De: Jacques Audiard. Com Karla Sofía Gascón, Zoe Saldaña e Selena Gomez. Drama / Comédia / Musical, França / EUA / Espanha, 2024, 132 minutos.
Com tantas décadas de cinefilia, devo dizer a vocês que poucas foram as vezes em que senti vergonha alheia assistindo a um filme. Aliás, no caso de Emilia Perez, que chega à Netflix na quinta-feira (06/02), mais de uma vez. Com tantas sequências cringe é até meio difícil escolher a mais constrangedora. Mas creio que o "prêmio" vá para o instante em que a advogada Rita Mora (Zoe Saldaña) chega à Turquia para conferir in loco - em uma clínica especializada -, como se dão os procedimentos de redesignação sexual. Circulando em meio a macas, equipamentos, pacientes e enfermeiras Rita estabelece um diálogo com um médico local, que imediatamente vira um número musical: "Olá, muito prazer em conhecê-la / Gostaria de saber sobre a operação de mudança de sexo / Entendo, entendo, entendo / Homem para mulher ou mulher para homem? / Homem para mulher / Do pênis para a vagina / É para você? / Para mim? Não / O que você gostaria de saber sobre isso, senhora? Eu quero saber tudo, qual é o protocolo?". É sério, eu quase não consegui segurar o riso diante dessa obra-prima lírica, entoada em um vergonhoso spoken word.
Aliás, talvez o maior problema do filme de Jacques Audiard - indicado a treze Oscar e o grande rival de Ainda Estou Aqui na disputa por estatuetas douradas (isso, ao menos até o dia em que os brasileiros escavaram o passado de Karla Sofía Gascón, descobrindo que ela atacava uma minoria diferente por hora, no Twitter) - seja o fato de que esse é um musical em que praticamente todas as músicas são terríveis! Além das letras péssimas (sobre pênis e vaginas imaginários) cantadas de uma forma supostamente engraçadinha - e, vejam bem, não se trata de moralismo barato e sim de um momento que mais parecia saído da comédia Team America (2004), mas feita com atores de carne e osso -, as inserções muitas vezes truncam a narrativa. Ou repetem conceitos que já havíamos compreendido previamente. E tudo ocorrendo de uma forma chata, forçada e irritante. Sim, um musical pode ser chato, forçado e irritante. Mas esse aqui quer bater todos os recordes.
Durante a tortuosa sessão, admito que cheguei a comentar com a minha companheira que esse poderia ser um grande filme se ele se levasse mais sério. Um drama, com menos estereótipos e maniqueísmos sobre um chefão de um cartel que, para deixar seu passado de crimes para trás e evitar que uma trilha de sangue e morte persiga a ele e a sua família, opta por uma nova vida, distante de tudo, com outra identidade, ofício e endereço. Talvez com mais polidez e um conjunto menos bobo, as coisas pudessem funcionar. Porque o caso é que até a suposta redenção de Emilia (Gascón) é difícil de comprar. Quais os motivos centrais para essa mudança drástica de vida? Sim, ela sente que está em uma identidade que não lhe representa, mas e todo o resto? Filhos, família, esposa? Tudo fica para trás quando acaba a Era Manitas e, para alguém que se converterá na rainha da filantropia em meia dúzia de anos, parece que essa conta não fecha. E se a conta não fecha, tome-lhe música ruim!
A despeito de todas as polêmicas envolvendo Gascón, o Oscar e tudo o que vocês já sabem, eu confesso que fui conferir o filme de sangue doce. Com a mente aberta, como sempre faço. E adoraria ter encontrado uma grande experiência. Que fizesse sentido nas discussões sobre identitarismo e gênero e não reduzisse a protagonista à uma caricatura. Mas enquanto a coisa se desenrolava, eu só conseguia pensar em como esse é exatamente o tipo de produto que servirá de matéria-prima para que o reacionário de extrema direita se sinta à vontade para dizer que hoje em dia a arte é só lacração, que a cultura woke vai dominar o planeta e que está em curso a implantação de uma agenda gayzista para as crianças ao redor do globo, até 2030. Sério, galera, se é para o campo progressista ser acusado disso, que façamos a coisa bem feita. Com inteligência, sagacidade, sutileza e criatividade. Sim, sei que cada filme é um filme, mas tomemos como comparação o ótimo Conclave, que também está indicado ao Oscar. Ninguém precisa empurrar a coisa goela abaixo, em uma produção de gosto duvidoso. Ao cabo, pouca coisa se salva. O que, em partes, me deixa feliz, já que esse pode significar o caminho aberto para que nós, brasileiros, sejamos muito felizes no próximo 2 de março, quando ocorre a noite do Oscar. Aguardemos.
Nota: 2,0
Nenhum comentário:
Postar um comentário