Wyman), a aspirante a atriz que, mais adiante se converte não apenas em uma jornalista improvisada, mas também em uma empregada.

Claro que esse comportamento camaleônico tem um propósito: o de proteger o namorado Jonathan Cooper (Richard Todd), que se torna o principal suspeito do assassinato do marido da excêntrica cantora Charlotte Inwood (Marlene Dietrich), com quem estaria tendo um caso. Mas claro que num ambiente teatral e de ilusões como o dos palcos, nada será o que parece. Quando o filme - que é inspirado em um romance de 1947 escrito por Selwyn Jepson - inicia, Jonathan interrompe um ensaio de Eve para lhe relatar um grave caso: o de que Charlotte o teria visitado após assassinar o próprio marido, com o vestido sujo de sangue. Para auxiliá-la, o sujeito teria ido até a casa da cantora para buscar uma outra muda de roupas, tendo na ocasião a ideia de modificar o cenário, mexendo em moveis, quebrando portas, espalhando papeis para dar a impressão de ter havido, ali, um assalto brutal.

 


Só que, enquanto o marido de Charlotte jaz no chão, Jonathan é surpreendido por Nellie Goode (Kay Walsh), a governanta que retornava a casa e que, talvez o tivesse flagrado lá dentro. Em resumo, ele consegue fugir da polícia e agora precisa da ajuda de Eve, que o leva até a casa do seu pai (Alastair Sim), um sujeito bem humorado e extravagante que reside na costa, em uma residência idílica. Só que enquanto protege o namorado, Eve inicia uma espécie de investigação a parte. Primeiro faz amizade com o detetive Wilfred Smith (Michael Wilding). Após, finge ser uma repórter que está escrevendo uma matéria sobre o caso, subornando Nellie para que ela se finja de doente, apresentando Eve como a prima distante Doris, para que esta passe a trabalhar com Charlotte. Esse vai e vem parece confuso e parte do charme está justamente no esforço da protagonista em modificar de papel a cada novo encontro - o que faz a narrativa se desenrolar.

Por fim, Eve acha um tanto curioso o fato de Charlotte ter recém se tornado viúva, o que não a impede de se apresentar nos palcos. "O show tem de continuar", afinal - e é inegável o impacto da ambígua cena em que a personagem de Dietrich se apresenta em um palco onírico, cheio de plumas e outros adereços, ao som de The Laziest Gal in Town, de Cole Porter (aquela dos clássicos versos "não é porque eu não deveria / Não é porque eu não faria / E, você sabe / Não é porque eu não poderia / É simplesmente porque / Eu sou a garota mais preguiçosa da cidade"). Com idas e vindas, excelentes interpretações e ótimas surpresas, Pavor nos Bastidores seria criticado, mais tarde, por enganar o público até demais, utilizando como recurso um flashback pouco confiável (pra não dizer falso). Ainda assim, se levarmos em conta o uso do próprio teatro como símbolo da arte - escapista ou não - e de como nos refugiamos por duas horas nesse espaço tão artificial quanto elegante, o fato de sermos deliberadamente manipulados, nos parecerá apenas mais um truque certeiro de Hitchcock. Eu passo pano.

 

Pitaquinho Musical - Marina Sena (Coisas Naturais)

Menos autotunes enfadonhos, efeitos eletrônicos previsíveis, forçação tiktoker e latinidade plastificada e mais brasilidade, mais bucolismo, mais interior e mais vida real. Vento batendo no rosto, estrelas nítidas no céu. Uma varanda à beira-mar e uma espécie de retorno às origens. Sim, desde o cru De Primeira (2021), Marina Sena nunca deixou de ser uma das mais autênticas artistas da atualidade, por mais que o trabalho seguinte, o sensual e noturno Vício Inerente (2023) parecesse um registro menos criativo (ou mesmo de alguém que ainda estava tateando na busca por um caminho na carreira). Só que qualquer incerteza parece definitivamente apagada com a chegada do terceiro álbum, o ótimo Coisas Naturais - que é resultado de uma série de gravações fluídas, feitas em um sítio no interior de São Paulo, na companhia de seus antigos parceiros d'A Outra Banda da Lua, André Oliva e Matheus Bragança, além do produtor musical Janluska.

 


 

Foi esse time que auxiliou Marina nesse processo de reconexão artística - uma imersão que envolveu outros músicos, todos com bastante tempo pra criar, pra exercer o "ócio criativo". Em entrevista para a revista Rolling Stone, a cantora explicou ter sentido falta dessa Marina mais sangue no olho, mais destemida, mais corajosa do começo da carreira. "Mais norte de Minas" e mais Brasil enquanto um País latino. Levando em conta o conceito de Florestania, cunhado por Ailton Krenak, a artista converte o disco em uma verdadeira coletânea de canções que mesclam estilos diversos, como MPB setentista, funk, reggae, brega, bedroom pop e reggaeton, preservando o contato com a natureza e com o místico. Peça central do trabalho, o single Numa Ilha, parece resumir a ideia já na abertura, com uma experiência sensorial de sonoridade misteriosa e letra calorosa (Descalça numa ilha, é tão mágico / Você dizendo que me ama / A Lua refletindo o mar, o seu cheiro / A gente junto na minha canga). Claro, há outros grandes instantes, como em Anjo, Mágico e Lua Cheia. Marina está na melhor fase. O público agradece.

Nota: 8,5

terça-feira, 22 de abril de 2025

Novidades em Streaming - Megalópolis (Megalopolis)

De: Francis Ford Coppola. Com Adam Driver, Nathalie Emmanuel, Aubrey Plaza, Giancarlo Esposito e Shia LaBeouf. Ficção Científica / Drama / Fantasia, EUA, 2024, 138 minutos.

Metáforas tolas, diálogos e narrações em off vazias, dificuldade de compreender qual exatamente é a crítica, ausência de qualquer propósito e um senso de autoimportância fetichista e irritante. Sinceramente, são tantos os problemas em Megalópolis (Megalopolis) - o projeto megalomaníaco de Francis Ford Coppola, que agora chega às plataformas de streaming para aluguel -, que é difícil saber por onde começar. A história é que o famoso realizador de clássicos inadiáveis como O Poderoso Chefão (1972) e Apocalypse Now (1979) levou quarenta anos para conceber essa ambiciosa produção. Que custou cerca de US$ 140 milhões do próprio bolso - em um dos maiores casos de desperdício deliberado de dinheiro que se tem conhecimento. Enquanto assistia ao interminável filme, revirava tanto os olhos frente ao absurdo, que eles quase foram parar na minha nuca. É algo digno de dor de tão ruim. Quase de pena, já que a expectativa era alta.

E, vamos lá, eu não tenho problema algum com obras complexas ou mais eventualmente filosóficas e existencialistas - e que exigem do espectador uma pequena saída da zona de conforto, para que haja um maior envolvimento. Esse até é um processo bastante natural pra quem consome produções do circuito alternativo - e não quero soar pedante aqui. Mas o caso é que a grandiosidade aqui é apenas oca. Quase infantil. "O fim da raça humana será morrer de civilização" comenta alguém, citando outra pessoa (que não lembro quem) em certa altura, como que tentando resumir o que está nas entranhas do filme. Se o futuro parece incerto e sombrio, cabe aos sujeitos do presente tentarem se prevenir. Lá no meio, se a gente cavoucar bastante, vai parecer haver, em cada divagação supostamente épica de Cesar Catilina (Adam Driver), uma crítica ao capitalismo, ao fascismo, à sociedade de consumo hedonista, à burguesia e a sua sede de poder. Mas, assim, nunca fica exatamente claro.

 


Em tempos em que a realidade sempre será pior do que a mais lamentável distopia, assistir a disputas de poder familiares, talvez shakespereanas (mas sem nenhum charme), geram apenas bocejos. Sim, nesse País alternativo que é uma Nova York retrô futurista - chamada de Nova Roma -, os poderosos e aristocratas têm nomes que aludem aos romanos (Cesar, Cícero, Crassus, Clódio), vestindo togas, adereços e adotando cortes de cabelo de séculos atrás, mesclados com capas e outros enfeites que parecem de algum lugar entre o início do século passado e um futuro já meio kitsch. E será em um evento televisionado por uma emissora sensacionalista, que Cesar apresentará para os moradores da cidade, incluindo o prefeito Franklyn Cícero (Giancarlo Esposito), uma espécie de substância milagrosa, de nome Megalon, que possibilitará desbloquear o potencial artístico da cidade, que estaria meio preso em visões políticas ultrapassadas e em uma inércia galopante. 

Cesar, esse jovem meio idealista, encontrará resistência de Cícero que não acredita que o caminho seja o das grandes revoluções. Ainda assim, o sujeito receberá apoio, na surdina, de Julia (Nathalie Emmanuel), a filha do prefeito (para desgosto dele). Em paralelo, outras figuras (nem tão) relevantes se movimentarão em suas ambições, estando entre elas a apresentadora de TV Wow Platinun (Aubrey Plaza), seu tio milionário Hamilton Crassus (Jon Voight), seu primo Clodio (Shia LaBeouf) e o motorista e assistente de Cesar, Fundi (Laurence Fishburne) - e, sério, acho que não citei até aqui 20% dos personagens que surgem, aqui e ali, nesse emaranhado. No mais, existem uma série de supostas ousadias estilísticas que não servem pra coisa nenhuma. Uma delas, a principal: Cesar é capaz de parar o tempo. Mas nunca sabe o quê fazer exatamente com essa habilidade, que se converte ali adiante na mais superficial alegoria. O tempo está passando depressa? Ou não? Qual a ideia por trás? Em certa altura um satélite russo está para cair na Terra, justamente em Nova Roma e não pode haver nada mais anos 80 do que um satélite russo caindo em solo estadunidense.

 

 

Há ainda outras metáforas vazias, como o instante em que estátuas que representam figuras da Justiça começam a ruir - uau, a decadência jurídica do tecido social -, ou aquela em que uma virginal cantora pop surge em cena como uma espécie de representante da pureza perdida nessa sociedade em declínio (que mais adiante só se revelará completamente hipócrita, naquela que talvez seja a sua única boa sequência). É tudo tão desconectado, com cada ponto sendo unido sem muita coerência, que a impressão que temos é a de estar diante de uma grande esquete de teatro amador e alternativo em que, em certa altura, não entendemos coisa com coisa. E só torcemos pra acabar logo pra poder ir embora. Com interpretações ruins - especialmente um Adam Driver empolado, verbalizando cada frase com uma solenidade opaca - e com personagens que a gente não dá a mínima, o filme ainda desperdiça aquela que poderia ser a sua fortaleza: no caso, a parte técnica. Já que a impressão, em certos planos, é de estarmos diante de uma cidade feita com uma versão beta de IA. A gente não tem como parar o tempo, assim como Cesar. Então resta lamentar as quase duas horas e meia cinéfilas desperdiçadas nessa bomba.

Nota: 0

quarta-feira, 16 de abril de 2025

Tesouros Cinéfilos - Quase Famosos (Almost Famous)

De: Cameron Crowe. Com Kate Hudson, Patrick Fugit, Billy Crudup, Frances McDormand e Philip Seymour Hoffman. Comédia, EUA, 2000, 122 minutos.

"Blue jean baby, LA lady / Seamstress for the band / Pretty eyed, pirate smile / You'll marry a music man". Existem alguns filmes que possuem algum tipo de mágica meio inexplicável, que faz com que pareçam envoltos em uma névoa nostálgica. Em linhas gerais essas costumam ser obras sonhadoras - mas um tipo de sonho meio vida real, de memória afetiva (ainda que nem saibamos direito o por quê), que vai direto ao coração. Vocês que são fãs de cinema, certamente já sentiram isso. Aliás, hoje em dia no mundo das artes existe todo um mercado que evoca esse tipo de saudade tão carinhosa quanto melancólica. De lembrança sombria, mas que entusiasma. A nostalgia, ao cabo, vende. E devo confessar que é justamente esse o tipo de sentimento que me invade, a cada vez que reassisto o Quase Famosos (Almost Famous), filme de Cameron Crowe que reestreou no Max e que completa 25 anos de lançamento nesse 2025.

Pra quem viria a se tornar jornalista - meu caso -, tendo passado parte da juventude acumulando edições de revistas como Showbizz, SET e Bravo!, o sonho de integrar uma editoria de cultura era quase onipresente. O leitor, em muitos casos, queria ser aquelees repórteres. Estar naqueles ambientes - de bastidores, tensos e vívidos. O tipo de sonho juvenil que é justamente aquilo que motiva o jovem William Miller (Patrick Fugit) a rabiscar os primeiros artigos sobre rock, que enviaria para fanzines locais de San Diego. Aos 15 anos, William sempre foi vigiado de perto por sua mãe superprotetora Elaine (Frances McDormand) - uma viúva metade do tempo conservadora e na outra hippie -, que fica de cabelos em pé com a possibilidade de o caçula bater asas e enveredar por esse universo de cultura pop, de estrada, de turnês, de loucuragem. Só que o caso é que já era tarde. Quando a irmã do rapaz sai de casa para ser aeromoça (fugindo assim das amarras da mãe), ela lhe deixa um pequeno tesouro: sua coleção de discos de vinil, cheios de obras-primas que influenciariam a vida de William (na juventude interpretado por Michael Angarano) pra sempre.

 


O ano é 1973. Época de efervescência cultural, de contracultura e de veículos de imprensa importantes no meio - como no caso da famosa revista Rolling Stone. Aliás, é justamente um artigo sobre um show do Black Sabbath, escrito por William, a pedido de Lester Bangs (o sempre saudoso e ótimo Philip Seymour Hoffman) que chama a atenção dos editores do periódico. Que lhe contratam como freelancer para que ele acompanhe a turnê dos emergentes roqueiros do Stillwater - com quem o protagonista havia tido contato nos bastidores da apresentação da banda de Ozzy Osbourne. Foi a partir da amizade improvisada com a groupie Penny Lane (Kate Hudson) que William consegue entrar no backstage. "Não esqueçam que ele é o inimigo!" brada o vocalista do Stillwater diante da investida do adolescente, que se empenha em juntar material pra reportagem (como que condensando toda a imprensa cultural em um mesmo balaio). É o início de uma relação bonita e complexa não apenas com Penny, mas também com a banda, que tem em seu centro o sedutor guitarrista Russel Hammond (Billy Crudup).

Em linhas gerais esse pode ser considerado o filme de amadurecimento por excelência. Em meio as ligações insistentes da mãe - que tem dificuldade de conversar com o rapaz (resumindo seus recados telefônicos a um comovente, angustiado e engraçado "não use drogas") -, o ônibus da banda percorre uma série de cidades, enfrentando desafios variados, que vão de produtores mal intencionados, públicos nem sempre convidativos e, especialmente, as disputas internas de egos e vaidades, que vão deteriorando aos poucos as relações de todos. Olhando com olhos curiosos de quem vive várias primeiras vezes - beijos, sexo, bebida, show de rock, viagem longa -, William, um sujeito nada cool e com cara de parecer mais velho do que de fato é, empreenderá uma jornada ao infinito na tentativa de entrevistar Russell, que nunca parecerá realmente disponível (com suas oscilações de humor, que vão da instabilidade ao sentimentalismo na mesma sequência).

 

 

E como de praxe nos filmes de Cameron Crowe - e este tem claríssimas tintas autobiográficas -, temos na trilha sonora uma de suas fortalezas, com cada uma das músicas de artistas diversos, como, Velvet Underground, Rod Stewart, The Who, Cat Stevens, Led Zeppelin e Simon & Garfunkel, contribuindo para dar o tom da narrativa. Para explicar, ainda que por linhas menos óbvias, esse ou aquele momento. E é aí que chegamos àquele que é o momento mais comovente da produção, que é o instante em que, depois de um desentendimento homérico e uma noite sem fim de bebedeira e drogadição de Russell, os viajantes se unem no ônibus para cantar, no alvorecer, o clássico Tiny Dancer, de Elton John. Um momento de comunhão que ficaria famoso não apenas por sua beleza lúdica e polida, mas também porque os executivos não concordavam que essa parte, feita meio que no improviso, permanecesse no corte final. Ao cabo esse é uma sequência de união pela música, que reforça esse ideal mesmo nas adversidades. E que nos ajuda, como espectadores, a olhar para todos aqueles sujeitos - desajustados, fraturados, incertos, cheios de medos futuros e anseios presentes - como aquilo que de fato são: apenas humanos. "Você está em casa", diz Penny a William em certa altura. É como todos nós nos sentimos. Comovente.

Pitaquinho Musical - Seu Jorge (Baile à la Baiana)

Vamos combinar: se existe alguém versátil no mundo da música essa pessoa é o Seu Jorge. Capaz de trafegar por estilos brasileiros variados, como samba, funk e MPB, o artista jamais ignora o poder da conexão com públicos estrangeiros e as possibilidades de levar a sua arte para além dos limites geográficos do País - e basta pensar nas versões de David Bowie para a trilha sonora de A Vida Marinha com Steve Zissou (2003), de Wes Anderson, ou nas canções em espanhol ou italiano da época de Cru (2004) para que essa certeza só aumente. Só que, ainda assim, talvez faltasse em sua discografia aquele registro que condensasse todas as possibilidades da nossa música. E que fosse capaz de representar toda a nossa diversidade e riqueza culturais. O que ele parece alcançar com Baile à la Baiana, seu sétimo álbum de estúdio.

 


"Esse disco é uma junção de influências que venho acumulando ao longo dos anos, misturando minhas raízes cariocas com a força da música preta da Bahia", mencionou o músico em entrevista à Rolling Stone, afirmando ainda que esse é um trabalho para dançar, se divertir e celebrar a vida. De essência festiva, mas sem ignorar as questões sociais que costumam perpassar as suas músicas, o disco se converte rapidamente em uma experiência de altíssima voltagem. A inspiração, de acordo com o artista, teria vindo depois de uma visita ao espaço cultural Galpão Cheio de Assunto, em Salvador, um local que abrigava música, exposições e outras expressões de convergência criativa. O resultado é uma mistura de soul, funk, afropop, carimbó e samba rock, que resultam em uma sonoridade harmônica e enérgica, sendo impossível resistir à joias como Sábado à Noite, Batuque, Lasqueira, Gente Boa se Atrai e Sete Prazeres.

Nota: 8,5

terça-feira, 15 de abril de 2025

Novidades em Streaming - A Ordem (The Order)

De: Justin Kurzel. Com Jude Law, Nicholas Hoult, Tye Sheridan e Jurnee Smollett. Drama / Policial / Suspense, EUA, 2024, 116 minutos.

"É difícil um homem honesto ganhar essa quantia de dinheiro no nosso País. É porque esse não é mais o nosso País". Sim, é meio inevitável termos uma sensação meio que de déjà vu quando assistimos ao diálogo acima, entre dois supremacistas brancos dos Estados Unidos, e que é parte do filme A Ordem (The Order), que chegou não faz muito à plataforma da Amazon. Após um assalto bem sucedido em um banco de uma pequena cidade do interior do Idaho, a dupla divaga sobre aquilo que eles acreditam ser o problema da sociedade americana, que estaria envolta em uma suposta decadência moral, que resulta em perda de espaço por parte de homens brancos, héteros, cidadãos de bem. Que só querem formar suas famílias, ir na Igreja, rezar, humilhar minorias, dar um ou outro tiro de espingarda, explodir algo ou alguém que desagrade. Nada de muito diferente daquilo que prega o redneck fã do Trump, em seu dia mais comum.

Só que no filme de Justin Kurzel, que é inspirado em eventos reais, não estamos em 2025. Ou numa cruzada contra imigrantes que retiram vagas de emprego provavelmente arrombadas de moradores do Arkansas e do Texas. Aqui, estamos em 1983 e quando essa boa obra começa, a impressão que temos é a de que acompanharemos um daqueles suspenses policiais típicos dos anos 90, sobre o agente do FBI em fim de carreira, que vai para o interior se aposentar e que se depara com as maiores atrocidades. Sim, em partes é mais ou menos isso. Mas a violência não é apenas a violência em si. Com um serial killer meio desvairado matando sem muito critério. Tanto que quando o policial veterano Terry Tusk (Jude Law) chega ao pequeno Condado de Kootenai, ele é surpreendido não apenas com o relato do jovem xerife Jamie (Tye Sheridan), que menciona a existência de uma quadrilha de falsificadores de dinheiro, mas com o fato de que esse grupo pode ter ligações com células neonazistas e antissemitas, que estariam se fortalecendo nas redondezas.

 


As coisas começam a se encaixar quando Jamie e Terry investigam o assassinato de um homem que teria conexões com esses grupos de ódio - se deparando com um cadáver enterrado em uma cova rasa. De forma concomitante a esse crime e aos roubos de banco, a dupla também precisa lidar com os seguidos atentados à bomba em sinagogas, em sex shops ou casas de cinema adulto - espaços de suposta "perversão" que os hipócritas da extrema direita costumam abominar (ao mesmo tempo em que mamam os parças na broderagem). Claro que não vai demorar para que os investigadores cheguem à uma Igreja existente em uma comunidade afastada, onde o pastor local lhes informa sobre a dupla Bruce (Sebastian Pigott) e Gary (George Tchortov), que teria sido expulsa da ordem das Nações Arianas por causa da prática de crimes como falsificação. O fato de a Igreja local ter uma série de imagens de suásticas e de letreiros estilo white power? Capaz, tudo certo. Só um detalhe. Eles não incomodam ninguém. 

Só que o caso é que os roubos de grana alta integram um plano ainda maior. E envolvem um jovem líder de nome Bob Mathews (Nicholas Hoult), que pregava uma espécie de revolução supremacista nos Estados Unidos, que envolveria o extermínio de pretos, judeus, comunistas e outras minorias, que estariam tornando a sua raça "impura". Sim, em 1983 o papo era o mesmo pregado nas altas rodas republicanas da atualidade. Esse sonho de uma América higienizada, livre de misturas raciais, com uma meia dúzia de famílias brancas, bem nascidas e agrupadas, se perpetuando infinitamente. "É hora de recuperar a terra que foi prometida aos nossos pais. Senão onde estaremos em dez anos?", brada Bob, durante uma pregação, em um dos momentos mais impressionantes. Talvez esse filme fosse menos perturbador se aquilo que assistimos estivesse em um passado distante, agora apenas enterrado. Que as ideias propagadas em panfletos bizarros, como o tal Turner Diaries fossem motivo apenas de estudo para que a história nunca mais se repetisse. Mas em tempos em que grupos de incels e de redpills se sentem pertencentes a coletivos que lhes prometem um retorno a essa terra prometida, que homens médios de autoestima baixa encontram propósito na culpabilização do outro como forma de compensar as suas próprias falhas ou fraquezas, o caso é que a alegoria se torna assombrosamente real. O que faz com que essa obra cresça ainda mais.

Nota: 8,0