sexta-feira, 15 de agosto de 2025

Pitaquinho Musical - Jadsa (Big Buraco)

Vamos combinar que a figura da coisa grande, de tamanho maior (ou big), meio que funciona como um espectro onipresente no novo registro da baiana Jadsa. Em meio à emanações oníricas e sofisticadas que fundem jazz, samba rock e MPB e que sempre foram marca de sua carreira, não são poucas as menções ao enorme, ao gigante - nem que seja um gigante simbólico, uma alegoria para tempos de grandes expectativas, especialmente no que diz respeito à arte e seu imediatismo. Dos títulos das canções - Big Luv, Big Bang, 1000 Sensations, Big Mama, Big Buraco (que também nomeia o disco) , às letras provocativas e enigmáticas que parecem até maiores em sua simplicidade (As coisas acontecem quando querem / Quando crescem todo mundo vê / Não o caminho traçado a navalha / Mas o tamanho do bicho que é) - tudo remete a essa representação de profundidade, de intensidade.

 


Talvez uma audição descompromissada não resulte nessa percepção de imediato, mas em meio a sopros bem encaixados, efeitos que se espalham e percussão levemente experimental, o que se tem é um trabalho caloroso mesmo quando o assunto é o cotidiano. Por exemplo, na envolvente Big Bang, que abre o álbum, parece haver um certo apelo à importância das coisas simples (viver, comer e dormir bem) e da potência envolvida nisso. Já Tremedêra é aquela experiência brasileiríssima de jamelão, caju e mangaba e de metáforas sensuais, de sabores, amores e sotaques bem nossos. Expediente que se repete na sexy Sol na Pele, com seu refrão grudento e clima primaveril estilo Mahmundi. Em resumo, é o dia a dia em alegorias apaixonadas, pulsantes, de degustação de loucura e de outras sensações. Ao cabo, o buraco pode ser um lugar de aconchego também. Como vocês bem sabem.

Nota: 8,0 

terça-feira, 12 de agosto de 2025

Cine Baú - Nascida Ontem (Born Yesterday)

De: George Cukor. Com Judy Holliday, William Holden e Broderick Crawford. Comédia / Romance, EUA, 1950, 103 minutos.

"Impressionante a quantidade de coisas interessantes que se aprende lendo". Vamos combinar que a frase dita por Billie Dawn, personagem de Judy Holliday na comédia Nascida Ontem (Born Yesterday), hoje em dia soa quase óbvia, frente à tantas produções que já debateram o assunto. Sim, a educação é emancipadora, todos sabemos, e no caso da protagonista do divertido clássico de George Cukor, que completa 75 anos de lançamento em 2025, essa liberdade é (quase) literal. Já que a ficha dela cai justamente quando ela começa a se aprofundar em suas leituras. É com o estudo sobre os mais variados temas que a jovem perceberá, aos poucos, o quão absurda é a sua submissão ao tosco, mal educado e truculento Harry (Broderick Crawford) - um magnata do ferro velho, com quem ela estava por uma provável falta de autoestima.

Como se fosse a protagonista do recente Pobres Criaturas (2023), do Yorgos Lanthimos - mas com menos psicodelia e um discurso mais direto -, Billie tem uma nova chance de sair da bolha de opressão ao conhecer o jornalista Paul Verrall (William Holden), que vai ao encontro deles em Washington DC com a ideia de escrever uma matéria sobre os negócios (escusos) de Harry, que está na capital federal justamente para encontrar alguns lobistas. Só que o ricaço nega a entrevista com o repórter, mas se afeiçoa a ele. Resolvendo contratá-lo após um episódio em que o brutamontes acredita ter sido constrangido pela mulher, em um encontro com um congressista. Instruído a "educar" Billie para que ela tenha modos mais refinados nessas reuniões com figurões, Paul se aproxima dela e, bom não é preciso ser nenhum adivinho para saber que a ligação entre os dois não será apenas o de tutor e aluna.

 


Claro, estamos falando de uma obra de 1950 e é evidente que essa narrativa do homem que salva uma mulher para torná-la mais aceita socialmente soa ultrapassada. Mas há que se considerar o tempo em que o filme, inspirado na peça de teatro do escritor Garson Kanin, veio à público. Um tempo em que o machismo e o patriarcalismo costumavam relegar o papel da mulher a espaços sociais bastante restritos  e aqui não deixa de ser interessante observar como Billie sai da posição de esposa troféu improvisada de um burguês xucro que trata todas as pessoas, inclusive da sua equipe de assessores, com grosserias e aos berros, para se converter em uma mulher independente, capaz de tomar as próprias decisões de forma autônoma. Não por acaso, em um dos pontos altos da produção, Billie se recusa a assinar uma série de documentos comprometedores por finalmente compreender a natureza obscura daquela papelada (ela era sócia, afinal, de Harry).

Aliás, mais do que isso, como uma jovem meio que à frente do seu tempo e num apelo iminentemente feminista, é justamente Billie quem toma a iniciativa de (tentar) beijar Paul que, inicialmente se esquiva, mas que, mais adiante cai aos seus braços, conforme eles ampliam às visitas a museus, bibliotecas, teatros, memoriais e outros espaços públicos que apenas reforçam a conexão e a sintonia da dupla. A própria frase clássica de Thomas Jefferson, que mais adiante, num contexto de pós Segunda Guerra, poderia funcionar como libelo antifascista (Quando as pessoas temem o governo, isso é tirania; quando o governo teme as pessoas, isso é liberdade) surge como uma lembrança importante do que está em jogo ali, com Harry sendo o tirano simbólico e metafórico a oprimir Billie (que representa, numa alegoria mais do que livre, o povo). 

 

 

Alternando momentos comoventes, como aquele em que a protagonista narra à Paul sobre as cartas enviadas a seu pai, um homem justo e de caráter a quem ela admira (e com quem não conversava simplesmente pelas dificuldades de escrita); com outros engraçados, como no momento em que um Harry desesperado pergunta ao seu assessor se não há maneira de tornar Billie "burra outra vez", a obra de Cukor permanece essencialmente divertida, com seu texto ágil, situações comicamente inusitadas e mensagem valiosa sobre o poder do conhecimento ("é perigoso viver em um mundo de ignorantes" lembra alguém em certa altura e aí quando vê é negacionismo científico, apego à extrema direita e reacionarismo). Não por acaso, o filme figura em uma série de listas de melhores, como no caso dos 100 mais engraçados da história do American Film Institute (em um honroso 24º lugar). Vale resgatar!

Novidades em Streaming - Síndrome da Apatia (Quiet Life)

De: Alexandros Avranas. Com Grigoriy Dobrygin, Chulpan Khamatova, Miroslava Pashutina e Naomi Lamp. Drama, Grécia / Alemanha / Suécia / Estônia / França / Finlândia, 2025, 99 minutos.

Quem acompanha a carreira do diretor grego Alexandros Avranas sabe que seus filmes procuram examinar a barbárie e os horrores do mundo sempre de forma sutil, partindo de um microcosmo doméstico, com o grito abafado normalmente saindo pelas frestas. Ao espectador, assim como ocorre nas obras do compatriota Yorgos Lanthimos - de projetos estranhos e diversos como Dente Canino (2009), O Sacrifício do Cervo Sagrado (2017) e Pobres Criaturas (2023) - cabe unir os pontos para compreender melhor aquilo que sempre parece estar uma camada abaixo. Foi assim com o impressionante Miss Violence (2013) - em que a violência sexual contra menores e o incesto emergem como parte da fratura de uma família traumatizada por um suicídio -, é assim também com Síndrome da Apatia (Quiet Life), produção que estreou na última semana na plataforma Reserva Imovision.

A trama é simples e, por mais excêntrica que pareça, é inspirada em eventos reais. Na história um casal de refugiados russos - Sergei (Grigoriy Dobrygin) e e Natalia (Chulpan Khamatova) -, que alega ter chegado à Suécia por medo de retaliações do Governo, tem o seu pedido de asilo político negado por falta de evidências dessa suposta violação. Após o ocorrido, uma das filhas, a jovem Katja (Miroslava Pashutina), simplesmente desmaia na rua. E, resumidamente, nunca mais acorda. Sendo diagnosticada, localmente, com a síndrome da resignação, uma espécie de curiosa condição psicológica que coloca crianças e adolescentes, geralmente filhos de imigrantes, em um estado letárgico, catatônico. Como se fosse um sono permanente, o que os impede de comer, andar ou falar - um quadro que pode durar semanas, meses ou anos e que seria uma resposta à situações de trauma e de adversidade.

 


O tema, diga-se de passagem já foi retratado no documentário em curta-metragem A Vida em Mim (2019), que chegou a ser indicado ao Oscar em sua categoria naquele ano. E que revela como centenas de crianças foram, misteriosamente, acometidas pela síndrome que segue tendo suas causas desconhecidas. Já na obra de Avranas, o que se vê é a luta do casal protagonista em meio a cubículos de hospital e outros ambientes opressores, não apenas para prosseguir após o ocorrido com Katja, mas também para obter o documento que ateste a autorização para residência. O que envolverá a participação da outra filha, a adolescente Alina (Naomi Lamp), que será encarregada de contar aos representantes da imigração a história de agressão que ela supostamente teria testemunhado contra o seu pai - um professor em seu País de origem , e que poderia contribuir para a obtenção do visto.

Sem muita brecha para outros mistérios - ainda que a produção se empenhe em conceder à narrativa a ideia geral de metáfora para traumas atuais que envolvem xenofobia, crises imigratórias, burocracias estatais, indiferença à dor do outro e outros temas políticos e sociais (tudo muito de passagem) -, o filme se esforça em evidenciar, talvez forçando um pouco a barra, o significado do silêncio frente às injustiças. Ainda que, como no caso dos repulsivos episódios recentes do nosso congresso brasileiro - com deputados de extrema direita colando esparadrapos em suas bocas, para denunciar uma ditadura existente somente na cabeça alucinada deles -, essas ideias soem totalmente deturpadas, é importante lembrar que não devemos nos calar, nem ficarmos "apáticos" frente ao sofrimento alheio. É aquela pulguinha que fica.

Nota: 7,0 

 

quinta-feira, 7 de agosto de 2025

Pitaquinho Musical - Annahstasia (Tether)

"Talvez eu seja uma moralista / Uma anticapitalista / Que vende seus sonhos por grana / Pra comprar seda e veludo". Pesquisando um pouco sobre a história da Annahstasia eu achei curioso que, próxima dos 30 anos de idade, e com essa voz de veludo de Tracy Chapman moderna, ela estivesse lançando apenas o seu primeiro disco. Mas as coisas logo ficaram claras: assim que surgiu para o mundo ainda adolescente, ensaiando as primeiras canções, não demorou para que um grupo de empresários quisesse transformá-la meio que na marra na mais nova estrela da temporada. Uma daquelas cantoras de pop e R&B insípidas, que existem a rodo por aí, ideais para o consumo rápido - e para o esquecimento idem. Mas a artista tinha outros objetivos. Que parecem ficar evidentes nas letras bastante íntimas e quase explícitas, como no caso da ótima Silk and Velvet, que abre esse pequeno texto.

 


Bater de frente teve seu ônus, mas também seu bônus, como parece ficar evidente na audição de Tether. Esse é um daqueles discos com alma, que pega o folk e o rock e converte-o em algo quase espiritual, meio místico. Uma experiência elevada de arte para além da música. Que se escava pelas profundezas de forma densa, ainda que tudo pareça muito simples, já que a grande maioria das canções são feitas com violão, percussão e pianos minimalistas e efeitos econômicos. A voz quente e densa de Annahstasia é daquelas que aconchega, mesmo quando os versos surgem rasgantes, como no caso da ótima Believer (E eu só quero brincar de faz de conta às vezes / Mas eu preciso que você acredite / Que estou tentando o meu melhor / Então não me descarte como todos os outros), que encerra o disco em um gospel de estilo angustiado, com melodias pouco óbvias. É disco pra colocar no repeat. E ir absorvendo aos poucos.

Nota: 8,5 

quarta-feira, 6 de agosto de 2025

Cinema - Filhos (Vogter)

De: Gustav Möller. Com Sidse Babett Knudsen, Sebastian Bull Sarning e Dar Salim. Drama, Dinamarca / Suécia, 2024, 94 minutos.

[ATENÇÃO: TEXTO COM ALGUNS SPOILERS] 

Existe um filme alternativo dos irmãos Jean-Pierre e Luc Dardenne chamado O Filho (2001) que, de forma muito resumida, conta a história de um carpinteiro enlutado, que resolve contratar justamente o assassino do próprio filho, em um programa de ressocialização de adolescentes que ele participa. É uma experiência áspera e complexa, mas que acena com esperança para um mundo em que a violência e o "olho por olho, dente por dente" parecem reger os códigos atuais da sociedade. E, enquanto assistia ao excelente Filhos (Vogter), projeto dinamarquês que está em cartaz nos cinemas, foi meio inevitável não pensar na obra dos Dardenne. Não apenas pelas semelhanças na história, mas também pelo estilo econômico, cheio de sutilezas e de silêncios que falam muito, adotado por Gustav Möller, que é diretor do ótimo Culpa (2018).

Na trama, Eva (Sidse Babett Knudsen) é uma agente carcerária que parece ter uma retidão moral incorrigível. Só pelos seus modos com os presos - sempre educada, preocupada em resolver problemas pequenos ou grandes (como as filas para o banho ou uma boa condução das aulas de matemática ou de ioga) - é possível perceber que ela é alguém que acredita, de fato, no potencial regenerativo do sistema. Especialmente quando o assunto são os criminosos que cumprem penas mais leves. Só que a coisa muda de figura quando ela nota a chegada de um misterioso preso a uma ala em que estão infratores envolvidos em crimes mais sérios. O que é justamente o caso de Mikkel (Sebastian Bull Sarning), que é acusado de ter assassinado um outro preso por motivos fúteis (como saberemos mais adiante). Há, tem também um outro detalhezinho importante, nada de mais: o jovem morto é o filho de Eva.

 


Claro que não é preciso ser nenhum gênio pra perceber que há caroço nesse angu. Quando Mikkel chega, Eva trata logo de mexer os pauzinhos para que ela seja deslocada justamente para a ala onde está o rapaz. Mesmo sendo alertado por Rami (Dar Salim), o chefe do departamento, dos riscos que ela corre no local. Os olhares demorados da agente, a sua paciência comovente em observá-lo à distância e a sua disposição em confrontá-lo nos assuntos mais minúsculos possíveis (como no momento em que ela lhe nega um maço de cigarros), acirrarão os ânimos e facilitarão a compreensão daquele contexto por parte do espectador. Especialmente para aqueles que já estão acostumados a esse tipo de gramática fílmica, de obras repletas de ambiguidades e de se soluções nunca óbvias. Com os próprios traumas e segredos do passado de Eva, servindo como um inesperado combustível jogado sobre o fogo.

De tensão crescente, o projeto é daqueles que vão escalando aos poucos - o que é reforçado por uma certa claustrofobia que rege o todo. Seja nos cubículos apertados ou nos corredores sufocantes, em que não há nenhuma janela, em que a luz mal se vê. Assim como no caso de Olivier, o protagonista de O Filho, que não parece muito bem saber o que fazer com o jovem, após contratá-lo - ainda que o espectro da vingança ronde sua mente meio que o tempo todo -, aqui temos também uma agente penitenciária que promove uma luta interna muito maior do que aquela contra um sistema supostamente injusto. Em certa altura, após uma confusão na cela de Mikkel, Rami argumenta com Eva, lembrando-a que ele permaneceu uma semana de castigo na solitária. O que mais pode ser feito, afinal? Talvez haja pessoas que "não possam ser salvas", lembra o mesmo Rami. A frase de múltiplos significados, é daquelas que bate forte. Ficando conosco quando os créditos sobem.

Nota: 8,5

 

Novidades em Streaming - Você é o Universo (Ти – Космос)

De: Pawlo Ostrikow. Com Volodymyr Kravchuk, Alexia Depicker e Leonid Popadko. Drama / Ficção Científica / Comédia, Ucrânia, 2024, 100 minutos.

Será que o ucraniano Você é o Universo (Ти – Космос) é uma ficção científica de tintas existencialistas sobre o fim do mundo e o apocalipse climático, ou apenas meio que uma indireta fílmica sobre a indisponibilidade das pessoas para a construção de laços mais sólidos em tempos tão fragmentadamente líquidos (com o perdão da mais óbvia e cansativa citação de Bauman)? Parte obra catastrofista em que o espaço é o limite, parte carrossel do Insta com reflexões supostamente profundas a respeito da ausência de responsabilidade afetiva na era digital, o filme do diretor Pawlo Ostrikow, que está disponível na Reserva Imovision, também tem a chance de não ser nada disso. Nem uma coisa nem outra. Apenas uma aventura, vai ver, sobre solidão na pós-modernidade, com um astronauta em sua nave nos confins do universo, servindo como a base para a fundamentação desse tipo de alegoria. Uma história que meio que sempre existiu, mas que gostamos de voltar a contar.

Na trama, Andriy (Volodymyr Kravchuk) é uma espécie de transportador de cargas espacial, que tem como trabalho levar resíduos nucleares radioativos para o fim do mundo do espaço - mais precisamente para o satélite de Júpiter, Calisto. Uma missão solitária que ele faz de forma permanente, com viagens de ida e volta de dois anos cada. Com toneladas de lixo a bordo. O resumo da ópera é de que, após 150 anos de uso desse tipo de energia, houve um acúmulo de radiação em instalações provisórias, que poderia comprometer a vida em nosso planeta (com tudo sendo explicado em uma bem humorada animação ainda no começo do filme). Bom, o caso é que, em certo ponto, uma das missões dá meio que errado e a Terra explode - sinceramente, admito que não entendi se uma coisa estava relacionada a outra. Impedido de retornar pro nosso mundinho, Andriy parece condenado a vagar pelo espaço. Enquanto tiver combustível. Ou enquanto tiver ânimo pra sobreviver.

 


Resignado, o protagonista revolve se entupir de comida - ele ainda tem estoque para alguns meses -, enquanto consome discos de vinil que, convenientemente, compõem uma decoração que lembra um mapa dos planetas em sua parede. Há também a necessidade de se desviar dos detritos da própria Terra, o que ele faz se "escondendo" atrás da Calisto. Para se distrair, ele mantém conversas nada empolgantes com o robô Maxim (Leonid Popadko) - uma mescla do Hal-9000 de 2001: Uma Odisseia no Espaço (1968) e o Gerty, o computador de bordo de uma das grandes e esnobadas obras do cinema alternativo, o ótimo Lunar (2009) -, que lhe conta umas piadas meio de tiozão do pavê só que pioradas. Na tela da nave, Andriy recebe instruções de engravatados xaropes, que estão insatisfeitos com os rumos da missão - aliás, essa transmissão é interrompida quando o sujeito, enfurecido, quebra o televisor.

Tudo vai mais ou menos nesse rumo até o dia em que ele recebe em seu computador de bordo, de forma inesperada, uma mensagem de uma jovem francesa de nome Catherine (Alexia Depicker), que alega estar em uma estação espacial perto de Saturno. Utilizando a mesma frequência e um tradutor, os dois iniciam uma conversa amistosa e mundana, nesse Tinder em que nenhum dos dois sabe exatamente como é o rosto do outro - o que envolverá instantes poéticos, como a tentativa de Andriy de recriar a face de Catherine usando um tipo de massa de modelar (a plasticina). A comunicação é meio complicada, já que o envio e a resposta levam mais de três horas pra ocorrer. Mas mesmo assim, Andriy decide ir ao encontro da sua nova amiga, em uma viagem de milhões de quilômetros de distância. Quem quer dá um jeito, já diria aquela publicação da Nozy. Sim, se a gente forçar um pouquinho a amizade também será possível encontrar, aqui e ali, metáforas sobre guerras (e não é demais lembrar que a própria Ucrânia segue em conflito), pandemias, isolamento, crises imigratórias e outros. Vai de cada um. E o resultado será tocante e comovente, nos fazendo pensar sobre a importância dos laços, das conexões e daquilo que nos faz, de fato, humanos.

Nota: 8,0

 

terça-feira, 5 de agosto de 2025

Pitaquinho Musical - Pulp (More)

Só o Pulp pra lançar um disco tão... Pulp em pleno 2025. E eu confesso que eu não estava preparado pra simplesmente gostar do álbum dos ingleses. Sabe aquele retorno que tu tá pronto pra achincalhar, meio que no modo "nem dei play já não gostei"? A minha energia tava meio que nessas até o momento de ouvir More a primeira vez. A segunda. A terceira. Nesse momento eu já tava cantando junto o refrão grudento de Grown Ups, uma canção longa e gloriosa sobre amadurecimento, cheia de citações culturais e uma poesia que faz a gente navegar diretamente praquele climinha brit pop 90 (Foi na noite que me deixaram sair de casa / Foi na noite em que peguei o ônibus sozinho / E a cidade deslizava pelas janelas / Como um filme que estava apenas começando). Vinte e quatro anos de passaram desde o último registro de Jarvis Cocker e companhia e, bem, eles soam como se estivessem nisso há décadas (e a real é que estão).

 


Em entrevista, o vocalista afirmou que tudo começou com a enevoada The Hymn of the North, que começou a ser tocada nos shows desde que o grupo voltou aos palcos em 2023. Foi tudo rápido até que um novo trabalho fosse formatado e a real é que talvez houvesse bastante coisa acumulada nesses anos todos, porque More nunca faz feio como uma continuação meio que natural dos clássicos Different Class (1995), This Is Hardcore (1998) e We Love Life (2001) que eu, nas minhas madrugadas de Lado B na MTV, cresci ouvindo (e amando). Mesclando a possibilidade de dar uns passinhos animados nos inferninhos alternativos, mas sem deixar de lado as letras provocativas e cheias de ironias sobre temas sérios como fanatismo religioso (Slow Jam), ou mundanos como amores platônicos e perturbados (Tina) ou a importância de dizer um "eu te amo" (Got to Have Love), a banda constroi um disco que surpreende pela vitalidade. Aliás, Got to Have Love tem uma das melhores frases do trabalho: Sem amor você está apenas se masturbando dentro de outra pessoa. O homem sabe das coisas.

Nota: 8,5 

segunda-feira, 4 de agosto de 2025

Novidades em Streaming - Centenas de Castores (Hundreds of Beavers)

De: Mike Cheslik. Com Ryland Brickson Cole Tews, Doug Mancheski, Olivia Graves e Wes Tank. Comédia / Aventura, EUA, 2024, 108 minutos.

Preciso ser honesto com vocês: fazia tempo que não assistia a um filme tão chapado, desvairado, maluco, demente e, acima de tudo, divertido, do que esse inesperado Centenas de Castores (Hundreds of Beavers), que está disponível para aluguel em plataformas como a da Amazon. Feita com orçamento baixíssimo (cerca de US$ 150 mil), a produção consegue um feito raro: fazer rir naturalmente, sem forçação de barra. O estilo anárquico e de curioso espírito formalista da obra de estreia do diretor Mike Cheslik, pode ser percebido já nos primeiros três minutos, quando, em uma sequência que une animação e musical - com uma canção de tintas folclóricas sendo vigorosamente entoada -, o protagonista, um produtor de sidra meio desastrado, é apresentado. Seu nome é Jean Kayak (Ryland Brickson Cole Tews) e ele acaba de perder todo o seu pomar de maçãs, após um acidente com os barris que reservavam a bebida alcoólica (que era bastante consumida por viajantes locais).

Quando a gente fala assim, parece tudo bastante correto e até eventualmente trágico. E, talvez na vida real meio que fosse. Mas aqui é tudo tão nonsense que, mesmo quando as coisas dão errado, o resultado é a gargalhada. Filmado todo em preto e branco, sem diálogos e com alguns intertítulos - alguns até com frases aleatórias que parecem saídas de um livro barato de empreendedorismo coach -, o filme adota um estilo cartunesco, com Jean sendo o sujeito que perde tudo e que parte em uma jornada solitária. Inicialmente, para tentar simplesmente matar sua fome - o que envolve tentativas frustradas de caçadas de coelhos, peixes e ovos enormes dispostos em ninhos sobre árvores altíssimas (com ele sendo meio que sempre derrotado num estilo Coiote e Papa Léguas) - e, mais adiante, para tentar conseguir um casamento com a charmosa filha (Olivia Graves) de um exigente comerciante local (Doug Mancheski).

 


Em uma produção do tipo, é importante não levar nada muito a sério. Os coelhos, por exemplo, são simplesmente seres humanos adultos, vestidos com as roupas alvas dos animais. Com dentes e orelhas enormes. O mesmo valendo para castores, lobos, guaxinins, cães e até cavalos. Todos se comportando como os bichos - mas também sendo meio humanos (como no instante em que um grupo de cachorros joga cartas madrugada adentro ou no momento em que uma dupla de coelhos senta a porrada no protagonista após as coisas saírem errado). Jean sofre nesse ambiente inóspito, essencialmente gelado, que parece saído de algum local ermo no Século XIX. Com as coisas mudando um pouco de figura quando ele é salvo, após um acidente, por um caçador andarilho (Wes Tank). É com ele que Jean aprenderá a arte das armadilhas. Que lhe possibilitará adotar maneiras criativas - com um toque pessoal, claro -, na hora de tentar aprisionar os animais. Para trocá-los com o comerciante.

A quantidade de piadas em cascata - bobas e hilárias - é parte do charme. É um filme de humor físico, de quedas, de tombos, de dentes despedaçados, de cabeças batidas, de dedos sangrando após serem mordidos por piranhas, de aves gigantes evacuando e outras bicando o rosto de Jean. De castores vilanescos construindo uma enorme arca e mastigando milhares de troncos de árvores. É um conjunto imprevisível e mesmo aquilo que poderia parecer um tipo de gag meio barata ou de mau gosto - como no momento em que Jean toma água do rio para, mais a frente descobrir um que um coelho urina vastamente corredeira acima -, ocorre de forma tão inesperada, que é quase impossível ficar alheio. Sim, talvez nem todo mundo simpatize com o clima absurdista e sem limites, que exige uma boa dose de suspensão de descrença. Mas quem se aventurar sem grandes expectativas nessa narrativa minimalista, frenética e repleta de efeitos especiais caseiros, feitos na raça, poderá se maravilhar com esse tipo de cinema nunca óbvio. E que usa suas referências - Chaplin e Monty Phyton, games noventistas e revistas em quadrinhos underground - com personalidade e criatividade infinitas.

Nota: 8,5