quarta-feira, 15 de junho de 2022

Novidades em Streaming - Árvores da Paz (Trees of Peace)

De: Alanna Brown. Com Eliane Umuhire, Charmaine Bingwa, Bola Koleosho e Ella Cannon. Drama, EUA, 2022, 97 minutos.

Os filmes da Netflix podem até soar meio parecidos entre si - aquele estilo de produção feita a toque de caixa, em escala um tanto industrial -, mas uma coisa não se pode negar: muitas vezes cumprem seu papel na hora de jogar luz sobre eventos históricos. Ou sobre questões políticas, culturais e religiosas de outros países que não apenas os Estados Unidos. Há todo um mercado do cinema turco, por exemplo, que tem tido ótimo apelo junto ao público. Obras que partem de recortes para analisar o todo, trazendo contrastes sociais e dramas novelescos feitas com grande apuro técnico. E quando Árvores da Paz (Trees of Peace) chegou, fiquei meio desconfiado: o tema é relevante - retorna ao período que ficou marcado pelo genocídio em Ruanda, episódio que chocou o mundo em 1994, resultando em quase um milhão de mortos -, mas parecia ser mais um filmezinho caça-níqueis, que força a barra na busca de emocionar o espectador, ao passo que esvazia a importância daquilo que discute. Mas admito que gostei.

Aqui não se tem aquela obra expansiva, com grandes planos ou que apresenta os vários ângulos do conflito. Sim, o filme de estreia da diretora Alanna Brown até tem como pano de fundo o massacre promovido por extremistas hutus - que assassinaram milhares de integrantes da minoria tutsi, em uma campanha de ódio que contou com o suporte do próprio governo, dos meios de comunicação e de milícias fortemente organizadas. Só que, nesse caso, a realizadora opta por centrar a ação no porão de uma casa, local em que quatro mulheres permanecem escondidas (presas mesmo), enquanto aguardam o fim do período de instabilidade. Diferentemente do que ocorre com outros, como Hotel Ruanda (2004), aqui não há muito espaço para explicações a respeito da lógica da política interna de Ruanda. Ela é apenas absurda. E, às protagonistas, resta esperar. Num exercício quase interminável de paciência, por mais de 80 dias. Com pouco acesso a alimento ou água e um banheiro improvisado.

Mesmo assim são muitos os instantes de tensão. Tendo acesso à rua apenas por uma janelinha gradeada ao nível da rua, as quatro conseguem não apenas enxergar parte da truculência que ocorre para além da parede, do lado de fora, como também ouvir. Ouvir tudo. Gritos, facadas, tiros, cachorros latindo, pessoas sendo atacadas, estupradas, mortas. É uma obra claustrofóbica, sufocante, porque às mulheres que ali se encontram sequer é permitido extravasar. É preciso persistir em meio a conversas sussurradas, em um comovente exercício de paciência. Especialmente pelo fato de as quatro serem completament diferentes entre si.  A começar por Annick (Eliane Umuhire), mulher hutu moderada, que está grávida e que é a proprietária da casa em que todos estão. Jeanette (Charmaine Bingwa) é a freira que parece ter a sua fé testada o tempo inteiro. Já Mutesi (Bola Koleosho) é uma tutsi que carrega uma grande raiva interior - que a faz culpar os hutus por toda a violência. E por fim há Peyton (Ella Cannon), uma americana que integra uma Organização Não Governamental que atua no local.

Mesmo sendo tão diamentralmente opostas - o que renderá um sem fim de sequências de desentendimentos entre elas -, é possível afirmar que elas formariam, metaforicamente, uma espécie de embrião para o tipo de política que seria adotada em Ruanda, ao final do genocídio. Hoje, Ruanda é uma das nações que mais conta com mulheres ocupando cargos públicos no mundo. Isso significa algum aceno para a possibilidade de pacificação? Não necessariamente, mas alguns indicadores mostram que a ampliação do debate de pautas que envolvem os direitos da mulher podem estar contribuindo para a reconstrução do País pós-genocídio (claro, há o fato de que 70% da população de Ruanda é composto por mulheres). No filme, esse engajamento que rompe o escudo do machismo e do patriarcalismo, surge em meio a sequências em que as quatro mulheres se apoiam, agem com empatia, ensinam umas as outras (inclusive a ler) e formam uma espécie de rede de proteção, que será fundamental para que consigam superar a adversidade. Trata-se, ao cabo, de uma obra ao mesmo tempo desalentadora e otimista, mas que não ignora o desatino da xenofobia e a importância da manutenção da democracia.

Nota: 8,0


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