quarta-feira, 3 de abril de 2024

Tesouros Cinéfilos - Entre Umas e Outras (Sideways)

De: Alexander Payne. Com Paul Giamatti, Thomas Haden Church, Virginia Madsen e Sandra Oh. Comédia / Drama / Romance, EUA, 2004, 127 minutos.

"Gosto de pensar no que estava ocorrendo no ano em que as uvas cresciam. Como brilhava o sol, se choveu a contento. Me agrada pensar em todas as pessoas que cuidaram e que colheram as uvas. E se for um vinho antigo, quantas dessas pessoas já estarão mortas nesse instante. Gosto de ver como o vinho continua a evoluir e saber que, se tivesse aberto uma garrafa hoje, o sabor seria diferente do que se tivesse aberto em qualquer outro dia. Porque uma garrafa de vinho é algo vivo, que está em constante evolução e ganhando complexidade. Isto até atingir seu pico". Vamos combinar que uma metáfora mal empregada pode ser devastadora para uma experiência cinematográfica - e em Entre Umas e Outras (Sideways) temos o completo oposto. A maturidade do vinho em toda a sua magnificência funciona como uma alegoria para a própria vida: estamos em constante evolução. Como um bom vinho de uma safra antiga. 

Sim, pode parecer meio brega em alguma medida, mas a frase dita por Maya (Virginia Madsen) à Miles Raymond (Paul Giamatti), e que abre essa resenha, é proferida com tanta elegância, de forma tão afetuosa, que é simplesmente impossível não pensar na existência daqueles personagens como figuras que fermentam em suas barricas pessoais. Para dali extrair o melhor produto. Aliás, quando a gente pensa em "filme sobre vinho" é difícil não recordar essa obra cheia de carisma (e de pessoas imperfeitas) dirigida por Alexander Payne - do recente (e ótimo) Os Rejeitados (2023), também estrelado por Giamatti. Aliás, o ator que se especializou em encarnar sujeitos simplórios e niilistas, que vivem de ombros caídos diante de um mundo que parece lhe desprezar, aqui entrega tudo no papel de um professor deprimido que tenta investir na carreira de escritor - ao mesmo tempo em que tenta superar uma separação.

 

 

Miles ainda parece viver o luto do desquite. O que não lhe impede de convidar o seu melhor amigo Jack (Thomas Haden Church) para uma espécie de viagem de despedida de solteiro, que tem como cenário o Vale de Santa Inez, no Sul dos Estados Unidos - uma região da Califórnia famosa pela produção de uvas (e de vinhos). Miles é um especialista no assunto - ou talvez alguém apenas metido nos assuntos da enologia. Segura a taça da maneira correta, sacode o vinho, enfia o nariz no recipiente, tenta reconhecer esta ou aquela nota. Analisa a cor, a viscosidade, a aderência. Como se comportam os taninos. Debate à altura com os responsáveis das vinícolas visitadas. Para ele esse parece um passatempo razoável ao lado do amigo que se casará em uma semana. Já Jack, bom, Jack parece apenas interessado em descolar alguma transa aleatória antes de entrar na Igreja para o seu próprio matrimônio.

Como costuma ocorrer nos filmes de Payne, aqui temos pessoas mais ou menos comuns com todas as suas imperfeições, medos, anseios, desejos, segredos. Miles é claramente o sujeito inseguro que recém se tornou o mais novo solteiro na praça - e quem nunca ficou aflito numa situação dessas? Ainda mais em companhia do amigo mulherengo? Um livro que talvez não seja editado funciona como uma alegoria a mais para o desastre pessoal desse homem ordinário - o que faz com que, como vinho, ele se converta em uma espécie de vinagre. Mas assim como a uva, as safras dependem de uma série de fatores: clima, cuidados ao manejar, ao irrigar, ao podar. Há uvas que frutificam mais cedo, outras mais tarde. Há algumas, como a pinot noir, que são mais raras, mais frágeis, mais complexas. O ser humano é assim também? É o que parece, nesse road movie que, assim como uma taça de vinho, serve para celebrar os recomeços. Ou mesmo aquilo que nos afaga a alma. Ou, vá lá, a beleza da vida em seus acasos. O que já faz tudo valer a pena.


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