terça-feira, 5 de janeiro de 2021

Picanha.doc - AmarElo: É Tudo Pra Ontem

 De: Fred Ouro Preto. Com Emicida. Documentário, Brasil, 2020, 89 minutos.

AmarElo: É Tudo Pra Ontem não é apenas um documentário sobre o show realizado pelo rapper Emicida em novembro de 2019, no Teatro Municipal de São Paulo: é uma verdadeira aula de história afro nacional e sobre como os movimentos realizados por artistas, ativistas, historiadores, escritores e outras figuras do passado foram fundamentais para a consolidação da cultura brasileira como a conhecemos hoje. Em resumo, o que Leandro Roque de Oliveira quer dizer é que muito provavelmente ele não existiria se não fossem nomes como Lélia González, Leci Brandão, Abdias do Nascimento, Ruth de Souza, Johnny Alf, Mateus Aleluia, Ismael Silva e tantos outros. Nesse sentido, a obra do diretor Fred Ouro Preto é didática mas é também vibrante, colorida, otimista. Daquelas que acredita em dias melhores e em tempos de menos preconceito, ódio e intolerância mesmo que estejamos sob a batuta institucionalizadora do racismo que é o governo Bolsonaro. "Tudo que nóis tem é nóis" lembra, afinal, a letra da inaugural Principia, que abre oficialmente o último disco do paulista.

Partindo da mera existência da "ocupação" preta do Teatro Municipal - reduto utilizado tradicionalmente pela aristocracia paulista - que será simbolizada pela sua vigorosa apresentação, Emicida recua no tempo, entrecortando as histórias antigas que dialogarão com as suas letras e que exemplificarão como a fusão entre o samba (surgido há cerca de 100 anos nos morros, nas periferias), a cultura de rua (que gesta o hip hop) e até movimentos como o antropofágico - nascido dentro da Semana de Arte Moderna de 2022 - formaram o caldeirão que temos hoje. A violência, a opressão, a dor de SER em uma pele preta surge inevitavelmente no racismo estrutural, que faz com que AmarElo funcione quase como um manifesto de orgulho da raça, que inicia nos acordes oníricos do começo do disco, até culminar no libelo multicolorido e efervescente que é a faixa-título, que conta com participação das artistas trans Majur e Pablo Vittar.

Nesse caminho, em meio a imagens de bastidores da produção do show e da composição do próprio disco - que se torna ainda maior com o documentário -, o artista conta histórias interessantes (e até divertidas) como aquela que o fez conhecer a obra do baterista e compositor Wilson das Neves, homenageado na formidável letra de Quem Tem Um Amigo (Tem Tudo), cantada na companhia do parceiro Zeca Pagodinho. E, juro, a explicação para a existência de versos como "em que altura você mora agora?" arranca lágrimas de forma fluída, orgânica, sem forçação. Outro momento relevante - em meio a tantos, por sinal - envolve o protesto do Movimento Negro Unificado que, em 1978, em meio a brutalidade da Ditadura Militar, ocupou a escadaria do próprio Teatro Municipal, como forma de se insurgir contra a violência policial (e estatal) e o racismo. Aliás, sabe do que foram acusados os ativistas naquela ocasião? Sim, quem respondeu COMUNISMO acertou - e esse foi um dos motivos pelos quais o cantor Wilson Simonal foi detido pelo famigerado Departamento de Ordem Política e Social (Dops). A história se repete.

Bom, daria pra citar uma série de outros trechos históricos e relevantes, mas vale a pena "descobrir" que houve a existência também em meio a ditadura de uma Frente Negra Brasileira, de que houve alguém que desafiou o status quo para fazer o Teatro Experimental do Negro (que provocava a reflexão para além do entretenimento) e sobre como leis bizarras como a da "Vadiagem" foram (e seguem sendo) o instrumento oficial para oprimir pretos, pobres, capoeiristas, músicos, umbandistas, prostitutas, trans e qualquer outra minoria, na realidade. Sim, parece pesado, mas a leveza com que os temas são descortinados, entrecortados pelas lindas canções do rapper e por uma edição dinâmica, que utiliza imagens de arquivo, animações e outras estratégias, tornam a experiência bela, atemporal e inesquecível. Emicida talvez seja um dos principais artistas brasileiros da atualidade, com seus discos marcantes e seu ativismo potente. Fela Kuti, que dizia que "a música é uma arma" sentiria-se orgulhoso. A nós, espectadores, resta sonhar com dias mais justos, mais igualitários, mais empáticos.

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