De: Mike Leigh. Com Brenda Blethyn, Marianne Jean-Baptiste, Timothy Spall e Claire Rushbrook. Drama, Reino Unido / França, 1996, 142 minutos.
Vamos combinar que é simplesmente impossível escrever qualquer coisa sobre Segredos e Mentiras (Secrets and Lies) sem começar pela atuação assombrosa de Brenda Blethyn - que só não ganhou o Oscar daquele ano por causa de uma certa Frances McDormand, que foi irretocável em Fargo (1996). Sua Cynthia Rose é uma mulher devastada, que deixa transparecer por todos os poros o seu desequilíbrio emocional. Está no olhar melancólico. Na expressão permanentemente chorosa. No gestual claudicante - os ombros sempre caídos, o pescoço curvado. Na instabilidade constante. Na carência afetiva sem limites, que vem acompanhada da voz sempre trêmula. Tendo como única "companhia" a filha de pouquíssimos afetos Roxanne (a igualmente ótima Claire Rushbrook), vive uma rotina ordinária, daquelas de dar pena. Ela se preocupa com as aparências: a sua própria, a da filha, a do irmão Maurice (Timothy Spall). É uma existência vazia, oca. E que, muito cedo saberemos, pode ter a ver com traumas do passado, segredos jamais revelados, conversas nunca ditas.
À moda daqueles dramas que nos colocam diante de famílias inteiras que pretendem resolver suas pendências na mesa de jantar, aqui temos um exercício de gênero de excelência nesse estilo que, não por acaso, viria a ser coroado com a Palma de Ouro no Festival de Cannes. Aliás, poucas vezes eu me senti tão impactado por uma obra com essa proposta, como nesse caso. A sensação é de desconforto permanente, dada a miséria (e a infelicidade) daquele grupo que acompanhamos. Na trama, a optometrista Hortense (Marianne Jean-Baptiste) decide ir atrás de sua família biológica, depois que sua mãe adotiva morre. Após uma e outra ida aos cartórios locais, obtém documentos que podem solucionar o seu caso. Só que há um porém: como mulher negra, ela acha bastante curioso o fato de sua mãe ser uma caucasiana. E, bom, não é preciso ser nenhum adivinho pra saber onde esse quebra-cabeças vai dar. E sobre como o desenrolar dos acontecimentos que envolvem esse segredo - um dos muitos que será revelados - será uma bomba-relógio prestes a explodir!
E se ressentimento pouco é bobagem, impressiona também o fato de ele se espalhar em cada canto da narrativa, até mesmo em sequências que parecem meio fora de contexto - como naquele instante em que Maurice recebe a inusitada visita do antigo dono de seu estabelecimento comercial. Aliás, é uma cena tensa, estranhamente nebulosa. Que parece querer nos fazer lembrar o tempo todo do fato de que, no mundo real, muitas pessoas parecem estar no limite, infelizes, vivendo mergulhadas em um universo de mágoas infinitas. Ironia das ironias, Maurice trabalha como produtor de imagens - e as cenas em que ele incentiva aqueles que fotografa a sorrirem, soa invariavelmente paradoxal. É apenas um instante. Um fragmento. Em que tudo para, em que o frame é congelado. São esquecidos os contratempos, as adversidades, para uma fuga falsa que nos retire por alguns segundos da vida de atribulações. Aliás, o que o próprio Maurice parece também buscar - e que nunca encontra, nem em Cynthia sua irmã desvairada, muito menos em Monica (Phyllis Logan), sua esposa pouco amorosa.
Para além das grandes interpretações, Segredos e Mentiras também utiliza de forma muito satisfatória o seu arcabouço técnico - especialmente no sentido de ampliar o senso de teatralidade, algo típico dos trabalhos de Leigh. Há, por exemplo, um grande investimento em planos-sequência - a longa cena do café, em que Cynthia expõe toda a sua fragilidade diante de Hortense, já pode ser considerada um clássico moderno. O mesmo vale para o sem fim de instantes em que as personagens se veem confinadas em ambientes fechados, claustrofóbicos, com a câmera indo de um para outro rosto, evidenciando suas angústias em cada poro, em cada lágrima, em cada pequena inflexão. Há, no contexto, uma claustrofobia meio generalizada que não parece ser necessariamente de "espaços" e, sim, da alma. Algo que se mostra sempre pronto a ruir, a transbordar, mesmo que os motivos não sejam assim tão gritantes. Ainda assim, é curioso notar como, ao cabo, a experiência ainda se fecha de maneira otimista, nos fazendo lembrar que "família a gente não escolhe". Mas que, se primarmos pela honestidade, pela sinceridade, é possível construir um contexto favorável. E, vá lá, ser feliz.
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