quinta-feira, 12 de junho de 2025

Novidades em Streaming - Meu Irmão e Eu (Abang Adik)

De: Jin Ong. Com Jack Tan, Wu Kang-ren, Tan Kim-wang, April Chan e Serene Lim. Drama / Policial, Malásia / Taiwan, 2023, 115 minutos.

[ATENÇÃO: TEXTO COM ALGUNS SPOILERS] 

"Sempre me pergunto por quê nasci aqui. Não tenho casa. Não tenho País. Só posso ver tudo de longe. [...] Minha vida é tomar cuidado, ficar atento, me esconder e fugir." Quem vê um grupo de imigrantes sendo acossado pela polícia ainda no comecinho de Meu Irmão e Eu (Abang Adik) até poderia achar que esse é um filme sobre os Estados Unidos da Era Trump. Mas não, é apenas a Malásia - que, aliás, parece ter uma política meio semelhante à da Terra do Tio Sam. Especialmente no que diz respeito à entrada de estrangeiros vindos de países como Indonésia, Filipinas, Camboja, Vietnã e outros. Em busca de trabalho. Fugindo. Ou mesmo buscando condições melhores de vida. Então quando a gente "ouve" o aflitivo apelo de Abang (Wu Kang-ren) quase no final da obra de Jin Ong - a enviada da Malásia pro Oscar desse ano e que está disponível na Netflix -, é quase impossível não se comover. 

Naquela altura Abang está preso. Em um País em que tanto ele quanto o irmão Adik (Jack Tan) estão em constante fuga. Órfãos de ascendência chinesa e sem acesso à documentos, eles são como se fossem não pessoas. Trafegando pelas sombras, no submundo da capital Kuala Lumpur. Figuras desumanizadas, sempre à margem, evitando o Estado e seus representantes a todo o custo. Pra tentar sobreviver, Adik, que é muito mais revoltado e intempestivo, se envolve com um chefão do crime que contrabandeia documentos falsos para trabalhadores imigrantes ilegais, enquanto encontra algum fiapo de amor em um relacionamento com uma prostituta. Por outro lado, Abang é o sujeito afável e de olhar resignado, que se esforça para sobreviver em meio a bicos feitos no Mercado de Pudu, enquanto alimenta uma paixão calorosa pela vizinha Su (April Chan), uma refugiada de Mianmar que também parece estar em apuros.

 


A rotina vista na primeira metade desse projeto de estreia de Jin Ong é meio acelerada, pulsante - há um ar documental que sugere uma urgência permanente, que dialoga com a hostilidade onipresente. Sobreviver é preciso e, em meio a mercados nem tão limpos e pescoços de galinha sendo decepados sem muita cerimônia, Abang e Adik investem tempo naquilo que acreditam. Por exemplo, quando Adik se depara com uma batida policial no submundo dos imigrantes, ele presencia um suicídio. E não há muito tempo para elaborar sobre o significado daquilo. O dia seguinte bate à porta e sem a papelada em dia não há como ter um emprego, direitos a benefícios sociais básicos ou mesmo a financiamentos de qualquer tipo. Para Abang, o contato com a assistente social Jia En (Serene Lin) pode ser a luz no fim do túnel: funcionária de uma ONG a jovem garante estar progredindo no processo dos irmãos, que só precisariam encontrar um familiar para desenrolar a burocracia. 

Mas claro que nem tudo será simples, com a situação piorando no momento em que uma tragédia ocorre na vida da dupla de protagonistas, o que os obrigará a empreender uma fuga. Que os levará para bem longe da capital da Malásia - momento em que o filme dá uma espécie de volta de 180 graus, passando a ser uma experiência levemente mais contemplativa e eventualmente bucólica. No entorno de Abang e Sdik, outras figuras marginalizadas também trafegam, como a carismática Money (Tan Kin-wang), uma transexual veterana que, desde jovem os ajuda (aliás, é ela quem os criou, oficialmente). Desesperançoso e melancólico, esse é o tipo de produção que vem em boa hora, já que lança luz em um tema importantíssimo em tempos de avanço da extrema direita, de crises políticas, de xenofobia e de completa ausência de senso de coletividade. Há todo um pano de fundo sobre sacrifício e lealdade que comove o espectador. Ainda que tudo soe apenas triste. Detalhe: Abang é surdo-mudo. O que torna seu clamor - de voz que, alegoricamente, teima em não ser ouvida -, ainda mais forte.

Nota: 8,0

 

segunda-feira, 9 de junho de 2025

Novidades em Streaming - Pecadores (Sinners)

De: Ryan Coogler. Com Michael B. Jordan, Hailee Steinfeld, Wunmi Mosaku e Delroy Lindo. Drama / Terror / Ação, EUA, 2025, 138 minutos.

"Se você seguir dançando com o diabo, um dia ele vai segui-lo até a sua casa". 

A maior alegoria do cinema recente sobre como se perpetua o racismo através dos tempos. Essa talvez seja uma das formas de encarar a experiência com o ótimo Pecadores (Sinners), que acaba de estrear para aluguel em diversas plataformas de streaming. Em linhas gerais essa é uma obra que trafega por vários gêneros - indo do drama à comédia, passando pelo terror e pela ação -, sem nunca perder de vista a discussão sobre como os tentáculos podres do preconceito se espalham, mesmo em tempos em que a sociedade, supostamente, avança. Em certa altura, ainda no começo do filme dirigido por Ryan Coogler - de Pantera Negra (2018) -, um redneck que responde por Hogwood (David Maldonado) garante aos irmãos gêmeos Smoke e Stack (Michael B. Jordan em papel duplo) que a "klan não existe mais". Uma forma de tranquilizar a dupla que está retornando ao seu Mississipi natal, interessada em instalar um bar de música, dança e bebidas para a comunidade afro do local (as famosas jukes, como era conhecidas).

O ano é 1932 e nunca fica exatamente claro o tipo de "negócio" que era tocado por Smoke e Stack em Chicago, mas o caso é que eles, que são dois veteranos da Primeira Guerra, voltaram de lá com uma grana boa depois de algumas temporadas trabalhando para a máfia. Claro que esse recomeço em um contexto de segregação racial e de preconceitos de todo o tipo não será fácil. Mais do que isso, muitas vezes a resistência parte dos próprios familiares, como no caso do primo Sammie (Miles Caton), um talentoso tocador de blues que precisa fugir de casa já que seu pai, o pastor Jebediah (Saul Williams) acredita que esse negócio de música é coisa do demo (aliás, qualquer semelhança com a forma que a Igreja Evangélica trata qualquer expressão cultural não será mera coincidência). Já os brancos? Bom, esses gostam muito do blues. "Só não gostam de quem o toca", comenta Smoke em tom jocoso. 

 


Sammie se junta a Smoke e a Stack para formar o time dos sonhos do boteco - o que envolve o pianista veterano Delta Slim (Delroy Lindo); a esposa de Smoke, Annie (Wunmi Mosaku) que, para além das habilidades em práticas de magia e rituais de povos originários e indígenas, é uma cozinheira de mão cheia; o casal chinês Grace (Li Jun Li) e Bo Chow (Yao) que fornecerá a matéria-prima e o trabalhador do campo Cornbread (Omar Miller), que é recrutado como segurança. Há ainda nesse conjunto a candidata a par romântico de Sammie, Pearline (Jayme Lawson), que também tem talento para o canto, e uma antiga namorada de Stack, a branquela Mary (Hailee Steifled) que, ao cabo, será o elo que aproximará supremacistas brancos e grupos de ódio que ainda se espalham pela região à esse espaço idílico, de música e de cultura transcendente, que parece ecoar por espaços e tempos, unindo passado, presente e futuro (aliás, uma das sequências que, seguramente, é uma das melhores do cinema nesse ano, não apenas por sua simbologia, mas pela riqueza de detalhes).

[SPOILERS A PARTIR DAQUI] Em linhas gerais esse é um filme que deixa muito claras as suas ideias, mas sem que necessariamente elas precisem ser esfregadas na cara do espectador. Claro que a conversão dos integrantes da KKK em vampiros que sugam o sangue, a alma e a existência de quem quer que seja, em nome de uma suposta domesticação que conduzirá todos ali e uma existência em família, em que todos são "iguais", independente de cor de pele, se torna a alegoria mais do que perfeita em tempos de apropriação cultural, de questionamento de políticas de cotas como ferramentas de inclusão, ou de práticas como o racismo reverso (ou recreativo), que desconsideram as desigualdades históricas. Musical, magnética, imprevisível, divertida, tensa, violenta e instigante essa é uma daquelas obras cheias de possibilidades de interpretação e que ainda faz um aceno para a literatura fantástica em seu terço final. Aqui não foi só hype. Trata-se de um filmaço!

Nota: 9,0 

 

quinta-feira, 5 de junho de 2025

Novidades em Streaming - Uma Viagem ao Desconhecido (The Unknown Country)

De: Morrisa Maltz. Com Lily Gladstone, Raymond Lee e Lainey Bearkiller Shangreaux. Drama, EUA, 2023, 85 minutos.

Mais do que nunca um filme que faz um apelo ao íntimo. À força insuperável dos pequenos vínculos. Das grandes histórias que movem pessoas simples. Do acaso que se converte em mágico. Da potência existente na vida em comunidade. Sim, o mundo caminha a passos largos para o colapso ambiental, para o avanço de uma extrema direita cada vez mais radical, para o o uso inadequado da tecnologia, para as guerras sem fim e para crises políticas e sociais decorrentes do capitalismo tardio. E onde a gente encontra conforto? Onde a gente se aconchega pra tentar fugir disso tudo? Bom, talvez o caminho seja aqueles que amamos. Que nos permitem abrir espaço para o extraordinário no cotidiano. Na rotina. Na repetição. E que um filme tão pequeno como esse Uma Viagem ao Desconhecido (The Unknown Country) seja capaz de evocar todos esses sentimentos, é um feito.

Em linhas gerais esse é um road movie existencialista, que mescla vida real com narrativa roteirizada, não para um exame profundo e generalista da vida no meio oeste americano, mas sim para um olhar mais próximo de quem, de fato, está ali no dia a dia. Com mais atenção. Ou afeto. Quando sai de Minnesota em uma viagem solitária e introspectiva em seu veículo, ainda não temos a noção exata de qual é o objetivo de Tana (Lily Gladstone, indicada do Oscar pelo ótimo Assassinos da Lua das Flores, 2023). Em sua companhia, o coração dos Estados Unidos nos é apresentado como um ambiente frio, rochoso, inóspito, de vida meio impossível. Luto? Perda? Memória? A intenção de Tana - que, assim como muitos outros da região é uma nativa americana -, é a de chegar ao Texas, para refazer o trajeto que sua avó falecida teria feito no passado. No caminho? Pessoas. Vivências.


 

 

Em uma das primeiras paradas, Tana é recebida em uma daquelas lanchonetes de beira de estrada imersas no nada, que costumamos ver em filmes que se passam em espaços geográficos do tipo. No local, a narração em off nos conta um pouco mais sobre a proprietária, uma senhora solitária que tem como projeto de vida a adoção de gatos. São dezenove no total, em sua casa. A senhora dos gatos. Um estereótipo mais do que óbvio. E totalmente afetuoso. Em outra parada, o gerente de um outro estabelecimento fala como ele tinha deixado de acreditar no amor, até... acreditar de novo. E se apaixonar. E casar. Aliás, em algum ponto da Dakota do Sul, Tana faz uma parada justamente para prestigiar um casamento - de um primo, interpretado por Lainey Bearkiller Shangreaux, que também produz a obra. Com toda a pompa e tradição dos nativos americanos. 

Parte da crítica tem comparado o espírito contemplativo da obra da diretora estreante Morrisa Maltz, com o estilo de veteranos como Terrence Mallick ou com obras de calibragem mais reservada, como Nomadland (2020), de Chloe Zhao. E acho que é mais ou menos por aí. Para o espectador acostumado a grandes acontecimentos, talvez uma produção do tipo possa ser meio frustrante. Não há alguma redenção ecumênica. Uma culpa a ser expiada. Ou a manutenção de grandes esperanças em um contexto de desespero. Há sim esse apelo de emoção discreta - de olhares longos (reforçados pelo rosto expressivo de Gladstone) e de silêncios que dizem muito. De solidão que pode ser preenchida onde menos se espera, como revela o terço final. Talvez caiba a nós abrir o coração para que a primavera possa enfim, entrar. Para que o sol apareça e suplante o frio. O nosso esforço talvez faça isso. Não se trata de ignorar o passado ou simplesmente temer o futuro. O que vale é viver. O agora.  

Nota: 8,0

 

terça-feira, 3 de junho de 2025

Pitaquinho Musical - Bon Iver (SABLE, fABLE)

Desde que entregou ao mundo o elogiado Bon Iver, Bon Iver (2011), Justin Vernon estabeleceu a sua sonoridade como uma espécie de sinônimo para melodias invernais (mas calorosas), de tintas introspectivas e delicadas, mas que pareciam crescer mesmo em um cenário minimalista. Elogiado pela crítica, o artista se viu estimulado a expandir sua música para além dos limites do folk econômico, que parecia saído de uma temporada de solidão no meio da floresta. O que o levaria a acrescentar, em discos como 22, A Million (2016), elementos e colagens eletrônicas, cordas mais esvoaçantes e um clima mais experimental como um todo - em uma experiência menos óbvia e um tanto existencialista. O que não mudou na trajetória? O desejo de construir canções sofisticadas, de arranjos sublimes e letras repletas de divagações fantasmagóricas, que nem sempre são facilmente compreensíveis.

 


E é aí que entra SABLE, fABLE, que é apenas o quinto disco de inéditas do Bon Iver em quase vinte anos de carreira - e que preserva a melancolia de soft rock setentista, que se mistura com o soul contemporâneo e o R&B refinado. E que conduz o ouvinte da melancolia à euforia, por vezes na mesma música. Talvez um pouco mais expansivo do que em outros trabalhos, o artista conecta pontos geográficos, estradas e espaços para uma série de reflexões sobre a necessidade de aceitar mudanças (AWARDS SEASON), a respeito da alegria de estar vivo (Everything Is Peaceful of Love) ou mesmo sobre o simples fato de chegar em casa e ter alguém pra amar (Walk Home). Há um aconchego no todo, mesmo quando há alguma estranheza - como no caso da bela If Only I Could Wait, que tem participação de Danielle Haim, e que parece saída de algum disco de new age dos anos 90. O peso emocional e a vulnerabilidade seguem como marcas. Mas há espaço para que os raios de sol apareçam.

Nota: 8,5 

Novidades em Streaming - Nonnas

De: Stephen Chbosky. Com Vince Vaughn, Susan Sarandon, Lorraine Bracco, Talia Shire, Brenda Vaccaro e Linda Cardellini. Comédia, EUA, 2024, 112 minutos.

Vamos combinar que nos dias de hoje, e nos consultórios de nutricionistas mundo afora, se convencionou chamar de "comida conforto" aquele alimento que desperta uma sensação de acolhimento, de memória afetiva, algo que pode estar ligado ainda à infância ou a momentos especiais em família. Bom, e se a comida que conforta é conectada ao sentimento de nostalgia, o mesmo pode-se dizer de certos filmes - e é exatamente esse o caso de Nonnas, produção que acaba de estrear na Netflix. Nos fóruns sobre a obra dirigida por Stephen Chbosky - do bonito Extraordinário (2017) e do horroroso Querido Evan Hansen (2021) - não será preciso rolar muito a timeline para encontrarmos a definição ideal: é o filme Sessão da Tarde. O que para nós, brasileiros, é sinônimo de produção para ver bem acompanhado (seja de alguém que você ama ou mesmo de um prato saboroso), com todos saindo emocionados nos créditos finais.

E nesse caso há um plus "a mais" já que a trama é inspirada em eventos reais - e conta a história de origem do restaurante Enoteca Maria, tocado por Joe Scaravella desde 2007 no distrito de Staten Island, em Nova York. E, como em qualquer produção que tem empreendimentos do tipo como pano de fundo, aqui não serão poucas as sequências com closes de iguarias irresistíveis, doces e salgadas, pra deixar todo mundo com água na boca (sendo, aliás, uma forma perfeita de nos fazer conectar com a história, afinal de contas, quem não gosta de um bem elaborado prato de comida, ainda mais da culinária italiana?). Na trama, Joe ganha o rosto de Vince Vaughn que, a despeito do carisma meio negativo, se empenha em dar ao protagonista as feições de um sujeito enlutado, que parece precisar de alguma motivação na vida para continuar, para sobreviver.

 


O homem, de origem italiana, acaba de perder a mãe - a Maria (Kate Eastman), que dará nome ao restaurante. E é com ela que ele guarda as melhores memórias da juventude, à beira do fogão, quando ela e sua avó lhe ofereciam o mais perfeito molho ao sugo. Uma receita guardada a sete chaves, que ele não faz ideia de como replicar. Só que os melhores amigos Bruno (Joe Manganiello) e Stella (Andrea de Matteo) estão preocupados com Joe. Querem que ele faça alguma coisa. Tenha algum propósito. A solução? Usar parte do dinheiro do seguro de vida da mãe para abrir um restaurante. Oferecendo comida afetiva, com sabor de casa. De preferência feitas pelas nonnas, pelas avós. Sim, parece uma premissa meio condescendente e que vai ser matéria-prima pra um roteiro cheio de conveniências? Parece. Só que ainda assim é absolutamente saboroso. 

Especialmente quando entram em cena as avós - a gilf sexy Gia (Susan Sarandon), que também é cabeleireira; a solitária misantropa Roberta (Lorraine Bracco), uma siciliana que está em um lar de idosos e é melhor amiga da mãe de Joe; a viúva solitária Antonella (Brenda Vaccaro), uma bolonhesa que rivalizará com Roberta, garantindo alguns dos melhores momentos e a ex-freira certinha Teresa (Talia Shire), que ajuda a equilibrar os pontos. Além delas, também surge em cena Olivia (a linda, com o perdão do trocadilho, Linda Cardelini), que é uma antiga paixão de Ensino Médio e que, sabe-se lá por qual motivo se reaproxima de Joe para ajudá-lo. No mais, vocês já sabem: complicações pra consolidar o empreendimento, brigas de egos entre as senhoras, piadocas aqui ali, um tantinho de romance e aquele final que dará o quentinho no coração que, de vez em quando, é só o que a gente quer. Vá sem medo de ser feliz. E de preferência alimentado, porque vai dar fome!

Nota: 7,0 

 

segunda-feira, 2 de junho de 2025

Novidades em Streaming - A Avaliação (The Assessment)

De: Fleur Fortuné. Com Elizabeth Olsen, Himesh Patel, Alicia Vikander e Minnie Driver. Ficção Científica / Drama, Reino Unido / Alemanha, 2024, 114 minutos.

Em um futuro próximo, devido ao colapso ambiental e à escassez de recursos, uma nova política governamental impõe critérios rigorosos àqueles que desejam ser pais. Ao cabo, essa é uma decisão que não cabe somente ao casal, afinal, os interessados em gerar uma criança precisam passar por uma espécie de prova - uma avaliação - de uma semana, o que deverá trazer a resposta definitiva sobre a capacidade ou não em desempenhar o papel de serem responsáveis por um filho. Essa é a curiosa premissa e o ponto de partida do provocativo A Avaliação (The Assessment), filme que trata de temas, como, mudanças climáticas, avanços tecnológicos, inteligência artificial, parentalidade em um contexto distópico e, em alguma medida, elitismo cultural, e que marca a estreia da diretora francesa Fleur Fortuné (conhecida no meio musical pela direção de videoclipes, como os de Midnight City, do M83, e Gunshot da Lykke Li).

Aliás, o clima meio onírico, de sonho futurista e decadente que, em alguns casos, aparece nos clipes, a realizadora carrega para a produção, que é inundada por um sentimento geral de melancolia e de desalento - que é reforçado pelo cenário arenoso, quase sempre nublado ou acinzentado e com uma ausência de vida gritante (fora o mar azul escuro e a praia pedregosa, não há verde, não há mato, não há rios, pássaros ou mesmo insetos). À exceção está na estufa mantida por Mia (Elizabeth Olsen), uma botânica que cultiva uma série de vegetais orgânicos em um local climaticamente ajustado, que fica junto à isolada e moderníssima casa que ela divide com o marido Aaryan (Hamish Patel), uma espécie de engenheiro de tecnologia empenhado em recriar animais de estimação, em um contexto em que os pets foram sacrificados em nome da preservação de recursos para os seres humanos.

 


Ainda assim, por mais que Mia e Aaryan sejam o casal bem sucedido, jovem, bonito e tesudo que teria tudo para ter um filho, as coisas não serão tão simples assim. Nesse novo mundo em que eles habitam, a indústria farmacêutica esticou ao máximo a expectativa de vida, com a presença de um novo e milagroso medicamento (conhecido apenas como sexocidina). No mesmo cenário, a geração de bebês não é permitida de modo natural, sendo obrigatório o uso de úteros artificiais - e é aí que entra em cena a avaliadora Virginia (Alicia Vikander), que chega à casa dos protagonistas, enviada pelo governo, com a missão de verificar seu potencial como pais. Enigmática e fria, Virginia se instalará no local por uma semana, mudando de comportamento a cada situação e levando até o limite a capacidade de tolerância da dupla, o que poderá ser decisivo no conjunto final.

Virginia de início parece apenas uma figura taciturna, que está ali para executar seu ofício. Mas quando ela passa a agir de forma infantilizada - supostamente como parte do exame -, as coisas desandam. As birras, intimidações e questionamentos que poderiam soar como o melhor anticoncepcional já produzido, são parte da adoção da persona de uma criança. Fazendo com que Mia e Aaryan se questionem não apenas acerca de sua capacidade para lidar com aquilo tudo, mas até mesmo sobre a realidade bizarra que eles enfrentarão naqueles dias - com explosões emocionais e tensões evidenciando inseguranças e conflitos internos não resolvidos (inclusive sobre traumas do passado, com os temas freudianos sempre circundando a borda). Por fim, vale dizer que essa é uma experiência intensa e estimulante, que se vale das grandes interpretações do trio central como forma de fortalecer as suas ideias. Ainda que essas ideias, como de praxe em projetos do tipo, sejam estoicas e de um pessimismo atroz.

Nota: 7,5 

 

quarta-feira, 28 de maio de 2025

Pitaquinho Musical - Blondshell (If You Asked for a Picture)

Devo confessar a vocês um fato: pra gostar de um disco meio que de arrancada, preciso me conectar com ele de alguma forma. Sem muita demora. Duas ou três audições e um refrão grudento, alguma letra poeticamente marcante, uma melodia irresistível, que permanece conosco. Enfim, alguma coisa tem que dar o enganche - especialmente se é um artista que não estou muito familiarizado. E, por vezes, penso que possa ter sido exatamente isso que tenha faltado no autointitulado disco de estreia da Blondshell. Aquele tchan, sabe? Aquilo que toca mais a fundo. E, claro, não é que o álbum não fosse bom, como comprovam canções deliciosas como Salad e Sepsis. Mas o caso é que Sabrina Teitelbaum era apenas uma garota de 25 anos recém saída da pandemia e com outros traumas na bagagem (caso da perda da mãe em 2018). O que explica o perfil mais acuado, ou na defensiva, que se espalha pelas canções de ferocidade contida.

 


Bom, o tempo passou e, agora, com If You Asked for a Picture, é como se a artista tivesse, enfim, desabrochado. Estando mais confiante, mais madura - o que pode ser percebido na própria sonoridade, que se espalha em outros estilos que vão para além do rock country nostálgico dos anos 90. E, verdade seja dita: Sabrina segue ácida na hora de discutir temas essencialmente mundanos - como sexo, relacionamentos, pressões gerais (especialmente sobre as mulheres), misoginia. Mas, agora com mais estrada, parece mais possível bater de frente e se reconhecer como parte desse processo de formação, que certamente faz a ponte com quem lhe escuta. Nesse sentido, músicas como What's Fair, Two Times - que parecem uma mescla de Best Coast com Cranberries - e, especialmente, 23's A Baby exalam personalidade com sua poesia torta e provocativa, que parecem sutis apenas nas aparências. Versos como "Eu não quero ser sua mãe / Mas você não é forte o suficiente" (sobre homens adultos infantilizados) e "Você será um bom pai / Você me carregou até a cama" (repletos de ambiguidades) dão só uma pequena dimensão da poesia ácida da compositora. Um dos melhores do semestre.

Nota: 9,0

Novidades em Streaming - Herege (Heretic)

De: Bryan Woods e Scott Beck. Com Hugh Grant, Sophie Thatcher e Chloe East. Suspense / Drama, Canadá / EUA, 2024, 111 minutos.

[ATENÇÃO: TEXTO COM ALGUNS SPOILERS]

"A verdadeira religião é o controle. Essas pessoas não querem a sua ajuda. Elas estão exatamente onde escolheram estar." A frase dita pelo recluso senhor Reed (Hugh Grant) à jovem irmã Paxton (Chloe East) no terço final do interessante Herege (Heretic) pode até parecer um pouco chocante. Mas não chega a surpreender. E, mais do que isso, em alguma medida parece condensar toda a ideia central da obra dirigida pela dupla Bryan Woods e Scott Beck. O resumo é mais ou menos esse: você pode ser desta ou daquela crença, mas talvez você seja mais facilmente manipulável se for um fanático indecoroso. As pessoas morrem por seitas. Também matam por elas. Por uma ideia que elas acreditam estar acima de tudo. De todos. Céu, inferno, dogmas e tudo o mais. Criadas pelo homem e para o homem. Reformuladas, repassadas adiante pela oratória, pelo texto, pelo verbo.

Vi algumas críticas na internet falando que esse não é um filme de terror - de sustos e de bigornas caindo ou de gatos assustados -, mas sim um suspense mais psicológico. E o caso é que é mais ou menos por aí. Com toda a ação centrada na casa claustrofóbica e enigmática do senhor Reed, poderíamos imaginar torturas gratuitas sem fim, de um serial killer que só quer se aproximar de duas jovens para abusar delas de todas as formas. Bom, em partes isso acontece. Mas há um ponto por trás. "Vocês estão onde escolheram estar", é o que lembra o sinistro homem - e, admito que diverti assistindo Grant, tão famoso pelas comédias românticas, encarnando um sujeito sombrio, de comportamento imprevisível. Sobre estar onde se quer estar, a frase de Reed, direcionada as meninas é ambígua. Pra quê, afinal, estragar sua juventude em uma vida tão alienante e de restrições como aquela que exige a Bíblia? Ou o Alcorão? Ou o Torá? Ou o livro sagrados dos mórmons?

 


Parte da graça de Herege - e o título da obra é quase autoexplicativo - está nesse deboche com o fanatismo religioso, independente de qual seja a corrente. É como se o senhor Reed dissesse, "olha, é mais ou menos tudo a mesma coisa e vocês estão brigando sobre isso e disputando espaço por quê?". O judaísmo é melhor do que o catolicismo? O islamismo está atrás das duas? Ou na frente? E todas essas religiões monoteístas não partem de textos mitológicos escritos milhares de anos antes? Com tramas semelhantes, fundamentos parecidos? Qual o sentido? Enquanto assistia, meio que coloquei a mão na consciência no que diz respeito a outros temas - especialmente os políticos. A religião, nos tempos de hoje, tem influência direta no assunto. Mas ao fim e ao cabo, não é tudo parte da grande engrenagem capitalista? Por quê estamos aqui brigando se, independente da porta que escolhermos, pararemos meio que no mesmo lugar?

Claro, alguns poderão dizer que os diretores exageram na dose na intenção de apresentar seu ponto. Ou fincar a bandeira. Ainda assim não deixa de ser interessante notar como a produção é salpicada por questões que são consideradas tabu quando o assunto são as crenças religiosas - sexo, poligamia, pornografia, indústria cultural, violência contra a mulher, a busca permanente por evidências científicas, experiências de quase morte, a hipocrisia da sociedade. Quando Paxton chega à propriedade de Reed, acompanhada da missionária Barnes (Sophie Tatcher), elas não imaginam ter de participar de uma série de jogos de perguntas e de respostas pra tentar escapar dali. O frio e a neve são abundantes lá fora. E a simples caixa de um jogo como Banco Imobiliário pode parecer mais provocativa do que é. Ou uma canção do The Hollies que toca na vitrola - a linda The Air That I Breathe que, sim, parece que já ouvimos antes. A gente já ouviu muita coisa antes. Mas a graça é que podemos escolher. Pra onde vamos, como agimos. Até se vamos acelerar ou não a nossa morte. Tá tudo meio que embrulhado ali, nesse thriller curioso, soturno, alegórico e bem resolvido que vale ser conferido.

Nota: 8,0